Por Rômulo de Andrade Moreira [1]
O Superior Tribunal de Justiça acabou de decidir que enquanto todos os processos ligados à operação lava jato tramitam no Paraná, caberá à Justiça Comum Estadual do Maranhão analisar a suspeita de que, durante o Governo de Roseana Sarney, um membro do alto escalão teria recebido propina do doleiro Alberto Youssef.
A decisão foi proferida pelo Ministro Luís Felipe Salomão, em processo sob sigilo judicial, em que avaliou a competência de uma sindicância aberta depois que o doleiro relatou a entrega de dinheiro. O Juiz Federal Sergio Fernando Moro, que preside o processo original, queria que o caso tramitasse na 13ª. Vara Federal de Curitiba. Ele enviou o pedido ao Ministro há cerca de quinze dias, apontando que a investigação sobre o caso no Maranhão apresentaria conexão com os investigados de Curitiba, de doleiros a empreiteiros com contratos na Petrobras.
O Ministro rejeitou os argumentos do Juiz Federal, ressaltando, outrossim, que o processo deve correr na Justiça Comum Estadual.
Errou, portanto, duas vezes, o Magistrado: primeiro não há falar-se em qualquer hipótese de conexão (art. 76, I, II e III do Código de Processo Penal); segundo: a competência não se insere entre aqueles crimes elencados no art. 109 da Constituição Federal.
Aliás, “advogados de outros réus já questionaram a competência do juiz federal para julgar todos os processos, até agora sem sucesso. Os argumentos variam, de questões geográficas — a sede da Petrobras está no Rio de Janeiro, por exemplo — à tese de que todo o início das investigações deveria ter passado pelo Supremo Tribunal Federal — já que foram citados deputados com prerrogativa de foro.” (Revista Consultor Jurídico - acesso em 05 de fevereiro de 2015, 8h).
Pois é.
Anteriormente já havia sido também notícia que "o juiz federal Sergio Fernando Moro não poderia ser o titular da operação “lava jato”. Segundo documentos apresentados à Justiça pela defesa dos executivos da empresa, Moro puxou para si inquérito que deveria estar no Supremo Tribunal Federal por causa da conexão entre réus, e não entre fatos. E em pelo menos um momento, atuou como vítima, testemunha, acusador e juiz do mesmo fato. As acusações estão em exceções de suspeição e impedimento e de incompetência, levadas à Justiça no dia 21 de janeiro. A defesa alega que a origem da “lava jato” é a Ação Penal 470, o processo do mensalão julgado em 2012 pelo Supremo, e o primeiro investigado era o então deputado federal José Janene (PP), morto em 2010.Em trâmite em Curitiba, a operação “lava jato” investiga o que o Ministério Público Federal diz ser um esquema de pagamento de propina a diretores da Petrobras na assinatura de grandes contratos. A propina, segundo o MPF, é paga por empreiteiras interessadas nos contratos, e entre as empresas está a OAS.De acordo com a defesa da companhia, em julho de 2006 chegou à Justiça Federal do Paraná um inquérito que investigava indícios de que Janene estava em contato com Alberto Youssef para que lavasse dinheiro oriundo do mensalão. Youssef, réu confesso da “lava jato”, é acusado de ser o operador financeiro do esquema descrito pelo MPF, por meio de lavagem de dinheiro e evasão de divisas.Esse inquérito foi levado à 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, onde trabalhava o juiz Sérgio Moro no dia 18 de julho de 2006. No mesmo dia, Moro distribuiu o processo para si mesmo alegando que os fatos ali narrados eram ligados a outro caso que também tramitava na 3ª Vara.O caso em questão era a apuração de crimes financeiros na privatização do Banestado, a Ação Penal que deu fama nacional a Sergio Moro. Youssef era um dos principais colaboradores da investigação, também em regime de delação premiada, assim como vem fazendo com a “lava jato”. No dia seguinte à chegada do inquérito sobre Janene às mãos de Moro entrou em vigor a Portaria 42/2006, que determinou a redistribuição de 50% dos casos em trâmite na 2ª Vara para a 3ª Vara Federal Criminal. A exceção eram casos que estivessem conexos a processos em andamento na 2ª Vara. Era o início da especialização de varas federais em crimes financeiros.De acordo com a defesa da OAS, Moro sabia que processos seriam redistribuídos no dia seguinte, e por isso agiu para manter um caso que decorreu do mensalão consigo. “Disso sabendo”, diz uma das exceções, Moro determinou, “em evidente manipulação de competência, a distribuição por dependência intuito persona do ‘inquérito Janene’ à ‘primeira delação Youssef’.“Inquérito Janene” é como os advogados da OAS chamam a investigação sobre a lavagem de dinheiro do ex-deputado. “Primeira delação Youssef” é a colaboração do doleiro com a apuração do Banestado.O problema visto pelos advogados é que, além de Janene na época ser deputado em exercício de mandato, e só poderia ser investigado pelo STF, o caso do Banestado estava arquivado e já havia transitado em julgado. “A distribuição por dependência deu-se em relação a uma pessoa, não a fatos”, escreveu a defesa, pois “a ‘delação Youssef’ não guardava absolutamente nenhuma relação fática com o ‘inquérito Janene’, exceto pela mesma pessoa ser investigada”.Uma das acusações contra os executivos da OAS é que eles apresentaram documentos falsos à Justiça Federal com o intuito de dissimular as relações entre a empresa e Youssef. Como outra das acusações era de lavagem de dinheiro, Moro determinou à empreiteira que apresentasse contatos, notas fiscais e provas de que a consultoria de Youssef de fato prestou serviços à companhia. O que os advogados alegam é que cópia desses documentos já haviam sido apreendidos em diligências da PF, e portanto já estavam em poder do juízo. Mas, como se tratava de uma ordem judicial, obedeceram. E, de posse de nova cópia dos documentos, Moro concluiu que os executivos da OAS, “de modo consciente e voluntário, tendo domínio dos fatos e na qualidade de autores mediatos deste crime, também fizeram uso de documentos falsos por duas vezes, fraudando a instrução processual”. Sob esse argumento foi decretada a prisão preventiva de José Aldemário Pinheiro Filho, presidente da OAS, e Agenor Franklin Magalhães Medeiros, diretor internacional da companhia. Só que, segundo os advogados, nem o Ministério Público havia ainda alegado o uso de documentos falsos. Foi o próprio juiz que, sozinho, chegou a essa conclusão e determinou a prisão dos réus.Isso levou Moro à condição de testemunha, acusador e juiz de um mesmo incidente, segundo a defesa. “Como se vê, é impossível dissociar a figura do Magistrado excepto da própria narrativa do crime, afinal, foi ele quem determinou a apresentação do documento, ele quem os recepcionou nos autos e era o seu destinatário final.”Para os advogados, essa atitude leva a concluir que o juiz federal Sergio Fernando Moro não possui o distanciamento necessário para julgar o caso. “O excepto [Moro] já prejulgou os excipientes e, exatamente por isso, não possui isenção suficiente para julgá-los em definitivo.” Fonte: Revista Consultor Jurídico (acesso no dia 23 de janeiro de 2015).
Ora, é preciso atentar para o direito ao devido processo legal, consagrado pela Constituição Federal.[2] “A doutrina é unânime em atribuir a origem da cláusula do devido processo legal ao art. 39 da Magna Carta, outorgada, em 1215, por João Sem-Terra a seus barões, na Inglaterra, identificando-a como a law of the land. A expressão “due processes of law” foi usada pela primeira vez por Eduardo III, em 1354, também na Inglaterra. Embora tivesse, originariamente, somente um sentido de luta de um grupo social, os barões, contra o poder do monarca, o alcance do devido processo foi sendo ampliado com o passar do tempo. Trazida para as colônias da América do Norte, embora não referida na Constituição dos Estados Unidos, foi consagrada nas Emendas V e XIV. Nesse país, o devido processo evoluiu de um caráter meramente formal para um substancial, ensejando o controle de constitucionalidade de leis, sempre que estas não respeitassem o substantive due process. Além disso, de uma concepção jus naturalista, que entendia a garantia como um princípio universal, passou-se a uma compreensão do devido processo como um princípio histórico, consoante os valores sociais vigentes num determinado tempo e lugar.”[3]
Como ensina Alberto Binder, “ninguém pode ficar indiferente em face da efetiva vigência destes direitos e garantias. Eles são o primeiro – e principal – escudo protetor da pessoa humana e o respeito a estas salvaguardas é o que diferencia o Direito – como direito protetor dos homens livres – das ordens próprias dos governos despóticos, por mais que estas sejam redigidas na linguagem das leis.”[4]
Por outro lado, além do texto constitucional e do Código de Processo Penal, devemos nos referir aos pactos internacionais subscritos e adotados pelo nosso Direito Positivo.
Assim, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92 estabelece em suas cláusulas alguns preceitos garantidores e reveladores de um devido processo legal, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de direito ou garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º.
Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”[5]: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.[6]
Hoje, com a Emenda Constitucional nº. 45, temos uma nova disposição constitucional, contida no art. 5º., § 3º., da Constituição Federal, segundo a qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
E o Juiz Natural?
Tal garantia está consagrada no art. 5º., XXXVII e LIII da Constituição, bem como nos arts. 8º. e 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Segundo José Frederico Marques, o princípio do Juiz Natural “surgiu formulado com esse nome, ao que parece, na Carta Constitucional francesa de 1814. (...)” Ainda em França, na Carta de 1830, figurava nos arts. 53 e 54. Contudo, Faustin Hélie “mostrou que o princípio do juiz natural remonta aos primeiros textos constitucionais da revolução.” Para Bluntschli, “a origem do princípio está na regra do direito medieval de que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares.”[7]
O Juiz Natural é aquele constitucional, legal e previamente competente para julgar determinada causa criminal, imparcial e independente, garantindo-se-lhe a inamovibilidade (arts. 95, II e 93, VIII, CF/88), a irredutibilidade de vencimentos (art. 95, III, CF/88) e a vitaliciedade (art. 95, I, CF/88).
Vejamos a lição de Rogério Lauria Tucci:
“(...) O acesso do membro da coletividade à Justiça Criminal reclama, também como garantia inerente ao 'due processo of law' especificamente no processo criminal, a pré-constituição do órgão jurisdicional competente, sintetizada, correntemente, na dicção do juiz natural (...) É por isso, aliás, que incidente ao processo penal a máxima 'tempus criminis regit iudicem', deve prevalecer, para o conhecimento e julgamento das causas criminais, a organização judiciária preexistente à prática da infração penal; (...) Ao imputado confere (a garantia do juiz natural) a certeza da inadmissibilidade de processamento da causa e julgamento por juiz ou tribunal distinto daquele tido por competente à época da prática da infração penal.”[8]
Segundo Edgar Silveira Bueno, o Princípio do Juiz Natural “teve origem, segundo afirma Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, citando Ernst Beling: 'como limitação do poder absoluto e para aprofundar a distinção entre a administração e a justiça, cuja necessidade já se impunha desde o Iluminismo. Nesse período, freqüentemente o rei, o príncipe, enfim, o chefe de Estado, intrometia-se no Judiciário, delegava suas atribuições a outras pessoas e impedia, assim, que o órgão com atribuição específica para julgar se pronunciasse em determinado processo (...) Essa foi, em síntese, a razão fundamental da instituição do princípio do juiz natural '. (...) Há dois dispositivos constitucionais que asseguram o respeito ao princípio do juiz natural em nosso texto magno. São as regras do art. 5º, XXXVII e LIII, segundo as quais não se admite no Brasil a existência de juízo ou Tribunal de exceção e impõe-se que as pessoas só podem ser processadas e julgadas pelas autoridades competentes. Esses dispositivos servem para garantir ao indivíduo que nenhum juízo ou tribunal será criado para apurar um delito que já foi praticado.”[9]
Ada Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antonio Carlos de Araújo Cintra afirmam que “as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmente competente. Desse modo, a garantia desdobra-se em três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa à discricionariedade de quem quer que seja. (...) Entende-se que as alterações da competência introduzidas pela própria Constituição após a prática do ato de que alguém é acusado não deslocam a competência criminal para o caso concreto, devendo o julgamento ser feito pelo órgão que era competente ao tempo do fato (em matéria penal e processual penal, há extrema preocupação em evitar que o acusado seja surpreendido com modificações posteriores ao momento em que o fato foi praticado).”[10]
Na jurisprudência também encontramos o reconhecimento do Juiz Natural:
“TRF 3ªR – CC 2004.03.00.018417-5 (6200) – 1ªS – LUIZ STEFANINI - DJU 2 29.05.2007 - PROC. : 2004.03.00.018417-5 CC 6200 - RELATOR : DES.FED. LUIZ STEFANINI / PRIMEIRA SEÇÃO - REL. PARA ACÓRDÃO: DES. FED. COTRIM GUIMARÃES – O princípio do juiz natural, consagrado na Constituição Federal, é o critério que norteia as regras de competência no processo penal.2- A leitura do art. 70 do Código de Processo Penal, consagradora da regra do forum delicti comissi, deve ser feita de modo conjugado com o princípio do juiz natural.3- Com suporte no princípio da perpetuatio jurisditionis, segundo o qual interferências posteriores à fixação da competência não devem alterá-la, declaro competente para o processamento da presente ação criminal o juízo federal da 2ª Vara Criminal de São Paulo.4- Conflito Negativo de Competência procedente.”
Portanto, Juiz Moro: atenção!
Veja esta lição de Bacigalupo: o devido processo “aparece como un conjunto de principios de carácter suprapositivo y supranacional, cuya legitimación es sobre todo histórica, pues proviene de la abolición del procedimiento inquisitorial, de la tortura como medio de prueba, del sistema de prueba tasada, de la formación de la convicción del juez sobre la base de actas escritas en un procedimiento fuera del control público. Es, como la noción misma de Estado democrático de Derecho, un concepto previo a toda regulación jurídico positiva y una referencia reguladora de la interpretación del Derecho vigente.” (grifo no original).[11]
Oxalá não seja este mais um caso em que se perde a oportunidade de condenar supostos culpados em razão da falta de observância da Constituição pelos órgãos estatais.
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu em Direito Processual Penal, pela Universidade de Salamanca/Espanha. Especialista em Processo pela UNIFACS.
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[2] O direito tem um caráter declaratório, enquanto a garantia tutela a sua efetividade. Ex.: o direito à liberdade vem garantido pelo habeas corpus.
[3] Luciana Russo, “Devido processo legal e direito ao procedimento adequado”, artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, na edição do dia 26 de agosto de 2007.
[4] Introdução ao Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 43, na tradução de Fernando Zani.
[5] Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91.
[6] “Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel.” (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116).
[7] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, p. 188, São Paulo: Bookseller, 1998.
[8] Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p.121/123.
[9] O Direito à Defesa na Constituição, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 33.
[10] Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros, 1995, p. 52.
[11] El Debido Proceso Penal, Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 13.
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