Linguagem neutra, ato democrático

06/04/2022

Em “9 de janeiro de 1794, um grupo de imigrantes alemães apresentou ao governo do Estado americano de Virgínia uma petição pedindo a publicação das leis também em alemão, para que pudessem melhor se adaptar à nova pátria. O pedido, entretanto, foi recusado por 42 votos contra 41. O voto que faltou foi o de um alemão, que se absteve. Segundo ele, quanto mais rápido os alemães se tornassem americanos, melhor” (DW, 03jun04).

A língua, pois, no caso dos alemães nos EUA, os realocaria, os completaria como cidadãos da nova pátria. Um século e meio mais tarde, um exemplo de supressão da língua de um povo imigrante. Quando o Brasil entrou na Segunda Guerra, em 1942, aqui horrorizaram-se alemães, italianos e japoneses, incluindo seus descendentes. Vedou-se conversar, cantar, escutar ou possuir rádio, fazer culto etc. na língua desses povos.

Língua é expressão de poder. No tempo do absolutismo católico, o latim se impunha; o francês expressou o poderio da França; haja visto o império inglês e, depois, o imperialismo estadunidense, o inglês universalizou-se; agora, com a China avultando-se em potência, desperta o mandarim. Registro o alemão: nunca se generalizou, mas é falado nos seis continentes, talvez pela importância de seus filósofos e de suas variantes religiosas cristãs.

Uma língua se assenta por expressar culturas, posições geográficas, decorrências históricas, economia, injunções políticas. Nem a geografia escapa das controvérsias ideológicas, dado que a ocupação de territórios se dá, de comum, em função de interesses de domínio os mais variados. Considerarei primeiro, contudo, as incidências políticas na fala. Exemplo: as contendas anarquistas no Brasil do início do século XX.

Com a imigração vieram mão de obra, tecnologia, ideias. O operariado italiano, sobretudo, era ativo sindicalmente e tinha tendência ao anarquismo. Mas, que é anarquia? Essa palavra foi tornada pejorativa, sinônimo de bagunça, embora se trate de uma proposta sociopolítica: Teoria social e movimento político que sustenta que “o indivíduo deveria desenvolver-se livremente, emancipado de toda tutela governamental” (Houaiss).

Anteriormente, na área cultural, uma sofisticada bailarina, a primeira do teatro Scala de Milão, reinou absoluta na Itália e destacou-se na Europa. Em decorrência de guerra, sua família veio para o Rio de Janeiro em 1849. Tornou-se, desde logo, a principal expressão artística da então capital e seu nome, Franca Anna Maria Mattea Baderna, famosa como Marietta Baderna, referência da cultura e exemplo social, inspirava elegância.

Baderna foi uma resistente política aos austríacos invasores da Itália. Ela, porém, não era uma resistente apenas em orientações políticas; o era também nos costumes: bebia um tanto, apreciava festejos populares e gostava de sexo. Não obstante fosse a dançarina dos salões tradicionais, tinha predileção, mesmo, era pela rua. Nas ruas conheceu a sensualidade dos ritmos das danças africanas, compondo-os com a delicadeza do balé.

Formou, com seu balé sensual e alegre, uma plateia inusitada: tornou-se uma bailarina tão popular que a classe operária desejou frequentar o teatro. Algum ruído foi junto. Sua nova plateia tinha “outra” etiqueta; efusiva, variava da impoluta “alta” classe social, habitual no recinto. Nomeados baderneiros, suscitaram a ressignificação do nome da artista. Nascia Maria Baderna. Para os “bons” costumes, Baderna significou bagunça.

Uma mulher, Marietta Baderna, tornou-se sinônimo de anarquia antes de o movimento anarquista aportar no Brasil. Anarquia, uma teoria propositiva à organização da sociedade, converteu-se em sinônimo de baderna. Palavras, são, pois, forjadas por relações que ocorrem na História; conteúdos ideológicos podem habitá-las. Muitas palavras postas em circulação encerram traços significantes que revelam mais que feitios linguísticos.

Uma palavra falada é uma ação no mundo. Se ideologizadas, geram efeitos ideológicos. Questão de gênero é questão de ideologia. Nesse campo – campo político – as palavras demarcam condição e intermedeiam a interpretação do mundo. Basta estar associada ao masculino ou ao feminino para o significado de inúmeras palavras despegar-se do seu sentido léxico oficial, tornando-se ditado de condição dignificadora ou pejorativa.

Exemplo da discriminação condicionante referida: no Houaiss, o vocábulo mulher: “na tradição, como indivíduo e/ou coletivamente, representação de um ser sensível, delicado, afetivo, intuitivo; fraco fisicamente, indefeso (o 'sexo frágil'), idealmente belo (o 'belo sexo'), devotado ao lar e à família (mulher do lar) etc.”. Já, homem é aquela pessoa “em que sobressaem qualidades como coragem, força, determinação, vigor sexual”.

O Aurélio não difere na carga. O verbete mulher: “dotada das chamadas qualidade e sentimentos femininos (carinho, compreensão, dedicação ao lar e à família, intuição)”. Verbete homem: “dotado das chamadas qualidades viris, como coragem, força, vigor sexual etc.”. Explicitamente, os conceitos de homem e de mulher são atribuições de papéis sociais, mostrando que nas palavras está a amarração e reprodução de valores circulantes.

O século XX foi fascinante. Produziu revoluções inimagináveis. Socialmente, a mais relevante, em andamento, foi a feminista. O arrefecimento das crendices religiosas desvencilhou a mulher da submissão marital; os contraceptivos deram-lhe controle sobre a reprodução; a tecnologia de utilidade doméstica proporcionou-lhe tempo livre. Muitas mulheres puderam estudar. Para o bem (Bacon) ou para o mal (Foucault), saber é poder.

Mulheres não se sentem bem se referidas pelo masculino. Ademais, o século XXI avançou nas liberdades de gênero. É-se do gênero que se deseje, ou que se declare. Sim, resta violência, mas é possível. Pessoas LGBTQIA+ não desejam ser referidas como femininas ou masculinas. É simples de entender: mulher não é homem; LGBTQIA+ não são mulher nem homem. Esse novo fato está na História e pede uma linguagem que o contemple.

Linguagem neutra. Por sobre toda a questão política e a ideológica, outro aspecto do assunto, o psicológico, é relevante. A linguagem nos constitui. Já antes de nascer nós somos faladEs. A expectativa, do pai e da mãe, sobretudo, nos dita um compromisso de ser. O pai e mãe nos desenham e nos discursam sobre nós, sobre o que seremos. O “garotão” e a “menininha” são desenhadEs e o desenho é falado à criança desde sempre.

Uma criança do sexo feminino é falada não só como mulher, mas como um tipo específico de mulher; igualmente, a criança do sexo masculino tem uma formatação a aguardá-la (conceitos dicionarizados acima). Não se pondera que uma criança pode crescer e não dar conta do desenho que lhe foi formulado e falado; uma pessoa pode não ter gosto pelo projeto de vida com o qual nem está obrigada. E se ela quiser redesenhar-se?

Aí o psicológico encontra o sociológico. Uma sociedade inteira seguirá falando (discursando sobre) a pessoa que cresce, interpelando-a com palavras. Parte dessas pessoas será nomeada por um gênero no qual talvez ela não se reconheça, sutilmente se lhe roubando a autoestima. Assim, em uma classe com muitas alunas e poucos alunos, conforme a regra gramatical: os alunos. Não há uma indignidade nisso? Masculinizaram a língua.

Alguém pode lembrar que a língua é organizada considerando dois gêneros. Só subsidiariamente: seja, quando não conflita, admite-se o feminino; se há um e outro gênero a serem falados, fala-se no masculino. A questão da masculinização da língua, em parte, todavia, principia a ser resolvida. Esforços de fala e escrita têm contemplado o feminino. O mundo, todavia, não é (nunca o foi) território de existir de apenas dois gêneros.

Mover a língua. Toda língua é coisa que se transforma, é transformada. Uma língua é alterada por diversos motivos: a gente falante vai enriquecendo-a; novos inventos e novos fatos são nomeados e os nomes são incorporados; palavras estrangeiras são adotadas; tratados internacionais atualizam a gramática. De fato, não ocorrem com simplicidade modificações na fala de um povo, mas são possíveis. No caso, são necessárias.

A descompressão dos afetos possibilitou que sentimentos de gêneros se consubstanciassem em expressões de gênero. A humanidade variou. Não obstante a regra gramatical dizer que o vocábulo masculino é neutro, alterando apenas a desinência de gênero quando ocorre o feminino, a realidade é que a desinência mesma deve se democratizar. A alternativa alvissareira é o esforço de neutralização de substantivos, pronomes e artigos.

Democracia também se move, incorpora novas formas e condições. A língua que falamos, pois, dado que somos um país que se pretende democrático, deve ser reformada para prestigiar outros afetos existenciais. Democracia já não se resume a simples apuração eleitoral de maioria. Democracia é gentileza com E próximE (as minorias). A língua será tanto mais democrática quanto mais contemplar a todEs como contemplas a ti mesmE.

 

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