Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
O Marajó voltou aos holofotes do mundo em 2024. Não o Marajó visto e vivido pelos/pelas marajoaras, mas o produzido e difundido, com apoio das redes sociais, para gerar a desinformação e a estigmatização de sua população e de suas realidades. Entre vídeos e comentários que circularam/circulam na internet/redes sociais, fomentando o pânico moral, a discriminação e o discurso de ódio, vozes e agentes emergiram para se colocarem como arautos da “salvação” das crianças do Marajó, quase sempre pedindo apoio, por meio de doações, para suas organizações sociais e “causas morais”.
Não é a primeira vez que o Marajó ganha os noticiários e os trend topics da opinião pública. O que se viu e ouviu a partir de fevereiro de 2024 é, de certa forma, o que tem ocorrido repetidamente nos últimos 20 anos na vida – e para indignação – da população marajoara. Em distintos momentos o Marajó “emergiu” como caso emblemático para uma “causa moral” de caráter salvacionista e de pretensa defesa dos direitos de crianças e adolescentes, arregimentando a mídia, as mentes e os corações – e, nos últimos anos, fomentando os likes e os engajamentos digitais da desinformação.
Nas primeiras iniciativas de ampla repercussão nacional e internacional a mídia também estava presente, mas a dos canais de televisão, que, a partir de 2005, começaram a produzir inúmeras matérias jornalísticas sobre as situações de abuso sexual e exploração sexual no Arquipélago do Marajó. A primeira foi uma reportagem especial da Rede Globo sobre a situação da exploração sexual nos rios do Marajó, de 2005, em que se apresentou e difundiu a percepção de um fragmento da realidade local com o uso e a circulação dos termos estigmatizantes de “meninas balseiras” e “mulheres balseiras”, devido as dinâmicas registradas em vídeos de meninas e mulheres subindo em embarcações, a maior parte delas de balsas, para trocar serviços sexuais por comida e, sobretudo, óleo diesel – e, onde, desde já, passa-se a reconhecer que são meninas/mulheres ribeirinhas em situação de exploração sexual e trabalho infantil – na região do rio Tajapuru conhecida por Estreito de Breves, entre os municípios de Breves e Melgaço (Guedes, 2018)[1].
Posteriormente, e como iniciativa decorrente das matérias jornalísticas e da pressão da opinião pública, houve a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 2008, na Assembleia Legislativa do Estado do Pará, para apurar os casos de violência sexual no estado, com um olhar especial à região do Marajó. Audiências públicas foram realizadas em distintos locais do Pará, e algumas em municípios do Marajó, tendo a CPI publicado seu relatório em 2010, mas, como ressalta Leonildo Nazareno do Amaral Guedes (2018), nenhuma ação efetiva de enfrentamento da situação foi verificada na região de Marajó por parte do Estado, em decorrência dos dados e das recomendações da CPI.
Chega-se, então, aos idos de 2012, quando da divulgação dos primeiros informes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) por municípios, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em que se passa a identificar, visibilizar e difundir um novo discurso de estigmatização dos municípios do Marajó por estarem entre os piores IDHs do país, em especial Melgaço, que detém, na atualidade, o “título” de pior IDH do país.
As últimas cenas são mais recentes. Uma delas foi a visita da ex-ministra Damares Alves ao Arquipélago do Marajó, em 2019, quando vaticinou que o problema da violência sexual contra crianças e adolescentes era a falta de calcinha, daí surgindo a esdruxula ideia de instalação de uma fábrica de calcinha na região, depois avançando para a implantação do Programa “Abrace o Marajó” pelo então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, com indicativos de atuação entre os anos de 2020 e 2022[2].
E, por último, o ocorrido em fevereiro de 2024, quando o Brasil e o mundo redescobriram o Marajó a partir da difusão da apresentação da cantora paraense Aimeê Rocha, cantando a música de sua autoria intitulada “Evangelho dos Fariseus”, durante na semifinal do programa Dom Reality, definido como o primeiro reality show de música gospel do Brasil. A letra da música em si é de uma ótima qualidade, tecendo uma crítica importante à ambição e à ganância das entidades religiosas e, num segundo momento, comentando as tragédias sociais que ocorrem enquanto as entidades religiosas só pensam em si, como a do “João [que] desapareceu” no Marajó.
No entanto, é no segundo momento, já depois da apresentação, quando instada a detalhar mais informações sobre o Marajó, que Aimeê Rocha reproduz o ideário da normalização da violência pelos sujeitos, quando indica: “lá tem muito tráfico de órgãos, lá é normal. Lá tem pedofilia em nível hard. As crianças de cinco anos quando veem um barco vindo de fora com turistas, o Marajó é muito turístico, as famílias lá são muito carentes, as criancinhas saem numa canoa, seis, sete anos, e elas se prostituem dentro do barco por cinco reais.”[3] Após a difusão midiática da apresentação musical e dos comentários da cantora, uma série de vídeos com relatos de supostos casos aberrantes de violências contra crianças e adolescentes no Marajó passaram a circular nas redes sociais, muitos dos quais com a manipulação de imagens oriundas de outros locais do país ou do mundo e com o uso de informações sem comprovação, gerando desinformação e pânico moral, além dos pedidos de apoio às organizações sociais para “salvarem” as crianças.
O que esses cinco momentos históricos descritos acima ensinam? A produção de um discurso sobre o Marajó e suas crianças e adolescentes pautado por um juízo de valor que só enxerga o que falta ou o que “não presta” em suas vidas. O cenário de “terra sem lei” emerge articulando à ausência ou à deficiência do Estado e das políticas públicas com uma certa dose de suposta “conivência imoral” da população local, resultando, portanto, em um imperativo de que algo seja feito e de que sujeitos externos à região possam trazer, finalmente, a civilidade aos “bárbaros”, a salvação aos pecadores.
O Marajó em 2024, e novamente, emerge na opinião pública pelo que lhe falta e pela pretensa culpa que sua população carrega por “aceitar” as violências sofridas por suas crianças. Essa falta e essa culpa são política, moral e midiaticamente construídas para justificar a intervenção sobre suas vidas e os likes ao sensacionalismo midiático.
Porém, em nada ajudam no enfrentamento dos problemas sociais em si, ainda que, no caso da CPI da ALEPA, um relatório tenha sido produzido com várias recomendações de implementação de políticas públicas que tiveram por pressuposto a escuta da população local e a responsabilização do Estado. Ainda assim, como o relatório da CPI gerou poucos efeitos práticos na vida dos sujeitos locais, seu discurso acabou contribuindo mais para reforçar os estigmas sociais do Marajó, do que achar as soluções.
E, assim como a madeira vira um negócio lucrativo para a indústria madeireira e as consultorias ambientais ao arregimentar comunidades extrativistas do Marajó das Florestas para a venda de sua floresta via crédito de carbono ou plano de manejo, tudo sustentável e insustentável ao mesmo tempo, também os momentos históricos narrados acima geraram lucros para alguns poucos que se beneficiaram vendendo a proteção de direitos ao produzir a violação deles, e prometendo a salvação, mas agindo para manter as desigualdades e discriminações contra as mesmas crianças que pretendem proteger.
Porém, há um outro lado e outras narrativas possíveis de serem contadas e vividas. Essas narrativas procuram conceber os problemas sociais do Marajó com a seriedade e a responsabilidade que a complexidade da questão exige. E agem com responsabilidade e seriedade ao considerar o passado, o presente e o futuro da população e do território em que ocorrem os problemas sociais, e onde são formuladas e implantadas formas de intervir sobre tais problemas, com maior ou menor apoio do Estado, em suas várias esferas.
Essas narrativas não negam que as violações de direitos e as violências afetam as crianças e adolescentes, só que o fazem considerando-as de forma relacional às condicionantes estruturais da vida no Marajó, as quais perpassam dilemas sociais, econômicos, fundiários, de mobilidade e acesso às políticas públicas básicas ainda não resolvidos. E, também, valorizam as potencialidades dos sujeitos e das expressões socioculturais de cuidado e proteção das infâncias e adolescências plurais que existem no Marajó, as quais seguem clamando por justiça social com esperanças e resistências.
Essas outras narrativas foram uma vez mais apresentadas ao público em geral no debate intitulado Vozes do Marajó, ocorrido no dia 27 de fevereiro, pelo Youtube[4]. A atividade reuniu representantes de oito dos 17 municípios do Marajó, os quais apresentaram e debateram a situação das infâncias e adolescências em seus municípios e as ações empreendidas pela rede de proteção em cada local. O que se ouviu foi de que muito tem sido feito para o enfrentamento das violências contra crianças e adolescentes, ainda assim muito mais é necessário para que os sujeitos locais possam ter melhores condições de produzir esse enfrentamento e para dar continuidade às boas práticas locais.
No caso do enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, sabe-se da existência de planos municipais intersetoriais sobre o assunto em, pelo menos, três municípios: Breves; Curralinho; e, Melgaço. Ademais, os municípios do Marajó foram incluídos como áreas prioritárias para a implantação das ações do Plano Estadual de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, aprovado em 2021 e com vigência pelos próximos 10 anos, sendo monitorado pelo Comitê Estadual de Enfrentamento da Violência Sexual contra Criança e Adolescentes do Pará.
Instituições e organizações de âmbito local ou regional, como o Ministério Público do Estado do Pará (MPE/PA), a Caritas, a Rádio Margarida, a Malungu, a Comissão de Justiça e Paz da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CJP/CNBB) e o Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, os quais têm há tempos desenvolvido iniciativas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes com engajamento comunitário e municipal.
A CJP/CNBB, com a liderança de Irmã Henriqueta Cavalcante, e o MPE/PA, por meio do projeto “Navegue não naufrague”[5], receberam premiações nacionais pelas iniciativas desenvolvidas no Marajó para a promoção dos direitos sexuais e o enfrentamento da violência sexual, sendo reconhecidas como boas práticas a serem difundidas em outros contextos do país.
E, por último, o Programa Cidadania Marajó, instituído pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por meio da Portaria nº 292, de17 de maio de 2023, tem como mote principal de existência, definido no artigo 1º da referida Portaria, o “enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes e promoção de direitos humanos e acesso a políticas públicas no Arquipélago do Marajó”[6], tendo ações voltadas à implantação da Escola de Conselhos para formação continuada dos profissionais que atendem crianças e adolescentes, em parceria com a Universidade Federal do Pará, e a adequação do Programa Mapear para monitoramento da vulnerabilidade sexual de crianças e adolescentes nos rios do Marajó, em parceria com a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e a Childhood/Brasil, entre outros várias ações que constam no Cidadania Marajó[7].
Tudo isso não deve ser compreendido como propaganda de feitos do governo ou das organizações sociais, mas a constatação de existência de iniciativas que ocorreram ou ocorrem no território do Marajó para enfrentar os problemas sociais relacionados às condições de vida de crianças e adolescentes, em especial a violência sexual.
É, assim, uma prova de contestação e desconstrução do discurso de inércia ou passividade da população local ou da rede de proteção, ainda que a complexidade do fenômeno exija assumir a avaliação de que muito mais pode e deve ser feito pelo Estado e pela sociedade para impulsionar os direitos de crianças e adolescentes no Marajó, a começa pelo próprio subdimensionamento do problema que ainda é subnotificado, isto é, a quantidade de denuncias feitas não reflete a demanda real dos casos.
Cabe-nos, assim, afirmar que a violência sexual contra crianças e adolescentes ocorre no Arquipélago do Marajó, mas que isso não é uma “marca identitária” dessa região e de seu povo, e muito menos tem ocorrido sem que haja um enfrentamento cotidiano por parte de agentes locais e parceiros estratégicos governamentais e sociais.
É preciso agir com responsabilidade e seriedade, considerando a complexidade territorial, climática, social, econômica e cultural do Marajó, e promovendo ações de proteção de crianças e adolescentes calcadas na intersetorialidade e na democracia, pois só assim terão legitimidade para serem concebidas e executadas com a população marajoara e numa integração entre as diferentes instituições e organizações.
Além disso, é necessário reafirmar o compromisso sério do Estado e da sociedade de fazer cumprir os direitos de crianças e adolescentes, mas de considerar que muito disso só será efetivado, no Marajó, se os problemas fundiários, socioeconômicos e de mobilidade forem equacionados, também. Assim, não se pode afastar o debate sobre os direitos e das condições de vida das crianças nessa região da disputa sobre o projeto de sociedade e de desenvolvimento que se pensa e promove nela, e cujo pânico moral produzido pela ideia de “salvação” das crianças do Marajó só impede que essas questões, as causas dos problemas sociais das crianças e adolescentes (e da população marajoara como um todo), sejam devidamente visibilizadas e equacionadas.
Notas e referências:
[1] Cf. GUEDES, Leonildo Nazareno do Amaral. Socioabilidades ribeirinhas, reciprocidade e moralidade no Marajó: a vida entre balsas e beiras. Tese (Doutorado). Belém: Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará, 2018. Disponível em: https://ppga.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/Tese2017/Tese%20Leonildo%20[vers%C3%A3o%20final].pdf
[2] Sobre a análise da atuação do Programa “Abrace o Marajó”, conduzido pela ex-ministra e atual senadora Damares Alves (PL), consultar a dissertação: GUEDES, Luiz Carlos Pinho. Ministra não é princesa, governador não é rei, Marajó não é Pasargada: registros, memórias e análises sobre o Abrace o Marajó e as formas como o Estado escolhe se fazer presente na região. Dissertação (Mestrado). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2024.
[3] O vídeo da apresentação da cantora pode ser acessado no Youtube, pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=9knadbXLbD4
[4] A atividade pode ser assistida pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=sTL2rmQc98M
[5] O projeto “Navegue não naufrague” do MPE/PA obteve o reconhecimento da Coalização para o Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes de ser uma das 10 práticas inovadoras de prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Sobre o assunto, confira o relatório que foi publicado analisando essa iniciativa e as outras nove existentes em diferentes regiões do país, acessível pelo link: https://www.coalizaobrasileira.org.br/wp-content/uploads/2022/07/Pra%CC%81ticas-Inovadoras_Relato%CC%81rio-de-Pesquisa-PT_ATUALIZADO-13_07_2022.pdf
[6] Cf. BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Portaria nº 292, de 17 de maio de 2023. Brasília: Casa Civil, 2023. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/servlet/INPDFViewer?jornal=515&pagina=14&data=18/05/2023&captchafield=firstAccess
[7] As ações desenvolvidas pelo Programa Cidadania Marajó podem ser acessadas em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/cidadania-marajo
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