Machismo e racismo na Copa: a gente vê por aqui e acolá

23/06/2018

Não surpreende o fato de que o futebol é um esporte eminentemente dominado e pautado pelo e para o gênero masculino, ressalvadas honrosas exceções. Em eventos internacionais, como a Copa do Mundo, organizada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA), as mulheres que ganham destaque são as “musas”, sejam elas “eleitas”[1] ou “descobertas”[2] arquibancadas afora, por se coadunarem ao padrão estético socialmente imposto.

O fato de uma mulher ter narrado, pela primeira vez na história da televisão brasileira, uma partida de Copa do Mundo[3], é acontecimento de somenos importância, afinal, a ocupação de espaços até então domados por homens é historicamente invisibilizada, e a contínua objetificação do feminino é prática que intenta sobrepujar qualquer ruptura do status quo.

Inobstante, o surgimento de novas formas de violência parece não encontrar limites e fronteiras, o que reacende a discussão do quanto a garantia de direitos mínimos às mulheres, aonde quer que elas estejam, é assunto que transcende qualquer civilização, ou melhor, barbárie.

Circula pelas redes sociais um vídeo, no qual torcedores brasileiros, que foram até à Rússia acompanhar a atual edição da Copa do Mundo, assediam uma mulher que não compreende a língua portuguesa. Completamente despreocupados, - afinal, gravaram e reproduziram a cena impunemente - pulam, sorriem e pedem para a mulher entoar com eles frases racistas e machistas que fazem alusão à sua genitália.

O acontecimento escatológico repercutiu negativamente nas mídias sociais e na imprensa. Até o momento, as respectivas entidades de classe de dois dos sete homens que aparecem na gravação - um advogado, e o outro, policial militar - repudiaram o ocorrido, e emitiram comunicados oficiais.

Entretanto, mais do que “causar vergonha” ao Brasil, as imagens escancaram mais um sintoma de uma doença que é facilmente diagnosticada por qualquer mulher que ande pelas ruas do país, invariavelmente tomada por uma sensação de insegurança e pelo medo de ser interpelada. O projeto “Chega de fiu fiu”, concebido pela ONG Think Olga, “é uma campanha contra o assédio sexual em espaços públicos”[4], e parte da premissa de que

“Todos os dias, mulheres são obrigadas a lidar com comentários de teor obsceno, olhares, intimidações, toques indesejados e importunações de teor sexual afins que se apresentam de várias formas e são entendidas pelo senso comum como elogios, brincadeiras ou características imutáveis da vida em sociedade (o famoso ‘é assim mesmo…’) quando, na verdade, nada disso é normal ou aceitável.”

Segundo dados obtidos pelo projeto, 47% dos assédios são verbais, e 67% deles acontecem durante o dia. [5]

A campanha, que inclusive conta com um documentário lançado no último dia 15 de maio, ampliou a discussão, “ao expor a intersecção entre racismo, machismo, sexismo e transfobia que cada uma das personagens vive diariamente.”[6]

Sem querer minimizar o ocorrido, não se pode olvidar do fato de que, a cena racista e machista desvelada diante dos olhos de quem assistiu o curto vídeo, traduz-se em masculinidades tóxicas e violências de raça e gênero perceptíveis em todos os âmbitos e vivências cotidianas, desde a famosa “cantada de pedreiro” até o estupro cometido pelo próprio parceiro sexual, sobretudo quando se trata de mulheres negras, consideradas “a carne mais barata do mercado”.

Para se ter uma ideia, o machismo encontra-se tão enraizado na sociedade brasileira que, não raro, a indignação frente a uma atitude machista é “combatida”, paradoxalmente, mediante ofensas igualmente machistas. Foi exatamente o que ocorreu no caso envolvendo os torcedores brasileiros, uma vez que as mães e irmãs desses foram xingadas como se fossem cúmplices das cenas protagonizadas por homens plenamente conscientes de suas atitudes.

Pelo exposto, percebe-se que não há imunidade contra o assédio. Entender suas causas e consequências sem querer simplificá-las é tão importante quanto evidenciar as práticas que o perpetuam e reforçam, bem como sua relevância legal. Compreender que um corpo não é passaporte para a misoginia e que um evento público não é um espaço permissivo de exercício abusivo e incondicionado de racismo e machismo é, também, admitir que o “fiu fiu” não é elogio, e que ainda há muito a ser feito, até o dia em que as diuturnamente assediadas poderão andar pelas ruas sem o risco de serem ofensivamente importunadas e tolhidas no seu mais absoluto direito: o de ir e vir, sem amarras e medos. Confiança.

Notas e Referências

[1] Disponível em: <http://www.musadacopadomundo.com.br/> Acesso em: 19 de junho de 2018.

[2] Disponível em: <https://extra.globo.com/esporte/copa-2018/em-apenas-tres-dias-de-copa-musas-roubam-cena-nas-arquibancadas-da-russia-22789170.html>Acesso em: 19 de junho de 2018.

[3] Disponível em: <https://www.sul21.com.br/ta-na-rede/2018/06/pela-primeira-vez-na-historia-mulher-narra-jogo-da-copa-em-canal-de-tv-brasileiro/> Acesso em: 19 de junho de 2018.

[4] Disponível em: <https://thinkolga.com/2018/01/31/chega-de-fiu-fiu/> Acesso em: 19 de junho de 2018.

[5] Disponível em: <http://chegadefiufiu.com.br/> Acesso em: 19 de junho de 2018.

[6] Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/2018/05/15/documentario-chega-de-fiu-fiu-e-muito-mais-do-que-um-retrato-do-assedio-nas-ruas_a_23435382/> Acesso em: 19 de junho de 2018.

 

Imagem Ilustrativa do Post: EL MACHISMO MATA // Foto de: Encuentro de Feministas Diversas // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/159443955@N07/26361992698

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