O mundo produz as ideias? Sou materialista, alinho-me a quem acredita que a realidade material do mundo produz as ideias e, então, a consciência do próprio mundo. O mundo me fornece as ideias para pensar o mundo.
Pensa-se sobre um tempo concreto e um lugar concreto com as ideias circulantes num tempo concreto e num lugar concreto. As ideias que me alcançam na relação com minha existência concreta produzem a minha consciência.
Difícil escapar disso. Seja: sou produção ideológica, então, não sou “dono” do meu pensamento, mas o meu pensamento é “dono” de mim. E o que penso é o que circula como pensamento dominante no tempo e no lugar em que vivo.
Ideias são materializáveis e apropriáveis como qualquer bem material. Significa dizer: as ideias circulantes não são aleatórias, desprendidas de sistemas de poder, advindas de geração espontânea. Ideias são expressão de interesses.
Ideias são politicamente sistemas de controle, de formação de opinião pública, de tendências de consumo. As ideias, ademais, constituem a minha subjetividade, afetam meus prazeres, minhas tristezas, meus valores, minha dignidade.
Ideias constituem as relações de poder. Quem cuida disso? Quem domina lugares de fala, põe discursos em circulação e controla pensamentos. O mais acachapante e perduradouro sistema de produção ideológica foi o catolicismo.
Por 1.500 anos, os católicos produziram o discurso do mundo, o exclusivo discurso válido circulante na Tradição Ocidental. Uma formulação conceitual, moral, estética. Um pensamento único administrado em todo o tempo e lugar.
Acreditava-se num deus pai severo. Prevalecia o homem branco. A família centrada no patriarca alicerçava a Sociedade, que era hierarquizada e imobilizada. Valiam a nobreza e o clero; mais nada ou ninguém tinha algum valor.
Do modo de pensar católico se hauriam os costumes, o Direito, a música, o sentido do dia. O morrer e o viver eram coisa atinente ao divino. Fodia-se do jeito e com a finalidade que os padres dissessem que seu deus disse.
Em cada vila o templo católico acolhia a totalidade dos habitantes. Cada púlpito era o lugar de fala desse sistema de poder; ali se reproduzia o discurso dominante; a fala que reproduzia o discurso cristão se assentava sobre cada um.
Nos fins do século 18, o discurso capitalista ganha mais espaço. Indivíduos obtêm valor, dizem discursos, produzem conhecimento. A lógica divina tem seu espaço disputado pela lógica produtora do lucro e do que produz lucro.
A ciência torna-se negócio, corpos femininos ganham o sistema de produção, negros são desatrelados da escravidão. A ética mundana das novas circunstâncias afirma-se e disputa prestígio. Outros falantes, outras falas. Outras oportunidades.
A contemplação da obra do “senhor” é relativizada. O mundo não é dado, é História. É possível construir uma Sociedade mais igualitária. Nos tornaremos o que nos fizermos ser. Essa compreensão nova está sendo haurida da velha.
Os beneficiários da velha compreensão do mundo reagem. O reacionarista quer o mundo herdado. A mentalidade arejada deseja novos tempos: diversidade de atores, disputa por lugares de fala, por falas, por efeitos do falado.
Fascistas de direita interditam falas liberais. Fascistas de esquerda nomeiam fascistas os que não se alinham aos seus. Fascistas contrapostos insultam-se reciprocamente de fascistas. É o raro caso em que ambos os fascismos têm razão.
Homens temperados em religiosidades não suportam outro gênero que não o seu; tornam-se agressivos, ameaçadores. Brancos que sempre foram referência das coisas ainda se supõem capazes de ensinar a negros os modos de existir.
Os controladores das instituições afetivas, das famílias, da reprodução, dos modos de amar, de gozar, de conviver insistem que caminhamos para a degradação. Seus valores lhes escapam. Querem o retorno das hierarquias patriarcais.
A sociedade das mídias sociais está violenta. Há nisso uma dimensão muito feia: a estética da baixaria. Há uma grandeza, porém, na coisa: uma insubmissão. Ninguém está mais disposto a simplesmente obedecer a ninguém.
Para nos livrarmos da dominação, talvez até a grosseria vá bem. Para vivermos em uma Sociedade de mentalidade aberta, a descortesia não contribui. Para avançar, temos que legitimar posições. Temos que persuadir pessoas.
Valem os argumentos, as oitivas, as contraposições. Vale abrir os lugares de fala e pôr discursos em circulação. Não vale interditar ideias. Quem confisca pensamento pratica fascismo, ainda que, alienadamente, tenha-se por coberto de razão.
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