Lula e Palocci: Evidências do agigantamento do Estado Policial

17/04/2018

Luigi Ferrajoli, que atuou como magistrado na Itália, ensina que a presunção de inocência do acusado perdura até prova contrária decretada por sentença condenatória definitiva. [1] Os últimos dias foram marcados por uma triste demonstração de que o Estado Democrático de Direito, fundado com a Constituição, chamada de Cidadã, está sendo transformado em um cadáver insepulto. A prisão midiática de Lula e o não conhecimento do Habeas Corpus em favor de Antônio Palocci assemelham-se às práticas que mais se aproximam dos atos do regime nazista. Aliás, o clamor popular gera práticas nazistas. A postura do Judiciário brasileiro pode ser comparada com o comportamento de Eichmann narrado por Hannah Arendt.[2] O Estado Democrático de Direito está perigo sendo suplantado por uma Pós-Democracia, que formalmente permite o funcionamento das instituições, mas cuja dinâmica democrática progressivamente desaparece.[3]

O caso do ex-presidente Lula já foi amplamente debatido e os argumentos acerca da impossibilidade da execução penal após condenação em grau de apelação são por demais conhecidos. No entanto, cabe destacar o voto da Ministra Rosa Weber, decisivo para a denegação da ordem. De maneira paradoxal asseverou a ministra:

"[...] enfrento este habeas corpus nos exatos termos como fiz todos os outros que desde 2016 me foram submetidos, reafirmando que o tema de fundo, para quem pensa como eu, há de ser sim revisitado no exercício do controle abstrato de constitucionalidade, vale dizer, nas ADCs da relatoria do Min. Marco Aurélio, em que esta Suprema Corte, em atenção ao princípio da segurança jurídica, em prol da sociedade brasileira, há de expressar, como voz coletiva, enquanto guardião da Constituição, se o caso, outra leitura do art. 5º, LVII, da Lei Fundamental. Tal preceito, com clareza meridiana, consagra o princípio da presunção de inocência, ninguém o nega, situadas no seu termo final – o momento do trânsito em julgado - sentido e alcance, pontos de candentes divergências, as disputas hermenêuticas."[4]

Ou seja, para a ministra o tema deve ser rediscutido por meio de controle abstrato de constitucionalidade. Todavia, neste caso específico, a jurisprudência do Supremo, assentada por apertada maioria, deveria prevalecer. Num processo subjetivo, no qual a liberdade de um ser humano está em jogo, o entendimento pessoal da magistrada seria irrelevante em razão do famigerado princípio (se é que se pode assim chamar) da colegialidade. Seria a colegialidade do Supremo que firma tal entendimento ou a colegialidade das ruas e praças que desejam, incansavelmente, o encarceramento, o punitivismo e a barbárie, alimentando um modelo binário no qual os que se contrapõe a uma ideia são inimigos? Fica a provocação para uma serena reflexão.

Também foi espantosa a agilidade para se empreender a custódia do ex-presidente que foi decretada cerca de 15 horas após o encerramento da sessão do Supremo Tribunal Federal. A cobertura da grande mídia, noticiando, inclusive, a lista de mandados de prisão não cumpridos com o nome de Lula figurando em primeiro lugar, denota o acirramento de tensões e a partidarização dos meios de comunicação social que inobservam o dever de informação, estabelecido no artigo 221, inciso I, da Constituição da República. É inegável que tamanho açodamento na execução da pena de Lula tem como objetivo interferir no pleito de outubro, enfraquecendo as correntes de esquerda em favor de grupos conservadores e sectários.

O Poder Judiciário, de modo particular o Supremo Tribunal Federal, reafirmando este entendimento, abdica do seu papel contramajoritário e se coloca como instrumento de consecução de ações que interferem, de maneira ilegítima, no jogo democrático. Ao postergar o julgamento das ADC 43 e 44, o STF patrocina importante insegurança jurídica e colabora para o enfraquecimento o Estado Democrático de Direito, paradigma adotado pela Constituição de 1988.

Quanto ao HC 143.333, cujo paciente é o ex-ministro Antônio Palocci, o não conhecimento da impetração constitui um verdadeiro atentado à garantia do Habeas Corpus, historicamente consagrada nas constituições brasileiras. O voto do relator, ministro Edson Fachin, demonstra uma superação da própria jurisprudência do Supremo, reafirmada em 2016 e no HC 152.752, no sentido legitimar a execução após decisão condenatória de primeira instância. Eis um trecho do voto do ministro Fachin:

"Enfatizo que a superveniência da sentença produz uma realidade processual de maior amplitude em relação à considerada no momento da formalização da impetração. Como se verá adiante com maior detalhamento, a sentença impõe uma alteração do campo argumentativo, exigindo-se que o exame das questões articuladas pelo impetrante opere-se à luz de um espectro processual não coincidente com o inicialmente impugnado." (sem grifo no original)[5]

Nunca é demais lembrar que Antônio Palocci foi preso temporariamente e teve esta prisão convertida em preventiva. Formalmente denunciado, foi condenado a doze anos, dois meses e vinte dias de reclusão por corrupção passiva e lavagem de capitais. Por fim, o juiz de primeiro grau manteve a custódia cautelar, sob o argumento de que “a prática serial de crimes graves, com afetação da integridade de pleitos eleitorais no Brasil e no estrangeiro, coloca em risco a ordem pública e constitui elemento suficiente para justificar a manutenção da preventiva.”[6] Fato a ser destacado é o tempo que perdura a prisão cautelar, ou seja, desde setembro de 2016. Sobreveio a condenação e o STF não conhece a impetração em razão da robustez argumentativa trazida pela decisão do juiz Moro. Convém salientar que o paciente não mais põe em risco a ordem pública, já que não possui mais capacidade de agir nos meios governamentais, não integra mais os quadros do Partido dos Trabalhadores e vem demonstrando, seguidamente, intenção de formalizar acordo de delação premiada. Todos esses argumentos seriam suficientes para que o STF analisasse todos os fatos supervenientes e concedesse a ordem de ofício.

É preocupante a forma como o Supremo Tribunal Federal desempenha a sua função judicante de guardião da Constituição. Preocupante quando abdica da sua competência e adere a uma jurisprudência punitivista, voltada ao encarceramento em massa, à estimulação de delações obtidas sob clara e evidente tortura, consubstanciada pelas ameaças de prisões preventivas e buscas e apreensões às 6 horas da manhã, com peculiar pirotecnia da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. O Estado policialesco, que relativiza as garantias processuais e vê a Constituição como um obstáculo ao combate à corrupção, está cada vez mais poderoso e coloca em risco a jovem democracia brasileira. É evidente que qualquer cidadão de bem defende o combate à corrupção, mas que prevaleça a legalidade e a Constituição. O Brasil de hoje vive tempos negros. Talvez seja lúcida a comparação do Brasil com Oceânia, Estado retratado por George Orwell em 1984.[7] E o Grande Irmão? Quem seria? Fica a provocação!

Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002, p. 441.

[2] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 35.

[3] CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 23.

[4] Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministra-rosa-weber.pdf. Acesso em 12 abr 18.

[5] Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143333votoEF.pdf. Acesso em 12 abr 18.

[6] Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-palocci.pdf. Acesso em 12 abr 18.

[7] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

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