Livrai-nos do STF, amém – Por Fernanda Mambrini Rudolfo

01/10/2017

Na última quarta-feira, dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal julgou, em sessão plenária, improcedente a ADI 4439, na qual a PGR impugnava o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino de todo o país[1]. Por uma apertada maioria de votos – 6 x 5 –, os Ministros concluíram que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, vinculado às diversas (!) religiões. Na ação, a PGR pedia para definir que o ensino religioso nas escolas públicas não pudesse ser vinculado a uma religião específica e que fosse proibida a admissão de professores na condição de representantes das confissões religiosas. Sustentou-se que tal disciplina, cuja matrícula haveria de ser facultativa, deveria ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica. No entanto, o pleito foi julgado improcedente.

Apenas para ilustrar o cenário medieval que se vive, o Ministro Lewandowski, que votou pela improcedência da ação, arguiu como um dos fundamentos para o seu voto que haveria salvaguardas suficientes, entre as quais a facultatividade da matrícula e o direito ao desligamento a qualquer tempo. Isso, como se estivessem sobrando escolas públicas nas mais variadas regiões do país, todas em locais próximos às residências dos estudantes, com muitas vagas disponíveis, a ponto de a matrícula em determinada instituição ser facultativa. Também como se o desligamento no meio de um ano letivo em nada afetasse uma criança ou um adolescente, ser ainda em desenvolvimento. Não se tratará de uma opção, mas de uma imposição. Não há salvaguarda.

Pois bem. A decisão foi, efetivamente, uma vitória da Igreja Católica[2], que tem mais recursos para um modelo de catequização nas escolas públicas. Enquanto o Ministro da Educação afirma tratar-se da consagração do princípio da liberdade[3], caracteriza justamente o oposto. Isso, porque imporá (sim, falando-se de seres em formação, é possível afirmar tratar-se de uma imposição) uma única religião para alunos de origens as mais variadas. Ademais, sabe-se qual será a religião que preponderará – e certamente não será nenhuma de matriz africana, por exemplo.

Como apontou o Ministro Marco Aurélio em seu voto, a laicidade estatal “não implica o menosprezo nem a marginalização da religião na vida da comunidade, mas, sim, afasta o dirigismo estatal no tocante à crença de cada qual”. Ressaltando que não cabe ao Estado incentivar o avanço de correntes religiosas específicas, mas assegurar um espaço saudável e desimpedido ao desenvolvimento das mais diversas cosmovisões, afirmou ainda que “o Estado laico não incentiva o ceticismo, tampouco o aniquilamento da religião, limitando-se a viabilizar a convivência pacífica entre as diversas cosmovisões, inclusive aquelas que pressupõem a inexistência de algo além do plano físico”.

Destaca-se também o voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, que manifestou o entendimento de que o Estado laico não pode ter preferências de ordem confessional, ou seja, não pode interferir nas escolhas religiosas das pessoas. Ao acompanhar o voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, arguiu que, “em matéria confessional, o Estado brasileiro há de manter-se em posição de estrita neutralidade axiológica, em ordem a preservar, em favor dos cidadãos, a integridade do seu direito fundamental à liberdade religiosa”.

Ou seja, apenas com a laicidade estatal se respeita o verdadeiro direito à liberdade religiosa, exatamente o contrário do que foi sustentado pelo Ministro da Educação.

Ainda do voto do Ministro Celso de Mello, destaca-se:

Regimes democráticos não convivem com práticas de intolerância ouaté mesmo, com comportamentos de ódio, pois uma de suas características essenciais residefundamentalmenteno pluralismo de ideias e na diversidade de visões de mundo, em ordem a viabilizar, no contexto de uma dada formação socialuma comunidade inclusiva de cidadãos, que se sintam livres e protegidoscontra ações estatais que lhes restrinjam os direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção política ou filosófica. [4] (grifos originais)

Quando o Estado estabelece a possibilidade de as escolas públicas terem natureza confessional, vinculadas a apenas uma religião, comporta-se de modo intolerante e excludente, em total confronto com os ideais democráticos que supostamente pretende colocar em prática.

Cada dia é uma surpresa negativa nesse Brasil arcaico e retrocessivo. Cada vez se descobre que mais direitos foram tolhidos, com o reconhecimento e a aceitação – quando não o incentivo – daqueles que deveriam atuar como verdadeiros garantes desses mesmos direitos. Tenho a impressão de que algum dia acordarei e descobrirei que a tortura voltou a ser admitida. Pensando bem, os dados apurados, especialmente mas não exclusivamente, em audiências de custódia demonstram que a tortura tem sido praticada e não devidamente apurada. Isso quer dizer que, também nesse caso, há a conivência estatal, inconstitucional e inconvencional. Então, talvez um dia eu acorde e descubra que a pena de morte foi permitida. Mas também pensando melhor… os autos de resistência são uma prova de que a pena de morte também é institucionalizada.

O que falta? As mulheres deixarão de votar? Será legal diferenciar salários em virtude da cor da pele? Não poderá se caracterizar estupro em um casamento ou união estável? O Brasil parece uma máquina do tempo, que não apenas nos permite, mas nos força a retroceder muitos anos, mas também muitas lutas e muitas mortes. Se não exigirmos de forma veemente uma mudança na postura dos poderes constituídos, corremos o risco de termos que combater tudo de novo para, só então, poder usufruir minimamente dos direitos mais básicos. Não se trata só de religião nas escolas, trata-se de mais um largo passo rumo ao passado.


Notas e Referências:

[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=357099

[2] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/decisao-do-stf-sobre-ensino-religioso-foi-vitoria-dos-catolicos

[3] https://g1.globo.com/bahia/noticia/consagra-o-principio-da-liberdade-diz-ministro-da-educacao-sobre-decisao-do-stf-sobre-ensino-religioso-nas-escolas.ghtml

[4] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4439mCM.pdf


 

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