Raskólnikov tinha uma concepção teórica sobre a humanidade e, claro, a respeito de seu próprio lugar entre os humanos, que ele classificava em comuns e incomuns. O personagem de Dostoiéwski havia-se como incomum.
Às pessoas ordinárias se reserva a obediência às normas gerais; as incomuns podem tudo. Justificado como causa de si mesmo, Raslólnikov praticou um crime, mas houve complicações e delas decorreram culpa.
Crime e Castigo é um monumento à literatura. Freud considerou o romance genial e encontrou no seu herói a topografia da psique: id, ego, superego. Eu vejo no livro também questões de exercício de poder.
Quando querem, pessoas inteligentes e com capacidade de argumentar conseguem justificar o conveniente. Muitas vezes, quando galgam o poder, em nome da sua causa, vão aos desmandos: praticam crimes.
No livro, havia a usurária, seu dinheiro era socialmente inútil. As posses da velha estariam bem melhor usadas como meio de pagamento dos estudos do jovem inteligente que sempre poderia contribuir com o mundo.
Ora, “no Brasil, há uma burguesia ociosa, 300 deputados picaretas, um Judiciário covarde”. Somos a salvação da pátria. Dado que incomuns, podemos praticar o crime de roubar e corromper como meio para realizar o nosso fim.
O lulopetismo deu-se ao crime e sofre o castigo. Não estou entre os que gozam ódio de classe com isso. Reconheço a importância do PT, mas jamais justificarei o que os governos petistas cometeram, como vejo a intelligentzia nacional fazendo.
Ou desculpam a ladroeira em nome da epopeia charmosa do operário que virou presidente, ou das vantagens que auferem como incentivo cultural, ou por se listarem como incomuns, com licença para mais do que podem os normais.
Talvez tenham-se como intelectuais orgânicos – Gramscismo – a serviço de alguma revolução cultural que seria movida por dinheiro de corrupção e, aí, a razão superior dos gloriosos fins justificaria os meios vulgares.
Mas, não. Nada disso! Não há hermeneuta da filosofia que ponha os Cadernos a avalizar esses métodos de “expropriação” do erário. Ladrão é ladrão. A nata intelectual e artística brasileira apoia um projeto de poder de péssima reputação.
Nossa vanguarda trai sua serventia de crítica esclarecida e oferece-se ao engajamento servil ao poder. Abandona a desconfiança metódica dos poderosos e a condenação do erro para, simplesmente, agradar e agradar-se.
Falam em golpe da direita, em preservação da esquerda. Mas, que é ser de esquerda, afinal? Dúvida nenhuma de que ser de esquerda é defender os direitos materiais do povo neste Brasil que sempre contemplou os privilegiados.
Mas a esquerda honesta também reconhece os direitos formais, incluindo as normas jurídicas que punem o delito de corrupção, passiva ou ativa, cujo objeto jurídico é especialmente a moralidade da administração pública.
Já nessas alturas das investigações policiais, das denúncias e dos processos judiciais, com tanta comprovação documentada de corrupção, não cabe falar em golpe contra a esquerda. Ser de esquerda não dá licença nenhuma para roubar.
Aliás, a esquerda no poder (à qual vejo como de direita) é que golpeia o povo, seja lhe traindo a confiança política, seja lhe vendendo uma economia falsificada, seja por incompetência administrativa, seja roubando.
Ademais, nisso, de probidade e de consequências por atos improbos, todos estamos submetidos a uma igualdade formal necessária. Todos podemos ser processados, julgados, e, eventualmente, afastados do poder e até da liberdade.
Quando George Orwell escreveu A Revolução dos Bichos ele não o fez para que o Ocidente dele lançasse mão como denúncia do comunismo. Orwell era socialista. Sua acusação era ao stalinismo, ao estado policial.
O Brasil não está contra a esquerda em si, afinal elegeu uma pretensa esquerda por quatro mandatos consecutivos. Os brasileiros estão contra um governo que se declara de esquerda enquanto rouba, deixa roubar e “normaliza” a roubalheira.
Os lulopetistas nivelam por baixo: “Sempre se roubou; todo mundo rouba”. E ainda alegam ter uma causa redentora, ser incomuns e ser mais iguais do que os outros. Enfim, justificados a si por si mesmos, poderiam roubar mais.
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