“Eu me culpo. Eu me culpo todos os dias da minha vida por eles estarem passando por isso, porque a culpa foi minha. (...) Primeira coisa que eu quero fazer quando eu sair daqui é buscar meus filhos. (...) Não valeu de nada...” (Patrícia, 25 anos)[1]
Em decisão histórica, bem como inesperada - ante o fato de vivermos sob regime de exceção, especialmente no que diz respeito ao Judiciário - a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em sede do julgamento do Habeas Corpus coletivo nº 143.641[2], na data de 20/02/2018, concedeu, por maioria (4 votos x 1), a ordem para substituir as prisões preventivas de todas as presas gestantes e mães de crianças[3] em prisão domiciliar, sem prejuízo da aplicação de outras medidas cautelares, conforme amplamente noticiado. A aplicação do writ ainda foi estendida às “mães de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas”.
Salienta-se que não estão incluídas na ordem concessiva as mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade, tampouco aquelas que respondem pela prática de crimes que envolvam violência ou grave ameaça contra os próprios descendentes. Ou seja, ao contrário do que disseram incautos ou críticos de má-fé, a decisão não se aplica à totalidade das mães encarceradas.
Vale pontuar, ainda, que a Lei nº 13.257/2016 acrescentou os incisos IV, V e VI ao artigo 318 do Código de Processo Penal, e constitui um dos amparos legais para a substituição supramencionada. Referida Lei objetiva conferir atenção à criança, e não à mulher. A maternidade, em uma sociedade cuja parentalidade é exercida desigualmente, é, de maneira reflexiva, atingida pela Lei nº 13.257/2016, que não tem por objeto o desencarceramento feminino e, tampouco, o combate ao sexismo.
Apesar dos inegáveis méritos dos quatro votos proferidos, e do vislumbre, por um átimo, de uma civilização que suplanta a barbárie, mediante tentativa de redução de danos, um aspecto da decisão formalizada é notório e indelével: classismo e racismo foram colocados em xeque, enquanto eternas alegorias do sistema penal seletivo e punitivista vigente no Brasil desde tempos imemoriais.
Na data de 17/03/2017, o juízo da 7ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, de ofício, determinou, em favor de Adriana Ancelmo, ex-primeira dama do Estado do Rio de Janeiro, a substituição de sua prisão preventiva, outrora decretada, pela prisão domiciliar, amparado pelo artigo 318, inciso V, do Código de Processo Penal. A famigerada decisão levou em consideração o fato de Ancelmo ter (à época) filhos de 11 e 14 anos de idade.
Apesar de toda modulação midiática e das sucessivas impugnações judiciais à decisão proferida, articuladas no sentido de criticarem a aplicação - excepcional - do disposto em Lei, prevaleceu a decisão oficiosa, até mesmo após a questão chegar ao Supremo Tribunal Federal[4].
A partir desse contexto, surgiram inúmeros questionamentos a respeito dos motivos pelos quais foi concedida a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar à Ancelmo, mulher branca e rica, enquanto milhares de gestantes, lactantes, mães de crianças e, até mesmo, mães e seus filhos, padeciam em penitenciárias insalubres e desumanas. Todo esse cenário se transformou em plataforma para a impetração, pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), do Habeas Corpus julgado na data de 20/02/2018.
Mas, não se pode deixar de mencionar casos anteriores, em que mães pariram algemadas[5], nos quais bebês cresceram atrás das grades e foram abruptamente sequestrados de suas mães, que, na maioria das vezes, eram as únicas famílias possíveis para essas crianças. Caso igualmente notório, além de recente, foi o de Jéssica Monteiro, que se viu obrigada a dividir uma cela com seu filho recém-nascido, em virtude de ter sido flagrada com 90 gramas de maconha.
Negras, pardas e brancas, ricas e pobres, foram contempladas pela ordem concedida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal. Portanto, deve-se observar se o cumprimento dessa decisão seguirá o preceituado, de modo a se evitar, uma vez mais, a distinção entre cor da pele e classe ou se os juízos Brasil afora criarão óbices estapafúrdias e insustentáveis como justificativa para a manutenção do encarceramento dessas mulheres.
Corriqueiramente, verifica-se, na prática forense, perante os principais Tribunais do Brasil, a genérica alegação de, por exemplo, ausência de infraestrutura que permita o cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão. Isso sem mencionar o que dirão as autoridades dos rincões do país.
Em momento algum, pode-se olvidar do fato de que, como bem pontuado por BARTIRA MACEDO DE MIRANDA SANTOS e CRISTINA ZACKSESKI[6], prevalece o seguinte raciocínio:
“entre soltar um culpado ou prender um inocente, prefere-se prender o inocente. Entre rever a pena ou a prisão de uma mulher encarcerada para eventualmente soltá-la (por reconhecer que a prisão é desnecessária ou ilegal), ou mesmo entre fazer uma ponderação entre a prisão (legal e necessária) e os direitos da criança; ou ainda aplicar uma medida diversa da prisão, prende-se a criança no cárcere para que ela possa ser amamentada e cuidada por sua mãe.”
Pior do que qualquer precariedade que eventualmente seja alegada, em obstáculo ao determinado pelo STF, é a situação do sistema carcerário brasileiro como um todo, tanto para homens quanto para mulheres. A partir do recorte de gênero, verificamos diferenças significativas entre o encarceramento masculino e o feminino.
Dados concretos do primeiro - e até então único - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulher[7], de junho de 2014, apontam que:
“Historicamente, a ótica masculina tem se potencializado no contexto prisional, com reprodução de serviços penais direcionados para homens, deixando em segundo plano as diversidades que compõem o universo das mulheres, que se relacionam com sua raça e etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, nacionalidade, situação de gestação e maternidade, entre tantas outras nuances.”
O mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de junho de 2016 assevera que:
“a maior parte dos estabelecimentos penais foram projetados para o público masculino. 74% das unidades prisionais destinam-se aos homens, 7% ao público feminino e outros 17% são caracterizados como mistos, o que significa que podem contar com alas/celas específicas para o aprisionamento de mulheres dentro de um estabelecimento originalmente masculino.”
Ou seja, se o sistema penitenciário foi concebido e direcionado para o encarceramento de determinados homens, não há como negar o grau de precariedade desse em relação às mulheres, sobretudo gestantes, lactantes e mães de crianças.
Apesar de não existir um levantamento oficial a respeito desse grupo, um levantamento do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); do Instituto da Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); e da Pastoral Carcerária Nacional[8] registra que existem no país cerca de 4.560 cidadãs presas preventivamente - ou seja, presumidas inocentes, segundo o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República - gestantes e mães de crianças presas.
Não há, portanto, alternativa outra senão a de acatamento irrestrito da decisão proferida, pois gestantes e mães foram e são submetidas diuturnamente a situações degradantes e dramáticas, seja pela sua classe social, cor, escolaridade, seja pela sanha punitivista que não mede esforços em criminalizar condutas e banalizar o instituto da prisão provisória. Há muito é negado a essas mulheres o acesso à saúde básica, à segurança, conforto e humanidade requeridas no ciclo gravídico-puerperal.
A pesquisa MulheresSemPrisão[9], do ITTC, colheu depoimentos que corroboram tal situação, expondo o sofrimento vivenciado por tais presas:
“Para de ficar pedindo para ir para o médico, não está na hora, na hora de nascer a gente tira você do raio” [dizia uma funcionária da unidade]. Aí que minha filha passou da hora de nascer, nasceu de 43 semanas, estava com falta de oxigênio a menina. Nasceu toda roxinha. Nunca fiz ultrassom, nunca fiz nada. Eu só ia no médico, eles me chamavam uma vez por mês, eu ia no médico, ele ia lá, media a minha barriga e me pesava” (Keila).
“A gente dorme de valete. Eu durmo com a outra companheira grávida. Tem 12 camas e 18 mulheres na cela. Aí dorme na praia. No banheiro tem as garrafas de água que a gente coloca para pegar água para tomar banho gelado." (Helena)
Assim, apesar de não se vislumbrar hoje um horizonte favorável, espera-se que essa decisão emblemática seja a primeira de muitas que admitam o excesso no número de prisões provisórias, de criminalizações de condutas e, por fim, da seletividade e do fracasso do sistema penal brasileiro.
Ou, no mínimo, que seja feito coro a relatos como o de Jéssica, Patrícia, Keila e Helena, para que não haja retrocessos, para que tais atrocidades e abandonos não se repitam.
[1] Relato extraído do livro: Vidas em Jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas. Síntia Soares Helpes. São Paulo: IBCCrim, 2014.
[2] Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>
[3] Segundo a Lei nº 8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente - considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos.
[4] Em sessão de julgamento da Sexta Turma do STJ, na data de 08/02/2018, a Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura proferiu voto denegando a ordem de Habeas Corpus a Adriana Ancelmo. O Ministro Sebastião Reis Júnior pediu vista para análise, o que adiou o julgamento do mérito do writ impetrado.
[5] Vide: <http://justificando.cartacapital.com.br/2015/11/09/barbaros-por-barbara/>
[6] In: Estudos Feministas por um direito menos machista / Andrea Bispo ...[et al]; organizadoras: Aline Gotinski e Fernanda Martins. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[7] Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>
[8] Disponível em: <http://ibccrim.org.br/docs/2018/Memorial_HC_143641_Amicus_Curiae.pdf>
[9] Ibidem.
Imagem Ilustrativa do Post: Mulheres encarceradas // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações
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