Lolita e as dores do direito: sobre violência sexual e adolescência

19/03/2015

Por Maíra Marchi - 19/03/2015

"A questão é: Deus acredita em mim?”

Humbert, respondendo se acredita ou não em Deus

 

A temática da violência sexual, particularmente contra crianças/adolescentes, mobiliza em nós (pelo menos nos neuróticos) diversos tabus. Alguns deles dizem das interdições inerentes à vida em civilização, das quais o incesto é uma[1], conforme FREUD (1913). Talvez isso explique, pelo menos em parte, a dificuldade de alguns operadores do Direito escutarem os envolvidos nestas situações. Ainda no campo das conjecturas, talvez a outra parte que a explique relaciona-se às repressões, manipulações perversas, delírios e alucinações auditivas e visuais de responsabilidade de cada um deles.

Isso posto, justifica-se a utilidade (necessidade?) de se abordar o tema por outro meio que não por recortes de casos “reais”, como, por exemplo, a análise de filmes[2].

A respeito das possibilidades do olhar psicanalítico a obras cinematográficas, parece necessária (neste momento e neste contexto) uma única observação na tentativa de resumir as possibilidades de diálogo entre psicanálise e cinema num texto que pretende alcançar leitores do Direito e, ao mesmo tempo, Psicanálise. Tal observação refere-se ao estatuto da linguagem cinematográfica, a qual não se reduz à verbal. Considerando que a psicanálise estabelece-se na linguagem, daí pode-se concluir que a linguagem que interessa àquele por ela orientado, em caso de análise de filmes, atentar-se-á ao que surge pela via do imagético.

Nesta direção, pode-se citar MEZAN (2004, p.10), em suas considerações a propósito de um filme que, aliás, fala de violência sexual. Em seus termos: se o interesse do psicanalista é despertado imediatamente pela questão do incesto e dos seus efeitos psíquicos sobre os dois irmãos, uma reflexão sobre este ponto só será proveitosa se levar em conta os meios expressivos pelos quais e com os quais Visconti conta a sua história. Caso contrário, estaríamos numa perspectiva exterior ao filme, simplesmente aplicando sobre ele alguns clichês psicanalíticos

Parte-se da concepção, portanto, de que a linguagem não se reduz ao verbal, e que, então, os significantes podem ser percebidos nas sequências de imagens, trilha sonora, planos de filmagem, cores, brilhos, etc., para além, evidentemente, de silêncios. SOUZA (2012, p.588) explica:

é essa ao mesmo tempo espantosa e necessária capacidade de criação de uma realidade alucinatória que aproxima o sonho e a projeção cinematográfica não somente das sombras da caverna de Platão, mas também da Psicanálise. Nestes termos, ambos encontram acolhimento precisamente no seu quê de trágico e irracional, ou melhor, no tipo de racionalidade que lhes é peculiar e que, impregnada pelo desejo, permite-lhes distorções, cortes, sobreposições e reorganizações de ângulos e imagens

Partindo da hipótese de que a obra-prima “Lolita” dispensa apresentações, estabelecer-se-á desde já uma análise psicanalítica de alguns de seus aspectos.

A história de Lolita mostra-se pertinente para a presente discussão por vários motivos, mas um deles é o fato de Humbert dirigir-se, em sua fala, a um júri e Lolita nunca ser ouvida pelo sistema judicial. Este fato, por si só, leva-nos a pensar que esta obra pode ser lida a partir da abordagem do sistema judicial de crimes sexuais contra adolescentes.

E, nesta direção, considerar que, já de partida, o “autor” se reconhece/é reconhecido como criminoso e a vítima não é ouvida (quanto menos escutada). Logo, para o sistema judicial, o desejo teria sido apenas dele, e, ainda, tal desejo merece ser julgado.

PEREIRA (1995, p.97) traz um retrato interessante desta posição de Humbert perante o sistema judicial, na qual caberia acrescentar algumas questões: a menção irônica de Humbert as classificações psiquiátricas/psicológicas sobre ele, e, ainda mais significativo, seu pedido de permissão para abordar de maneira não-criminalizada e não-moralista seu ato, alegando que, ainda que assustador aos olhos da comunidade, não era danoso aos diretamente envolvidos (ele e Lolita). Em seus termos:

Humbert já nas primeiras frases dirige-se aos senhores e senhoras do júri, nisso tomando para si o lugar de réu e a denominação de criminoso. Mais adiante nos faz saber de suas várias internações em hospitais psiquiátricos, onde descobria suas fichas com as classificações o divertiam – “potencialmente homossexual” ou “completamente impotente”. Defende-se pedindo simplesmente à comunidade a permissão para prosseguir na chamada “conduta aberrante, mas praticamente inofensiva nos seus pequenos, ardentes e úmidos atos de anormalidade sexual”, sem que a polícia e a sociedade se lancem contra

Entende-se que o personagem alerta que ele não é doente; logo, que a responsabilidade pelo que ele cometeu é dele, e não de um agente externo[3]. E, então, que ele possui um livre-arbítrio. Ao mesmo tempo, ele parece sinalizar que este livre-arbítrio não permitiria que ele fosse concebido como um monstro/a-humano que escolheu deliberadamente desconsiderar o outro. Em síntese: o personagem aponta para que estas duas representações (doente/monstro) servem para negar o que há de humanidade nestes atos: o desejo.

Além disto, também aponta para o fato de que há uma diferença de olhar e escuta entre a comunidade e a “vítima” do “crime” sexual, ao falar que seu ato era inofensivo à vítima diretamente envolvida, ainda que não o fosse aos olhos do sistema judicial. Daí poder-se-ia indagar, de início, se não caberia ao sistema judicial dar voz ao adolescente vítima de crime sexual.

É importante (necessário?) dizer que de forma alguma está-se culpabilizando a vítima pelo que ocorreu, e/ou inocentando o autor. O que se propõe, com a psicanálise, é um olhar que, não sendo maniqueísta, suspenda as categorias de vítima e autor, de modo a destacar a responsabilidade de ambos pelo ocorrido. Responsabilidade que seria de ordem inconsciente; logo, que não pode ser pensada a partir da lógica "ele/ela quis!", mas "ele/ela desejou", e frente a qual não se pode responder com afirmações como "ele/ela não deveria ter feito!", mas sim com perguntas como "por que ele/ela precisou fazer?".

Neste sentido é que a própria definição de violência sexual destaca que a consideração à subjetividade inconsciente da vítima é fundamental inclusive para se caracterizar o evento como violência ou não. Ainda mais o seria, então, para se compreender e julgar a particularidade de cada caso de violência sexual. Vê-se, por exemplo, o que diz CROMBERG (2002, p.53-54):

Por violência sexual entendo uma situação complexa, desencadeada por um ato sexual, não necessariamente o coito, no qual uma pessoa estranha ou familiar utiliza-se do corpo de outra pessoa, ou ameaça fazê-lo sem seu consentimento consciente. (...) o sofrimento psíquico da violência é causado por um trauma que se deve não só ao ato sexual violento, mas à imbricação complexa deste ato sexual violento com as fantasias sexuais inconscientes

Na mesma direção, a autora diz mais posteriormente: "traumático é a conjunção da resposta erótica do outro com a culpabilidade das próprias fantasias sexuais incestuosas e não só a resposta erotizada do outro" (CROMBERG, 2002, p.103).

Escutando, então, o que Lolita diz sobre o ocorrido durante o filme, poder-se-ia considerar que ela, por mais que consinta, a partir de seu comportamento, com a relação com Humbert, seu discurso inconsciente denota que ela a representava como uma violência[4].

Neste sentido, cabe referir, como ícone, a passagem em que eles, falando sobre o hotel onde teriam mantido a primeira relação sexual, demonstram diferentes representações sobre o ato: ela diz “ah, aquele hotel em que você me estuprou...”, e ele, de sua parte, mostra-se surpreso porque se recorda que, na ocasião, impressionou-se com o esforço de Lolita por demonstrar alguma experiência na área.

Na versão cinematográfica de 1997, há uma passagem da mesma ordem: ela e Humbert chegando neste hotel, e ele dizendo a ela da preocupação com eventuais comentários que habitualmente surgem quando duas pessoas encontram-se em um mesmo quarto. Lolita diz-lhe, preenchendo o instante em que ele fica sem palavras, “a palavra é incesto!”. Ela parece demarcar, portanto, que ele estava se referindo não a situação de quaisquer “dois em um quarto”, mas sim a um padrasto e enteada nesta condição.

Nestas passagens, vê-se que a representação de ambos sobre o que ocorria era diferente: Humbert não se reconhecia como violentador, e ela se reconhecia como violentada.

Ainda na versão mais recente do filme, constata-se outra cena que nos leva a mesma interpretação. É justamente a cena seguinte à primeira relação sexual entre Humbert e Lolita. Ele pensa, a propósito de sua percepção de que a adolescente encontra-se mais quieta, e até mesmo irritada, que o habitual: “...era como se eu estivesse ao lado do fantasma de alguém que acabara de matar”. De fato a legitimação da morte da Lolita-criança-enteada havia se dado poucas horas antes. Na mente dela e dele.

Não é ao acaso que, na continuidade da mesma cena, Lolita pede que ele estacione o carro porque ela precisa ir ao banheiro, da seguinte maneira: “me dói por dentro. Eu era uma garota pura e você me violentou. Um velho nojento”. E, então, volta a rir e brincar com ele, logo tranqüilizando Humbert, que, por um instante, chegou a se perguntar se não havia violentado a adolescente.

Também merece menção neste momento a sequência de cenas em que Lolita visivelmente sente prazer em uma relação sexual com Humbert e, em seguida, aparece chorando em um outro quarto que não aquele em que dormia com Humbert. Humbert até se movimenta de forma a adentrar no cômodo (talvez para consolá-la), mas ao se deparar com o olhar da adolescente, recua. Ele não suporta ser olhado como violentador e encontrar, nos olhos de Lolita, que foi violentada.

Esta cena é isolada, não se atribuindo qualquer sentido aparente àquele choro. Talvez seja possível entendê-lo como o luto, por uma mulher, de sua condição de menina. Não é ao acaso que Lolita canta, rindo, em cena posterior, o trecho de uma música que diz “meu coração se foi por completo, porque você causou tentação”. Um coração de menina, morto pelo despertar de um corpo de mulher.

De qualquer modo, o que é primordial de ser aqui destacado é que aquilo que está em questão não é o comportamento. Assim, não importa se, em ações, a adolescente concordava ou não com os atos. E Lolita concordava, tanto quanto discordava! Assim, não são desconsideráveis as procuras da adolescente por Humbert, assim como as evitações que ela fazia dele. É por isto que, tomando o comportamento como parâmetro, é bastante difícil localizar um único violentador e um único violentado.

O Direito precisaria, então, e não apenas em casos de violência sexual (mas também nesses) considerar acima de tudo o discurso. Inclusive da vítima! MEZAN (2004) permite pensar a este respeito quando fala que em casos de violência sexual em que houve consentimento (consciente) não há efeitos tipicamente apresentados por vítimas de violência sexual, como vergonha e dúvida moral. Assim, seria problemático se o Direito se ativesse a manifestações comportamentais tanto para apurar se houve ou não crime, bem como para dizer algo sobre a natureza do evento.

Então, o que se revela fundamental, no caso em questão, é o discurso de Lolita, e nele parece que ela, mesmo representando a relação com Humbert como violência, agiu de acordo com seu desejo. Em um primeiro momento, ocupar o lugar da mãe, relacionando-se com homens que atraíam a mãe. E, em um segundo momento, procurando arcar com os custos disto da maneira como podia (barganhando sexo para, obtendo dinheiro, fugir do homem que lhe autorizou a ocupar o lugar da mãe, para cair nos braços de um outro homem mais velho, que recusava ser o seu homem e só queria exibí-la[5]).

Porém, o que é ainda mais fundamental é indagar se, sendo uma violência sofrida, o melhor a fazer por Lolita (para não falar de Humbert e da sociedade em geral) é negar seu desejo (por sofrer um mal) tão evidente. O que é diferente, e isto merece ser destacado, de algumas abordagens equivocadas que, pautadas em uma análise do comportamento, condenariam a adolescente por haver consentido com o crime sexual ou fariam de tudo para não enxergar sua participação ativa em sofrer um mal.

Talvez a melhor maneira de destacar o desejo de Lolita, e tratá-lo de uma forma outra que não o rechaço, seja justamente suspender a visão maniqueísta com que se tende a analisar a relação entre o “autor” e a “vítima” nos casos de crime sexual contra adolescentes, na qual um sempre é vítima e outro sempre algoz.

Nesta direção, a partir de agora, apontar-se-á o sofrimento de Humbert e o desejo de Lolita, o que, novamente cabe lembrar, de maneira alguma levará a concluir que não houve uma violência contra a adolescente. Apenas espera-se demarcar o que há de desejo em ambos (e não de patologia ou monstruosidade), e no que seus desejos levaram-nos a encontrar de prazer e desprazer. E, contrapondo a uma visão majoritária, que não é só Humbert que tem prazer, e nem que Lolita só tem desprazer.

O sofrimento de Humbert mostra-se não apenas nas menções iniciais ao seu amor perdido de infância[6], mas também no fato de se perceber como um atormentado. E não é ao acaso a lembrança da etimologia de “ninfeta” em seu diário, em que diz que as meninas entre nove e quatorze anos possuem uma natureza que não é humana, mas nínfica. Daí chamá-las de nymphets. Nínfica, aqui, é entendida como sinônimo de demoníaca, no que, inclusive, as ninfetas aproximar-se-iam das sereias.

PEREIRA (1995, p.96) conclui, considerando a mesma passagem anteriormente referida na qual Humbert descreve, em seu diário, o que seriam as ninfetas: “Essa magia do diabo, ela tem nome próprio. Chama-se sedução. O diabo, por sinal, é o mestre em matéria de sedução, é o sedutor-mor, sempre”.

Não é ao acaso, nesta direção, que na versão cinematográfica de 1962 a mãe da adolescente chama-lhe algumas vezes de “little beast”. E que, em 1997, alguém lembra a Lolita “você é uma ninfa. Use seus encantos. Seduz o caçador”. Ou seja, ela seria um caçador disfarçado de caça. Ela teria um poder sobre a busca de Humbert por ela. O senso comum diz que “o diabo sabe para quem aparece!”. Porém, não se pode esquecer que, da mesma maneira, o diabo está nos olhos de quem vê![7].

PEREIRA (1995, p.98) fala sobre o que é aquilo, em uma ninfeta, que atrai um adulto. Não é algo da ordem da beleza, e muito menos do angelical. É uma parcialidade, que, aos olhos de quem a destaca, é amplificada. É uma parcialidade, que, por um olhar perverso (o que não necessariamente parte de um sujeito de estrutura perversa), seduz. A partir da obra "Lolita", ela analisa:

O que Humbert ressalta é que a nymphet não é uma femina. É uma figura pubescente perfeita, tão diferente de uma mulher como alhos de bugalhos. O “que” portado pela nymphet não é uma qualidade do senso comum como beleza ou graça, e vai depender justamente do olhar de quem a vê. Nabokov nos mostra muito bem através de Humbert o poder da sedução, o brilho, o fascínio representado em uma parcialidade. (...) o que aparece “amplificado” aí é relativo a essa qualquer coisa, um detalhe, um relance. É uma parcialidade que faz a captura.

Fascinar é um termo que contém fasces, o feixe latino que também origina fascismo, em que seu sentido original é o de amarrar (como num feixe), atar, prender, assujeitar. Nesse sentido seduzir tem a ver também com essa violência refinada, com o ganho de um poder sobre o objeto da sedução (grifos da autora)

Na mitologia, por sua vez, encontra-se outra contribuição para esta discussão. As ninfas são fadas sem asas. São seres, portanto, que apresentam um tanto de divindade, mas são mais próximas dos humanos pela sua própria condição de serem terrenas.

Neste sentido, cabe referir que, ao descrever a viagem do casal[8], Humbert fala, sobre sua condição: “eu estava em um paraíso cujo céu tinha as cores das chamas do inferno. Mas não deixava de ser um paraíso!”. Ninfetas: demônios que permitem estar no céu e no inferno. Demônios do céu. Deusas do inferno.

Neste momento é pertinente referir a etimologia de incesto porque contribui para a mesma discussão sobre os estatutos de sagrado e profano à violência sexual por outro viés: a violência sexual incestuosa (como é o caso da retratada no filme). Conforme CROMBERG (2002), incesto deriva de incestum, que significa “sacrilégio”. Incestum, por sua vez, deriva de incestus, que significa “impuro e sujo”. Já incestus, resulta da conjunção de “in” e “cestus”, resultando no oposto de castus, que seria “casto e puro”. Com o passar do tempo, castus teria sido confundido com cassus, que é “vazio, isento de”. Logo, poder-se-ia pensar que o impuro seria aquele a quem nada falta, e, mais além: que o autor de incesto seria aquele que contradiz uma concepção cristã do que seja o humano. Talvez porque seria habitado por desejo...e um dos desejos mais humanos, se considerarmos o que propõe FREUD (1913/1996) quanto aos dois impulsos frente aos quais a civilização erigiu-se: parricídio e incesto.

Precisa-se admitir que sempre há um desejo em ambos os envolvidos em casos de violência sexual, e que tal desejo, em todos nós, nem sempre nos leva ao prazer, ainda que sempre nos leve à satisfação. O desejo é o que nos demoniza, e, ao mesmo tempo, é o que nos leva aos céus. Neste sentido, é pertinente lembrar a definição do nome de Lolita, na versão cinematográfica de 1962: diminutivo de Dolores, que, por sua vez, seria a condensação de dor e flores. O que é belo e faz doer (o que não quer dizer que faça mal!). Ou, na mesma direção, referir que, na obra de 1997, Lolita diz “eu tenho uma graça natural. Sabe...um tipo de beleza triste”.

E, indo mais adiante, poder-se-ia indagar: o que torna algo belo pode ser justamente sua condição de fazer doer?[9]. Parece que o bem que Humbert procura em Lolita é precisamente o desprazer. Não é ao acaso que, nesta mesma obra, ele, após dizer literalmente que Lolita substituiu sua primeira namorada (“se não houvesse Anabell, não teria existido Lolita”), fala, sobre sua morte: “algo congelou em mim. O veneno estava na ferida e a ferida não cicatrizava”. Então é numa ferida não-curada, repleta de veneno, que Lolita encontra lugar em sua vida. É ali o ponto frágil de Humbert; é onde a violência atinge-lhe.

Lolita alerta-lhe para isto, mas ele não lhe dá ouvidos. A este propósito, na noite imediatamente anterior à manhã em que tiveram a primeira relação sexual, ela procura por algumas vezes iniciar um diálogo pronunciando frase como “eu tenho sido repugnante!”. Mas ele não ouve. Em uma das vezes, pede para que ela deixe para conversarem sobre isto na manhã seguinte. E o fazem. Falam disto por meio da relação sexual, em que ela faz jus ao que lhe havia dito assediando-o, e ele responde deixando-se assediar. Era justamente a repugnância o que ele desejava e ela podia dar.

Talvez o tabu no tratamento aos adolescentes vítimas de crimes sexuais decorra disto: que sinalizam, com sua posição nínfica (um pouco divina, e um pouco diabólica), o diabo que nos habita. E, ainda mais, que é este diabo que nos move, e que nos leva ao que é o melhor para nós: nosso desejo (prazeroso ou não).

O trágico final da história de Lolita e Humbert pode ter decorrido precisamente disto: ambos não se depararam com seu desejo. Humbert só falou ao júri. E Lolita não foi ouvida por ninguém. Não é ao acaso que, quando se reencontram três anos após, na versão cinematográfica de 1997, ela indaga a Humbert se ele desejava sentar na cadeira de balanço ou no divã, sugerindo que ele a acompanhasse no divã. Ele senta. Ela não.

Ele, deparando-se com seu desejo, sai dali, comete um homicídio, e, em seguida, constata o que lhe movia. Talvez um ato que lhe permitiu encontrar a lei tenha lhe permitido falar sobre o que lhe movia: a dificuldade de Humbert em elaborar a perda de sua própria infância, provavelmente em resposta à traumática perda de Anabell, imediatamente após, com ela, ter iniciado a sexualidade como adulto. Neste sentido, cabe referir a última cena de Lolita (1997), em que ele fala, ao ouvir sons de crianças brincando: “essa coisa profunda e desesperadora não era a ausência de Lolita ao meu lado. Sinto a ausência de sua voz naquele coro”. E do seu [Humbert] ouvido de criança.

Lolita morre ao dar a luz. Talvez por, pela via do ato, finalmente, ocupar o lugar da mãe. Talvez porque nunca teve seu desejo colocado em questão.

É interessante, por fim, trazer uma referência que auxilia a pensar a dificuldade de se reconhecer o desejo de Lolita, bem como a disposição a demonizar/patologizar o desejo de Humbert. Fazemo-nos acompanhar, para tanto, por GOLDENBERG (2013), que aponta o neurótico rechaço à identificação com Lolita. Assim sendo, a alegada reprovação da conduta de Humbert não justifica o horror causado pela obra. Mas, de maneira quase inversa, o horror dar-se-ia pela identificação com aquela que é seu objeto de desejo. “A topologia de sua [Nabokov] narrativa não traça fronteiras entre fora e dentro. Ao não haver exterior para o qual escapar, o leitor, como Lolita, não tem para onde ir; mas à diferença dela encontra-se não nas mãos do libertino mas no seu lugar (ser a vítima do gozo do perverso – posição de Lolita – é uma fantasia neurótica e pode ter lá seus laivos de prazer), sem contudo poder identificar-se com ele (GOLDENBERG, 2013, p.136).

Poder-se-ia pensar, então, que o horror à obra não se dirige a Humbert, mas ao desejo de Lolita (no quê o leitor reconhece-se) pelo próprio mal. Desejo por ser pervertido. Ou, melhor dizendo, pervertida, porque esta indica ser uma posição tipicamente feminina.

Não parece ser ao acaso que o mesmo autor especifica, em seguida, o incômodo provocado pela obra, analisando problemáticas de gênero que atravessam a leitura da obra em questão. Para isso, o autor fundamenta-se à coletânea de resenhas e críticas feitas por Harold Bloom, que o leva a indagar o fato de apenas nas de autoria de homens encontrar-se uma tentativa de, no julgamento moral de Nabokov, justificá-lo. “Se esta conjectura for verdadeira, o incômodo dever-se-ia que a história está narrada de maneira a confrontar os leitores homens, tomados quo ad patrem, com uma forma de gozo da filha, sobre cuja exclusão o ocidente construiu a função da paternidade” (GOLDENBERG, 2013, p.135).

De fato, o horror ao desejo feminino apresenta um plus de incômodo com os que se aventuram a conhecer Lolita e Humbert.


Notas e Referências:

CROMBERG, R.U. Cena incestuosa. Rio de Janeiro: Casa do Psicólogo, 2002.

FREUD, S. (1913/1996). Totem e tabu. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago.

GOLDENBERG, R. (2013). Do amor louco e outros amores. São Paulo: Instituto Langage. 

LOLITA. Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick, Vladimir Nabokov e James B. Harris. Produção: James B. Harris. Estados Unidos/Reino Unido: Steven Arts Production / Anya / Harris-Kubrick, 1962.

LOLITA. Direção: Adrian Lyne. Roteiro: Stephen Schiff. Produção: Guild / Pathé. Estados Unidos/França: Samuel Goldwyn Company, 1997.

MEZAN, R. O ponto de fuga: sedução e incesto em Vaghe Stelle dell'Orsa. Percurso, 33(2), Instituto Sades Sapientiae: Rio de Janeiro, 2004. p.7-20.

PEREIRA, L.S. (1995). Lolita – um comentário a partir do romance de Vladimir Nabokov. In ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE. Psicanálise em tempos de violência. (pp.95-100). Porto Alegre: Artes e Ofícios.

SOUZA, M.R. (2012). Inquietantes traslados: uma leitura psicanalítica do filme Encontros e Desencontros. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 17, n. 4 p. 587-595.

[1] A outra é o parricídio. Observa-se, ainda que tal assunto exija uma discussão pormenorizada por si, que ambos os interditos ameaçam a família, enquanto estrutura moderna.

[2] A propósito, a pertinência de se utilizar filmes também se dá por conta do praticamente nulo acesso a processos relativos a crimes sexuais (algo que se pode pensar se não é fundamentado num ou noutro tabu: o estruturante da civilização, ou aquele que fica por conta das comuns psicopatologias da vida cotidiana).

[3] Em Lolita (1997) ele chega a dizer que não se arrepende de nada do que fez antes do homicídio que cometeu. Ou seja, que delega a si a responsabilidade pelo que aconteceu entre ele e Lolita.

[4] Certamente uma análise mais detalhada da relação entre Lolita e a mãe, bem como da mãe com o pai de Lolita, ajudar-nos-ia a melhor compreender porque razão a adolescente desenvolve esta sexualidade com homens mais velhos que são atraentes aos olhos da mãe, tornando-se vulnerável à violência sexual por eles cometida. Porém, não é este o foco da presente discussão.

Da mesma forma, não se pode deixar de considerar que Lolita também não foi a primeira na vida de Humbert, o que se evidencia na abordagem da relação dele com a namorada da infância/adolescência (bem retratada tanto no livro, como na versão cinematográfica de 1997). Talvez uma maior historicidade deste personagem levaria a melhor compreender porque motivo ele torna-se vulnerável a certas adolescentes.

Assim, talvez ele só tenha sido seduzido por Lolita, e lhe seduzido, em uma série, na qual ocupava o lugar de outro e ela o lugar de outra. Da mesma forma, ela só teria assediado Humbert ao ocupar outro lugar e, nesta posição, colocado-o em outro lugar.

[5] Sabemos por meio dela, no último diálogo com Humbert na versão de 1997, que foi “jogada fora” porque não aceitou participar de filmes em que se relacionaria sexualmente com várias pessoas. Ela, inclusive, teria argumentado a Clare Quilty “eu quero você!”, mas não foi atendida.

[6] Que, por ser tão pouco falado, é aquilo que, ao final do filme, mostrar-se-á como fundamental. Discutir-se-á posteriormente a este respeito.

[7] Não é ao acaso que, na obra de 1997, Humbert diz que “apenas um louco repleto de culpa, melancolia e desespero identifica o demônio imortal” que há em algumas meninas.

[8] Que não desapercebidamente inicia, com ciência de Lolita, na manhã seguinte à noite em que passa chorando a morte da mãe. Talvez se possa entender que, naquele momento, seu lugar não mais é o de filha/enteada na relação com Humbert, mas o daquele outrora ocupado pela esposa de Humbert: o de sua mulher.

[9] Anteriormente já se discutiu a respeito da atração que foi, para Humbert, a dor de Lolita. De como ele se satisfazia causando-lhe dor.


Sem título-4   Maira Marchi é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         


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