Por Vinicius Cardona [1] - 01/04/2016
Levei um pequeno susto ao começar a ler a coluna do sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli na Folha de São Paulo de 26/03/16. Ele inicia o texto “O nome da traidora” concitando a presidente da República a decretar estado de sítio, conforme prevê o art. 137, I, da Constituição, na primeira parte do dispositivo: “comoção grave de repercussão nacional”. A fattispecie da grave comoção de repercussão nacional corresponde a uma situação de crise e de verossímil e iminente rebelião ou revolução, que ameacem o regime democrático e a existência de governo fundado na vontade popular. Cito a clássica doutrina de José Afonso da Silva[2].
Ao percorrer todo o texto, compreendi a agenda do colunista, que nos brinda com mais um perfeito e acabado exemplo da loucura e irracionalidade que nos rodam, nestas horas sombrias da vida política, social, econômica e futebolística nacional.
Para Magnoli, se o governo aduz que há um golpe em curso, logo deve lançar mão do instrumento do estado de sítio, a fim de salvaguardar a estabilidade das instituições. Se não o faz, logo falta, num só tempo, com a base da população e dos movimentos sociais que o apóiam e ainda com o dever previsto na Constituição. Conclusão lógico-dedutiva perfeita: deve sofrer o impeachment.
O professor Magnoli se revela um brilhante prático da dialética erística. Trata-se do argumento a que Schopenhauer denomina retorsio argumenti, retorsão do argumento, isto é, quando o argumento que o adversário quer usar a seu favor pode ser, com mais razão, usado contra ele[3].
Mas onde está o uso do argumento contra o próprio adversário? Aqui: Magnoli sabe que lançar mão do estado de sítio constitui um projétil de tão grosso calibre que atearia ainda mais fogo ao país, instituiria um estado de exceção e, portanto, de suspensão temporária de direitos fundamentais individuais (como reunião, manifestação, sigilo de correspondência, entre outros), precipitaria boa parte da população “indecisa” para o lado pró-impeachment e, de quebra, jogaria contra o governo boa parte da opinião pública internacional, fortalecendo, por fim, o intento da oposição em botar uma pá de cal na História do governo petista.
Ora, o autor pretende, ao fim e ao cabo, sustentar que não há falar em golpe, bem como defender o impeachment da presidente como instrumento possível e utilizável dentro da normalidade do regime democrático. Onde está, portanto, sua falácia? Exatamente na falsidade da premissa de que o fundamento do impeachment é, acima de qualquer dúvida, juridicamente escorreito e, portanto, a normalidade institucional restaria respeitada. No fundo, persegue-se o impedimento em razão da corrupção quase generalizada e da derrocada da situação econômica. Mas os detratores do governo se esquecem de esclarecer às massas que incitam três pequenos detalhes: o fato de que não consta, nas investigações em curso, ato de corrupção perpetrado pela presidente; o fato de que incompetência administrativa não está no rol de fundamentos jurídicos para o impeachment (nosso sistema não prevê recall); e o fato de que o processo em trâmite na Câmara dos Deputados atina com pedaladas fiscais, fato altamente controverso no que respeita a sua caracterização como atentado à lei orçamentária e, assim, crime de responsabilidade.
Antes que se diga que o instituto do impeachment requer a constatação de elementos jurídicos e, além deles, a verificação do “clima político desfavorável”, conforme vetusta lição de nossa tradição constitucional, respondo, por ora, se cuidar tal argumento, o do “clima” ou “situação” política e social, de absurdo recurso a um jusnaturalismo impensável nos marcos do pós-positivismo, atual estado da arte da teoria do Direito. Não há a mínima previsão da constatação de qualquer sorte de “clima” político, no mundo dos fatos, pela Constituição de 1988, nem mesmo singela menção que enseje alguma contorção semântica. Foi-nos ensinado que o impeachment é um “processo jurídico-político”. Quid juris? Um cheque em branco passado pelo constituinte originário ao Congresso Nacional, quando as coisas vão mal? A resposta se nos afigura inequivocamente negativa. O fato de cometer a competência para abertura de processo pela Câmara dos Deputados e julgamento pelo Senado não implica falar em recurso metafísico ao clima, à situação, ao descontentamento, ao clamor público como fundamentos. Ou é o Estado de Direito positivo (ainda que “pós-positivista”) ou o recurso jusnatural ao juízo de Deus, à luz da Razão, e assim por diante.
Mas o argumento do sociólogo é não somente falacioso, como também politicamente irresponsável. Ele foge dos limites da normal e desejável retórica do mundo político e jurídico para adentrar o terreno perigoso do imponderável. Quando já há conflito e violência nas ruas, um destacado e renomado membro da comunidade acadêmica nacional “sugere”, “inocentemente”, “apenas para argumentar”, a decretação de estado de sítio. Queremos sangue? Aonde toda essa pirotecnia pode nos levar?
Ora, posso perfeitamente chegar a concordar com o fato de que a tese do golpe, num sentido discursivamente forte, enquanto real subversão das instituições, é passível de questionamento. Talvez de golpe não se trate. Quiçá seja normal manifestação das instituições em funcionamento. Que tal debatermos civilizada e racionalmente a respeito?
A retórica, arte de se discursar argumentativa e racionalmente (isto é, sem recorrência aos mitos), buscando-se convencer o outro da própria posição quanto aos assuntos da pólis, teve sua aurora nos instantes em que os soldados gregos, nos intervalos das batalhas, punham de lado suas espadas, lanças e broqueis, e passavam a discutir entre si as ações e decisões futuras quando retornassem da guerra, bem como no momento histórico em que Atenas se abriu para o comércio internacional e passou a tomar contato com as diferenças culturais de outros povos, tudo isso no contexto da decadência da aristocracia nas cidades-estados gregas e da ascensão do demos (povo) como titular da ação e decisão políticas, que passou a se compreender como também dotado da areté (virtude), até então tida como exclusiva da nobreza [4].
Entre nós, contudo, as virtudes da razão, da ponderação, da sensibilidade e do equilíbrio no dizer e ouvir parecem longe do cultivo e da prática na vida política e social. Há que se volver às mais comezinhas lições dos antigos sábios: na vida da Cidade, ou estão bem a política, a retórica e o diálogo, ou bem estão a barbárie, a guerra e a loucura. E pela loucura de hoje, decerto pagarão as futuras gerações de brasileiros com suas próprias almas. Isto qualquer bom professor de sociologia pode corroborar.
Notas e Referências:
[1] Paráfrase do Evangelho de S.Lucas 12,20.
[2] Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
[3] Schopenhauer, Arthur. Como vencer um debate sem ter razão em 38 estratagemas (dialética erística). Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
[4] Paidéia: a formação do homem grego. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
. . Vinicius Cardona é Mestre em Direito Público e bacharelando em Filosofia pela UFBA - Universidade Federal da Bahia. Advogado. . .
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