“Making a informer”

23/01/2016

 Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 23/01/2016

Com certeza a maioria dos leitores assistiu ao belo filme “Perfume de Mulher” (Scent of a Woman, EUA, 1992), no qual um adolescente pobre do interior dos EUA tem a oportunidade de estudar em um importante colégio de segundo grau e de alto nível de ensino. Ele é Charlie Simms interpretado por Chris O’Donnell. Simplicidade e ingenuidade levam Charlie a se juntar com alunos burgueses que aprontam um “trote” para o diretor do colégio.

Assim, em uma manhã, o diretor e o seu novo carro são atingidos por uma grande quantidade de tinta que mancha o veículo e o ego do educador, que é ridicularizado pelos alunos.

Charlie, embora não tenha participado do plano, viu quem planejou tudo. Junto a outro aluno, são interrogados e ameaçados se não cooperarem. Caso não ajudem a identificar os autores do “trote”, Charlie e seu amigo serão expulsos.

Uma espécie de “tribunal” interno do Baird será instaurado no retorno das aulas após o tradicional feriado do dia de Ação de Graças, tempo que o diretor do colégio dá a Charlie para pensar se delata ou não seus colegas. Em troca, o diretor oferece uma recomendação para que o aluno estude gratuitamente em Harvard. Charlie se vê diante de um dilema: terá que decidir entre delatar seus companheiros ou abandonar a escola e seus sonhos.

No dia do “julgamento” de Charlie entra em cena Al Pacino que interpreta um oficial reformado do Exército Americano, o Coronel Frank Slade. Frank está cego há cinco anos e deprimido, quando acabou contratando Charlie para acompanhá-lo a uma viagem a New York justamente no feriado de Ação de Graças. Além da épica cena em que Al Pacino (Frank) dá um show de interpretação dançando o belíssimo tango “Por una Cabeza” no salão de um prestigiado restaurante da cidade, o final do filme reserva outro espetáculo em que Frank faz um discurso em defesa do jovem Charlie.

Quando o diretor diz que vai recomendar a expulsão de Charlie por ele ser “acobertador e mentiroso”, Frank interrompe dizendo: “mas não um delator”.

Hodiernamente os valores que levaram o jovem simples e ingênuo Charlie a não delatar os colegas, ainda que para isso tivesse que sacrificar seus sonhos, estão sendo destruídos pela máxima segundo a qual “os fins justificam os meios”. A frase geralmente atribuída a Nicolau Maquiavel, na verdade nunca foi proferida pelo autor italiano, mas decorre de diversas interpretações da sua clássica obra O Príncipe, especialmente do trecho que diz: "Nos atos de todos os homens, em especial dos príncipes, em que não há tribunal a que recorrer, somente importa o êxito, bom ou mau. Procure, pois, um príncipe, vencer e preservar o Estado: os meios empregados sempre serão considerados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo sempre se deixa conduzir pelas aparências e por aquilo que resultada dos fatos consumados, e o mundo é composto pelo vulgo, e não haverá lugar para a minoria se a maioria não tiver onde se apoiar".[1]

No processo penal autoritário aonde prevalece a busca da punição a qualquer preço - ainda que para isso seja forçoso atropelar os princípios e garantias fundamentais próprias do processo penal democrático – o lema de que “os fins justificam os meios” é reverenciado pelos agentes do poder punitivo estatal. Nesta busca implacável por culpados em nome de uma sanha punitiva e de um fantasmagórico combate à criminalidade, a delação premiada vem ocupando cada vez mais espaço em prejuízo de valores éticos e morais.

Luigi Ferrajoli observa que “se a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é uma história dos erros[2] e toda vez que se fez o uso de medidas aflitivas – tortura, prisão preventiva, delação etc. – cria para os indivíduos perigos maiores que os gerados pelas “paixões dos culpados”. Segundo o jurista italiano, “o que faz do processo uma operação distinta da justiça com as próprias mãos ou de outros métodos bárbaros de justiça sumária é o fato que ele persegue, em coerência com a dúplice função preventiva do direito penal, duas diferentes finalidades: a punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes”. [3]

O esdrúxulo instituto da delação ou colaboração premiada tem sido utilizado de forma desgovernada, abusiva e arbitrária, principalmente, como meio de obtenção da confissão e da entrega de outros investigados/acusados em troca da liberdade.

Na maioria absoluta dos casos a delação vem daqueles que estão presos e que para obterem a liberdade mandam às favas os escrúpulos e acabam delatando outras pessoas. No processo penal autoritário, a prisão preventiva que deveria se pautar pelo caráter da necessidade e da excepcionalidade, além de sua natureza cautelar, vem se transformando em regra e em antecipação da tutela penal para, também, forçar a delação.

A prática da negociação e do escambo entre confissão e delação de um lado e impunidade ou redução de pena do outro, segundo Ferrajoli, “sempre foi uma tentação recorrente na história do direito penal, seja da legislação e mais ainda da jurisdição, pela tendência dos juízes, e sobretudo dos inquisidores, de fazer uso de algum modo de seu poder de disposição para obter a colaboração dos imputados contra eles mesmos”. [4]

Na abordagem que faz do direito penal de exceção, Ferrajoli refere-se ao “gigantismo processual[5] – elemento estrutural do direito penal de exceção – que se desenvolve horizontalmente, com “abertura de megainvestigações contra centenas de imputados, mediante prisões em frágeis indícios como primeiros e prejudiciais atos de instrução” (qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência). Graças ao “gigantismo penal” é que se pode, segundo Ferrajoli, “desenvolver um conúbio perverso entre encarceramento preventivo e colaboração premiada com a acusação: o primeiro utilizado como meio de pressão sobre os imputados para obter deles a segunda, e esta como instrumento de ratificação da acusação às vezes além de toda a verificação e inclusive de confrontos com a chamada do corréu”. [6]

Escrevendo sobre o “crime organizado”, Raúl Zaffaroni é categórico quando afirma que: “A impunidade de agentes encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: o Estado não pode se valer de meios imorais para evitar a impunidade [...] o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria”.[7]

O jovem Charles de “Perfume de Mulher”, correndo o risco de ser expulso do colégio e abandonando seus sonhos, opta pelos princípios éticos e morais e não dedura seus colegas de colégio, mesmo sabendo que poderia pagar um preço alto pela sua posição.

Não obstante, ao final do filme, a ética, a moral e o caráter acabaram vencendo a hipocrisia, a chantagem e o mau-caratismo.

É verdade que Charles não estava privado da sua liberdade, também é verdade que não estava submetido e sofrendo as amarguras do processo penal e, tampouco, as pressões dos agentes do poder punitivo estatal (polícia e Ministério Público). De igual modo, não estava sob a pressão de um juiz criminal.

No epílogo do filme, a peroração de Frank (Al Pacino) em defesa de Charles (Chris O’Donnell) mostra, entre outras coisas, que pior do que uma mentira para proteger seus colegas e não trair suas convicções é ser delator, dedo-duro, alcaguete... A “mentira” e o “encobrimento” no caso estavam abarcados por valores éticos e morais, o que, definitivamente, não era o caso da delação pretendida pelo diretor da escola.

Para Immanuel Kant, a mentira se apresenta como “a maior violação do dever de um ser humano consigo mesmo, considerado meramente como um ser moral”. Na doutrina do direito, afirma o filósofo alemão, “uma inverdade é chamada de mentira somente se violar o direito de outrem; mas na ética, onde nenhuma autorização é derivada da inocuidade, fica claro de per si que nenhuma verdade intencional na manifestação dos pensamentos de alguém pode eximir-se dessa áspera denominação, pois a desonra que acompanha uma mentira também acompanha um mentiroso, como sua sombra”. [8]

Contestando Kant, Benjamin Constant afirma que:

O princípio moral que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado incondicionada e isoladamente, tornaria impossível qualquer sociedade. Temos a prova disso nas consequências diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira seria um crime em relação a um assassino que nos perguntasse se o nosso amigo, perseguido por eles, não está refugiado em nossa casa”.[9]

No ensaio, Das reações políticas, publicado no fascículo VI, n. 1, da revista A França no ano 1797, o filósofo francês refuta Kant, afirmando que: “Dizer a verdade é um dever. O conceito de dever é inseparável do conceito de direito: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de um outro. Lá, onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade, portanto, só é um dever em relação àqueles que têm um direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito à verdade que prejudica aos outros”. [10]

Assim, com Benjamin Constant, entende-se que o acusado/preso não tem o dever de dizer a verdade (pelo direito constitucional de não se incriminar) e porque “nenhum homem tem direito à verdade que prejudica aos outros”. Ainda que o acusado esteja se beneficiando com a redução da pena, estará ele prejudicando aos outros caso opte por delatar.

Em relação ao direito ao silêncio e à vedação da auto-incriminação, Bottino, em obra sobre o tema, afirma que no sistema comprometido com o Estado democrático de direito “o interrogatório deixa de ser um meio de prova para transformar-se em meio de defesa, mais especificamente de autodefesa (...). A obtenção da verdade já não é o objetivo mais importante, já que se garante ao individuo que se oponha a essa busca por meio de sua recusa em responder às perguntas de seu interrogatório”. [11]

Por tudo, mas, em especial, em nome da dignidade da pessoa humana que em uma concepção Kantiana[12] tem o homem, e, de uma maneira geral, todo ser racional, como um fim em si mesmo, não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, é que se entende que a delação premiada ou qualquer outro nome que se queira dar a este instituto fere a ética e o direito.

Infelizmente, tem-se cada dia menos “Charlies”, menos valores, menos princípios, menos ética, menos homens e mais covardes, mais delatores, mais informantes e torturadores, todos alimentados pelo Estado penal que cada dia mais opera sob o modo “Making a informer”.

Belo Horizonte, 20 de janeiro de 2016.


Notas e Referências:

[1] MAQUIAVEL – Vida e Obra. Os Pensadores: São Paulo: Nova Cultura, 2000.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Ob. cit.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão...ob. cit.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão... ob. cit.

[6]  Idem.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. “Crime organizado”: uma categorização frustrada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Instituto Carioca de Criminologia, 1996.

[8] KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauro: Edipetro, 2003.

[9] “KANT - Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens”. Trad. Theresa Calvet de Magalhães e Fernando Rey Puente. Os filósofos e a mentira (Fernando Rey Puente, org.). Belo Horizonte, Editora UFMG; Departamento de Filosofia – FAFICH/UFMG, 2002.

[10] KANT - Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens”. Trad. Theresa Calvet de Magalhães e Fernando Rey Puente. Os filósofos e a mentira (Fernando Rey Puente, org.). Belo Horizonte, Editora UFMG; Departamento de Filosofia – FAFICH/UFMG, 2002.

[11] BOTTINO, Thiago. O direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

[12] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2002.


Sem título-1

. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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