Mais um capítulo: Apreciação de “veto” e vício de iniciativa no PLS sobre aposentadoria compulsória de servidor público – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

15/12/2015

No meio do turbilhão dos acontecimentos políticos das últimas semanas[1], eis que o Congresso Nacional, na calada da noite do dia 01 de Dezembro de 2015, derrubou o "veto" (negativa de sanção) aposto ao Projeto de Lei do Senado (PLS) 274/2015 que visava regulamentar o art. 40, §1º, inciso II da Constituição Federal com a redação conferida pela Emenda Constitucional 88/2015 para possibilitar aposentadoria compulsória aos servidores públicos aos 75 (setenta e cinco) anos de idade[2] e que resultou na Lei Complementar n. 152/2015. Tínhamos analisado, aqui mesmo neste importante espaço de discussão, a decisão monocrática proferida pela Mina. Rosa Weber na ADPF 372 que tinha como objeto exatamente a negativa presidencial de sanção ao referido projeto de lei[3].

Nosso receio, naquela oportunidade, acabou por se concretizar, qual seja, o Congresso Nacional desconsiderou a participação do Poder Executivo no processo de produção das leis e apreciou a negativa de sanção aposta a projeto de lei complementar eivado de vício de iniciativa. Vale dizer, a inadequada compreensão do devido processo legislativo no nosso sistema presidencialista de governo possibilita a ideia de que o “veto” (negativa de sanção) é superável mesmo nos casos de vício de iniciativa, alijando a possibilidade de participação do Chefe de Estado e de Governo na formação da vontade democrática.[4]

Voltamos, então, ao tema para repetir algo que ainda não está claro tanto pelo entendimento que o Supremo Tribunal Federal possui, quanto por parte significativa da dogmática constitucional brasileira que, simplesmente, desconhece a diferença no desenho estrutural do processo legislativo nos sistemas de governo republicano-parlamentaristas e presidencialistas.

Com base nos ensinamentos de Menelick de Carvalho Netto[5], dissemos que “a participação do Chefe de Estado no procedimento legislativo se dá de modo distinto, seja no presidencialismo republicano-democrático, seja no parlamentarismo republicano. No presidencialismo, a participação do Chefe de Estado, que, no caso brasileiro e norte-americano, é também de Governo, se dá por meio da sanção e da negativa de sanção na fase constitutiva da lei. E, no parlamentarismo republicano, a participação do Chefe de Estado se dá por meio de eventual veto, posteriormente, portanto, à fase de constituição da lei, como controle da atividade legislativa, quando da fase de aquisição de eficácia”[6]. A distinção na participação do Chefe de Estado no processo de formação das leis entre os sistemas de governo leva a que, necessariamente, também se distinga a recusa da vontade afirmativa do Chefe de Estado (que é também de Governo) no presidencialismo.

Ora, no sistema presidencialista de governo a participação do Chefe de Estado e de Governo dá-se da seguinte forma: a sanção e sua negativa são partes da fase constitutiva da lei, daí que “a lei não está constituída e a manifestação de vontade do Chefe de Estado se soma à vontade parlamentar para configurar um único ato complexo”[7], seja para sancionar, seja para negar a sanção. No sistema parlamentarista, a participação do Chefe de Estado se dá em fase posterior, isto é, “a lei já perfeita não adquiriu ainda eficácia, ficando condicionada, caso o Chefe de Estado a vete, à reaprovação parlamentar”[8].

Por isso, com base em Menelick de Carvalho Netto, dissemos a negativa de sanção por vício de iniciativa é a única hipótese de recusa absoluta de sanção, já que uma eventual apreciação pelo Congresso dessa negativa excluiria a participação do Chefe de Estado e do Executivo do processo de formação das leis[9].

Vale mencionar, ainda, que a Ministra Rosa Weber na decisão monocrática proferida na ADPF 372, ao sinalizar que seria válido o Congresso Nacional superar a negativa de sanção em projetos de lei com vício de iniciativa, não se atentava para o fato de que é absolutamente inconstitucional, em nosso edifício constitucional, alijar a vontade do Chefe do Poder Executivo do processo de formação das leis.

Dito e feito. O Congresso Nacional, ao apreciar a negativa de sanção da Presidente da República ao PLS 274/2015, incide em grave inconstitucionalidade sob o ponto de vista sistêmico-estrutural da configuração do nosso processo legislativo e da separação de poderes, tal qual delimitados pela Constituição da República de 1988.

A Lei Complementar 152/2015, resultante do Projeto de Lei do Senado 274/2015, nasce com vício de inconstitucionalidade por desconsiderar a vontade do Chefe do Poder Executivo no processo de constituição do referido ato normativo, ofendendo de modo frontal a divisão de poderes de nossa Constituição da República.

No mesmo dia da promulgação da Lei Complementar 152/2015, a AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho ajuizaram Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal alegando, em síntese, que o referido ato legislativo padece de vício de inconstitucionalidade formal, já que apenas o STF poderia propor lei que verse sobre aposentadoria de magistrados (art. 93 da CR/88); ou, em se tratando de servidores públicos federais, ao Presidente da República (art. 61, §1º, inc. II, alínea “c” da CR/88)[10].

O próprio Supremo Tribunal Federal, em sessão administrativa, manifestou-se acerca do então PLS. n. 274/2015 asseverando que, por se tratar de lei complementar, não haveria iniciativa privativa, cabendo referido ato legislativo para complementar conteúdo de dispositivo constitucional de forma linear[11].

Essa interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal em sessão administrativa – diga-se de passagem – desconsidera a própria literalidade do Texto Constitucional e da própria estrutura das espécies legislativas plasmadas na Constituição da República de 1988.

Em primeiro lugar, o art. 61, caput, expressamente utiliza a adjetivação “complementares” e “ordinárias” ao disciplinar a iniciativa das leis para dizer que, regra geral, caberá a qualquer membro ou Comissão das Câmaras dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos. Daí se segue que é da vontade do Poder Constituinte originário a disciplina da iniciativa legislativa das leis complementares e ordinárias.

Em segundo lugar, por mais que o art. 61, §1º da Constituição da República, ao prescrever a iniciativa privativa do Presidente da República para deflagrar o processo legislativo, tenha se referido apenas às “leis” sem adjetivar, tem-se que leis, aqui, é o sentido genérico que se refere tanto às ordinárias, quanto às complementares[12], seguindo a disciplina do “caput” do artigo, já que, em boa técnica legislativa, os parágrafos se vinculam ao “caput” (art. 10 da LC. 95/1998). Ora, este fala em “leis ordinárias e complementares”. Se o constituinte quisesse fazer a diferença para criar regra apenas para um tipo de categoria legislativa e não para  outra teria de ter especificado isso.

Não bastasse a própria literalidade dos dispositivos normativos mencionados, vale considerar de que modo a Constituição da República estabeleceu uma diferenciação material e formal entre as leis complementares e as leis ordinárias. Na diferença material, caberá à espécie lei complementar para matérias taxativamente previstas no Texto Constitucional; para todas as demais que a Constituição não prevê caberá lei ordinária. A diferença formal, de outro lado, diz respeito ao quórum para aprovação, exigindo-se maioria absoluta para as leis complementares (art. 69 da CR) e maioria simples para as leis ordinárias (art. 47 da CR)[13]. Estas são as únicas diferenças entre elas. Aliás, por mais que se diga que leis complementares “complementam” a Constituição, essa é uma definição puramente formal para diferenciá-las de outras espécies normativas, uma vez que as ordinárias igualmente fazem a mesma coisa todas as vezes que a Constituição diz que determinado direito/instituto será regido “na forma da lei”.

Dessa forma, como se percebe, não há qualquer diferença adotada pela Constituição da República quanto à iniciativa legislativa entre leis complementares e ordinárias, sendo ilegítimo ao Supremo Tribunal Federal diferenciá-las nesse aspecto quando o Texto Constitucional não o fez, sob pena de atuar incorretamente como uma forma não autorizada de Poder Constituinte permanente.

Assim, a discussão aqui não é se há ou não iniciativa legislativa privativa para as leis complementares. A questão que deve ser posta, mais uma vez, é a de se o Congresso Nacional poderá superar ou não a negativa de sanção em projetos de lei de iniciativa privativa do Presidente da República, quando há vício de iniciativa, desrespeitando, assim, a disposição constitucional que lhe garante a tomada de iniciativa em determinadas leis. A resposta é não, o Congresso Nacional não tem competência para superar a negativa de sanção em projetos de lei de iniciativa privativa do Presidente da República, quando há vício de iniciativa.

Concluímos: se pensarmos que a Constituição da República, ao adotar o presidencialismo republicano-democrático, atribuiu importante função ao Chefe do Poder Executivo no processo legislativo, então é impossível reconhecer validade constitucional à apreciação da negativa de sanção pelo Congresso Nacional no caso de projetos de lei com vício de iniciativa. Razão pela qual deve ser declarada a inconstitucionalidade da Lei Complementar 152/2015.


Notas e Referências:

[1] Referimo-nos ao recebimento do pedido de impeachment contra a Presidente da República realizado no dia 03 de Dezembro pela Presidência da Câmara dos Deputados e as consequências jurídicas e políticas que daí adveio: BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, http://emporiododireito.com.br/controle-judicial-do-processo-legislativo-de-impeachment/, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[2] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-02/congresso-derruba-veto-extensao-compulsoria-aos-75-anos> , acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[3] Disponível em:< http://emporiododireito.com.br/o-sentido-constitucional-da-negativa-de-sancao-presidencial-e-o-devido-processo-legislativo-no-sistema-presidencialista-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-372-e-suas-implicacoes-por-alexandre-gust/>, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[4] Remetemos, mais uma vez, à bibliografia que fundamentou nossa manifestação anterior: CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. Também em CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3.ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016; STRECK, Lenio L. e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Comentário ao art. 59; art. 61; art. 63 a 69. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (coord.) Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1117 et seq.

[5] CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

[6] Disponível em:< http://emporiododireito.com.br/o-sentido-constitucional-da-negativa-de-sancao-presidencial-e-o-devido-processo-legislativo-no-sistema-presidencialista-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-372-e-suas-implicacoes-por-alexandre-gust/>, acesso em 14 de Dezembro de 2015. Conferir, pois, CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, e o diálogo que o referido autor mantém com as obras de Paolo Biscaretti di Ruffia (Direito constitucional: instituições de direito público. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984) e Sergio Galeotti (Contributo alla teoria del procedimento legislativo. Milano: Giuffré, 1985).

[7] Disponível em:< http://emporiododireito.com.br/o-sentido-constitucional-da-negativa-de-sancao-presidencial-e-o-devido-processo-legislativo-no-sistema-presidencialista-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-372-e-suas-implicacoes-por-alexandre-gust/>, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[8] Disponível em:< http://emporiododireito.com.br/o-sentido-constitucional-da-negativa-de-sancao-presidencial-e-o-devido-processo-legislativo-no-sistema-presidencialista-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-372-e-suas-implicacoes-por-alexandre-gust/>, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[9] Disponível em:< http://emporiododireito.com.br/o-sentido-constitucional-da-negativa-de-sancao-presidencial-e-o-devido-processo-legislativo-no-sistema-presidencialista-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-372-e-suas-implicacoes-por-alexandre-gust/>, acesso em 14 de Dezembro de 2015. Conferir: CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. p. 259.

[10] Petição disponível em< http://s.conjur.com.br/dl/adi-anamatra-amb.pdf>, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[11] “Para Marco Aurélio, ‘há um erro jurídico’ na mensagem de veto da presidente . O projeto de lei regulamenta o artigo 40, parágrafo 1º, inciso II. O dispositivo diz que os servidores públicos da União, dos estados e dos municípios serão aposentados compulsoriamente aos 70 ou aos 75 anos de idade, ‘na forma de lei complementar’. Foi a redação dada pela chamada PEC da Bengala, que aumentou a idade da compulsória para ministros do Supremo, dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União. Ao justificar o veto ao texto integral da lei, a presidente Dilma se baseia no artigo 61, parágrafo 1º, inciso II, da Constituição. O caput define a quem cabe a iniciativa das leis, complementares e ordinárias. O inciso II do parágrafo 1º diz que são de iniciativa ‘privativa do presidente da República’ leis que disponham sobre servidores públicos da União. E é aí que está o ‘erro jurídico’ dos assessores da presidente, conforme a explicação do ministro. Ao falar em ‘lei’, o dispositivo citado na mensagem de veto trata de lei ordinária. Leis complementares são, como o nome diz, infraconstitucionais, mas complementares ao que diz a Constituição Federal. Portanto, podem ser propostas por quaisquer dos enumerados no caput do artigo 61: ‘Qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição’”. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-out-23/dilma-contrariou-stf-vetar-lei-adia-aposentadoria-servidor, acesso em 14 de Dezembro de 2015.

[12] STRECK, Lenio Luiz, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Comentários ao art. 61. In: CANOTILHO, J.J. Gomes, MENDES, Gilmar Ferreira, SARLET, Ingo Wolfgang, STRECK, Lenio Luiz (orgs.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1141.

[13] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2013. p. 848.


 

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