Somos humanos, demasiadamente humanos, diria Nietzsche. No entanto, acho que se poderia afirmar: Somos humanos, demasiadamente inumanos. Ao invés do imperativo de nosso tempo reivindicar, com força, a paz como pressuposto harmônico de convivência entre seres humanos e o reconhecimento das diferenças culturais como fonte de avanço no processo civilizatório, o que se observa é o oposto: a intolerância entre os povos, a profunda miséria e desigualdade, a extrema violência, a indiferença endêmica são sintomas que indicam a necessidade de se repensar as relações humanas.
Na Pós-Modernidade, essas relações ganham significativo os contornos em aspectos positivos e negativos. Na dimensão positiva é possível identificar como a diferença entre tribos sociais favorece todas as formas de se estar próximo com as pessoas, seja no sentido da das festividades, da conectividade, da amorosidade. Nessa linha de entendimento, a Pós-Modernidade ampliou a proximidade entre as pessoas e, numa perspectiva moral, deixou o julgamento da autoafirmação social em segundo plano. Esse é um aspecto extremamente legítimo e sadio pra criar gerar um aperfeiçoamento da nossa humanidade desde a com nossa condição interior.
Na dimensão negativa, essa amplitude das relações trouxe dois elementos que precisam ser identificados: a fugacidade e a descartabilidade dos seres humanos. A fugacidade, dentro de um leque muito grande de opções sobre relacionamentos, faz com que todos se relacionem de modo a não hipotecar o seu futuro, ou seja, relaciona-se sem comprometer a possibilidade de se vivenciar último relacionamento imediatamente.
Já a descartabilidade torna a pessoa uma mercadoria, um objeto. Significa afirmar: o que não for do interesse pessoal pode ser jogado fora, descartado pela sua inutilidade. Essa transformação dos seres humanos em “coisas” ocorre, em parte, pelo medo de se hipotecar o futuro. O momento presente deve ser vivido em toda sua intensidade e possibilidades. Tornar-se radicalmente responsável pelo Outro, ou, nas palavras do Pequeno Príncipe, se tornar eternamente responsável por aquilo que cativas, parece ser um compromisso demasiadamente longo e cujas. Por esses motivos, as relações humanas se tornam mais vazias.
Ao se fazer um manifesto pela Razão Sensível na Pós-Modernidade busca-se por em xeque todas essas características as quais decretam fontes de vida e morte do estar-junto-com-o-Outro-no-Mundo. A síntese percebida nessas relações não pode ser simplesmente descrita a partir dos pressupostos lógicos de uma Razão que aniquila os significados constituídos pelo sentir, mas, ao contrário, que permite uma “invaginação”, um sentido de compreensão interior o qual está em contato direto com o “Eu” e o “Outro”. É no tempo, muitas vezes mais lento, desse “momento interior” que o esclarecimento (Aufklärung) surge como uma epifania.
Na expressão agostiniana do ordo amoris, ou, nas palavras de Maffesoli, do Homo Eroticus, é que se encontram os melhores e mais sinceros motivos de se compreender na Razão Sensível o imperativo cognitivo e epistemológico do nosso tempo. Sem a sua presença, é improvável que o ser humano, principalmente na sua dimensão coletiva, consiga identificar as principais mazelas relacionais do seu tempo e trazer respostas necessárias às suas angústias e desesperos. Nesse caso, o amor, o cuidado, a fruição dos afetos, o sentir, a pulsão do viver e conviver se tornam expressões não apenas semanticamente vazias, porém relacionalmente mortas.
Insistir numa postura excessivamente moralista, a qual constitui o âmago de nossas ações e deveres, na rigidez dos papéis sociais exercidos no theatrum mundi chamado cotidiano, significa decretar a morte das metamorfoses que silenciosamente se manifestam na proximidade do “Eu-Outro-Nós-Mundo”. É preciso convocar cada Homem Mulher, Criança, Idoso, Adolescente para criar uma consciência de união sobre esse símbolo de nossa humanidade que é Razão Sensível.
A morte nos espreita a todo momento, sejamos humanos suficiente para reconhecer nossas limitadas forças a fim de mudar o impossível. Esse reconhecimento é o que nos salva de uma figura mítica humana incapaz de amar, de festejar, de chorar, de se enfurecer, de se entristecer. Humanos do mundo, uni-vos para entender a nossa humanidade a partir daquilo que temos em comum: nossas sensações e sentimentos. Eis a “astucia da razão”[1], de uma Razão Sensível.
Notas e Referências
[1] “[...] Hegel, despertador, iniciador, com Schelling e Höldering, de uma atitude aberta, questionadora, adogmática. Mas é ela uma das formas da “astúcia da razão” se o hegelianismo se tornou o nec plus ultra de todos os espíritos escravizados modernos?”. MAFFESOLI, Michel. A Ordem das Coisas: Pensar a Pós-Modernidade. [Edição Kindle] . Rio de Janeiro: Forense Universitária, pos. 655.
Imagem Ilustrativa do Post: Architecture // Foto de: Lenny DiFranza // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ldifranza/40116579923
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/