LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO: TRADUÇÃO DA MEMÓRIA DO CORPO ENCARCERADO

11/02/2021

Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário

A visão pragmática do sistema prisional brasileiro não permite adentrar em terreno otimista, cujo óbice remanesce na ostensiva violação à dignidade da pessoa humana e supressão dos direitos fundamentais. O repertório da resistência, composto por um acervo de lutas pela sobrevivência da população de baixa renda demonstra-se reproduzido no recorte social da população carcerária, exibindo a prisão como gênese de administração da pobreza.

Dada a referida conjuntura histórica do país, onde o manancial legislativo tratou de legitimar a escravidão sob o jugo da alta estirpe formada pelo senhorio e impossibilitou o efetivo exercício do direito aos cativos, ergueu-se um arcabouço racial. No século XIX, o surgimento das favelas no Rio de Janeiro emanou do fracasso estatal na emancipação dos libertos pela Lei Áurea, fazendo com que uma vez excluídos do corpo social e do mercado de trabalho, passassem a habitar nos morros, com assentamentos informais.

Posteriormente, a demarcação do destino dos miseráveis incorporou-se aos traços fisionômicos da (pré) suposta anomalia social e delinquência. Da escola positiva italiana da criminologia à adequação das teorias raciais no racismo científico, o estereótipo do criminoso moldou um estigma que corrobora a construção do infrator no imaginário social e impulsiona o clamor pelo recrudescimento punitivo.

O fenômeno da favelização nas comunidades periféricas, cuja vertente socioeconômica é geradora de problemas sanitários, ausência de segurança, precariedade de acesso aos recursos, bem como negligência estatal, possui um denominador comum com o cárcere. Há comunicabilidade entre a condição social que antecede a vida pregressa do detento e o sistema que o custodia. A população intramuros reflete uma desigualdade preexistente vivenciada pelo mesmo contingente, enquanto extramuros.

O descarte exacerbado de seres humanos no complexo prisional atinge um volume que ultrapassa a capacidade de infraestrutura e impulsiona sinais de degradação. O aglomerado das celas superlotadas promove a interface da cultura do aprisionamento com as relações sociais de miserabilidade, ecoando o ruído de seres marginalizados que não foram amparados pelo controle social informal.

A instigante e profunda obra do sociólogo canadense Erving Goffman delineia a necessidade de o operador do Direito não ser um reles espectador desta realidade, mas sim imiscuir-se na companhia dos seres humanos institucionalizados, como forma de pertencimento também àquele locus. Aduz que prisioneiros, por exemplo, criam sua própria forma de reviver naquela realidade sombria, tolhida, limitada. Como um comando, Goffman vaticina: submeta-se à companhia dos presos (ou de pacientes, ou de outras formas de institucionalização humana nas chamadas “instituições totais”).

Para além do momento de vivência no cárcere, a suposta liberdade conquistada após a saída das instituições totais é motivo de extremada preocupação do autor: identificou-se o apego àquela prisão total, fenômeno da institucionalização.

Por mais duras que sejam as condições de vida nas instituições totais, apenas as suas dificuldades não podem explicar esse sentimento de tempo perdido; precisamos considerar as perdas de contatos sociais provocadas pela admissão numa instituição total e (usualmente) pela impossibilidade de aí adquirir coisas que possam ser transferidas para a vida externa - por exemplo, dinheiro, formação de ligações conjugais, certidão de estudos realizados. (GOFFMAN, p. 65).

As visitas institucionais ou de inspeção realizadas pela Defensoria Pública, por exemplo, tornam-se o mais genuíno momento de aproximação e experimentação da realidade carcerária.

Entre cadeias, centros de detenção provisória e penitenciárias, vislumbrou-se a inventividade, muitas das vezes de alta perigosidade à saúde e à integridade física de presos, que visavam transformar aqueles não-lugares em algo que viabilizasse a sobrevida.

Viu-se a histórica forma de produzir bebida alcoólica com restos de comida, transformando-se na popular maria-louca. O odor insuportável, naquelas celas apertadas, sem ventilação (curiosamente o ambiente adequado para os pequenos alambiques do cárcere) era tomado pelo azedar dos alimentos. Hoje, ao nos depararmos com processos administrativos disciplinares pelo fabrico de bebida alcoólica artesanal, nossa primeira curiosidade é dar uma olhadela no número de matrícula do sentenciado: decerto registra número antigo.

Estas ocorrências vêm se findando a partir do ingresso das substâncias estupefacientes no ambiente carcerário, como consectário do crescimento e estabilização de facções prisionais e do poderio do tráfico de drogas, gerado pela guerra perdida e insana.  Hoje, os antigos alcoólicos do cárcere restam como exceção. Ali, tanto para eles como para outros milhares, firmou-se local de seguimento ou de iniciação do processo de toxicodependência.

Viu-se, igualmente, a forma de produzir uma espécie de ricota ou coalhada: consistia em deixar exposto ao sol saquinhos de leite entregues no café da manhã. A unidade prisional servia apenas três refeições diárias. A última às 16/17 horas. A coalhada tornou-se a ceia daqueles que não participam do comércio de excedentes levados a outros cativos, que recebem visitas regulares. A comida lança-os no mesmo ciclo de endividamento promovido pela droga, pelo cigarro e outras moedas do cárcere.

Em alguns locais, o alumínio do marmitex foi transformado em fios elétricos. Enrolados e emendados até atingirem o ponto de eletricidade, ligavam lâmpadas, aparelhos de TV e de rádios. Aqui também cabe citar a forma de aquecimento dos banhos, com a criação de resistência artesanal.

Finalmente e o mais importante - que remete o caro leitor para dentro do ambiente prisional -  descortina a linguagem criada pelos encarcerados, que reluz desde a forma de comunicação com servidores públicos das unidades prisionais aos que com aqueles que lá visitam.

Restaria raso apenas citar as expressões criadas, mas a título de curiosidade despertam também para um olhar global do fenômeno de institucionalização e de pertencimento ao local: vaso sanitário = boi; cueca = coruja; cartas = pipa; etc.

Tudo como parte de uma criação real e necessária. É auto humanização pela linguagem.

Porém, há um segundo e terceiro movimentos de utilização da linguagem no cárcere, como fenômenos de aplicação da sanção moral (segundo caso) e da perpetuação das falácias dos fins da pena (terceiro caso). Vejamos.

Na relação servidor público /sentenciado, todos estão sempre sobre uma linha tênue. O armistício é bastante raro, pois a história prisional dilacerou a viabilidade de aproximação entre pessoas. Os dispositivos de poder no cárcere mantêm a necessidade de publicizar uma rotina de submissão hierárquico-humana. Não à toa, obteve-se, por alteração constitucional, a oficialização do que praticavam no dia a dia: de agentes penitenciários - função tipicamente civil - aos agora policiais penais. Os eternos e intermitentes flerte e adoração do Brasil com a necessidade de militarização atingiram o cárcere de forma oficial e constitucional.

A partir daí a prisão, enquanto um mecanismo técnico-disciplinar, conforme ilustrou Foucault, visa docilizar o indivíduo, utilizando-se de armaduras institucionais que revestem maior credibilidade na palavra do carcereiro em detrimento do encarcerado. O resultado do manejo reflete na instauração de procedimentos disciplinares, não raras as vezes com oitivas implicando em negativas simples ou exercitando o direito ao silêncio, malgrado a interpretação soe como confissão.

Um cronômetro se inicia para moldar o indivíduo a uma nova forma, marcando dias, meses, anos e mantendo a solidão como um acréscimo da pena. O aparelho correcional, tal como uma antítese da natureza humana, implica na morte social ensejadora da necessidade de sociabilizar com outros detentos. Cabe salientar que a superlotação das celas e a não observância da separação conforme a gravidade dos delitos - de acordo com a LEP, contribuem nas aproximações das biografias.

Os antigos suplícios, que no passado reuniam multidões para assistir ao evento de rechaço aos condenados, sofisticaram-se na atual configuração de uma perseguição midiática em prol da espetacularização do processo penal, com o fito de promover o entretenimento de parcela da população, que desconhece os efeitos deletérios da prisão, bem como a cifra negra protetora de delitos cometidos diariamente.

Os valores constituídos individualmente e as aproximações pessoais efetuadas através de escolhas atuam em contraste com a prisão, uma vez que as relações de convivência são obrigatórias, as amizades tornam-se temporárias (consoante a duração da pena) e os interesses são medidos de acordo com a possibilidade de sobrevivência, razão pela qual o indivíduo perde a percepção da vida em sociedade em meio aberto.

Sobre os servidores públicos, a linguagem fantasia até mesmo a falsa sensação de que governos passarão a dar destaque a tão valiosa função. Cita-se o estado de São Paulo, com um déficit grandioso de trabalhadores dentro das unidades prisionais (relação número de presos/servidor), defasagem salarial, condições inumanas de prestação de serviço, unidades localizadas em zonas distantes, a exigirem, ainda, o gasto com transporte próprio. Isto é, não será a nomenclatura do cargo o suporte à necessária estruturação da carreira. E ainda inflama a já conturbada relação intramuros, com mais e mais polícias.

O tensionamento do tratamento vocal e gestual entre presos e servidores desemboca na sistematização de um controle disciplinar pelo método do silêncio.

A abertura desenfreada de sindicâncias disciplinares pela expressão aberta e ilegal da LEP – desobediência/indisciplina- inunda os processos de execução penal e postergam lapsos temporais progressionais anos a fio. Os efeitos do esgarçamento, assim, não se resumem a um distanciamento servidor/preso, mas refletem diretamente na mantença da punição penal. Como no processo penal, a força probante da palavra do policial é multiplicada ao ponto de presunção generalizada de culpa: redundará na facilidade condenatória por faltas disciplinares em âmbito administrativo, depois facilmente sufragadas por decisões judiciais, rigorosamente padronizadas.

É preciso reconhecer que existe o uso do poder disciplinar como força motriz do esticamento da pena corporal - advinda da sentença condenatória criminal - com as punições administrativas: a construção jurisprudencial da interrupção do tempo de contagem para progressão de regime, ora legalizada pela nova redação do art. 112 da LEP, em seu § 6º.

O cárcere entronizou expressões de tratamento numa espécie de gregarismo, sem previsão de aproximação. Os dois lados, ladrão vs. polícia, apoiam-se na união entre os seus pares. Apesar de com um simples olhar ser o bastante, ao menos para opinar, de como seria possível distencionar algo demasiadamente litúrgico: se a parte com maior número de pessoas (presos) já está sob condições de gradeamento, isolamento e naturalmente disciplinados pelo poder físico e psíquico de grades, algemas e superlotação, desnecessário o uso da força física ou moral como admoestação do corpus.

No entanto, a opção pela beligerância começa na rua e perpetua-se na prisão, rigorosamente sob mesma rubrica, repita-se: polícia vs. ladrão.

O terceiro cenário reside na necessidade de tanger o brilho falacioso das funções da pena, com o uso deliberado do positivismo extremo das expressões jurídicas de tratamento do jurisdicionado encarcerado, pelo próprio Poder Judiciário. Ele se torna o reeducando: aquele que deve ser ressocializado e reintegrado. É, decerto, um eufemismo irônico e desconcertante.

Não há motivos que afastem a qualidade humana de tratamento nominal à condição destas pessoas que não seja a real: preso, sentenciado, encarcerado. Ou ainda mais claro: reificado.

Após percorrer todo um iter classificatório desumanizante nas fases pré e processual penal (investigado, increpado, acusado, réu, condenado) será no sistema prisional carcomido que ele será ironicamente tratado como sujeito de direitos?

Barthes, brilhantemente, dá o suporte técnico a este cenário do uso da linguagem. Aduz “que a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder” (Barthes, 1980).

Mas, ainda assim, é preciso atenção. Não se desconsidera uma última realidade, que a práxis nos ensina: presos e familiares adaptaram-se ao pleonasmo do engodo - sentem certo conforto com o uso da palavra reeducando, como uma forma respeitosa. Assim, importante acatar, em sua relação interpessoal e profissional a forma como acabaram se sentido mais próximos de suas humanidades. O protagonismo de escolha é sempre do sujeito de direitos.

Porém, caso queira verdadeiramente adotar a humanização no tratamento ao preso, até como forma real de auxiliar em seu processo de autodesenvolvimento e motivação (neurolinguística) a sugestão é simples: chame-o pelo nome. Descarte o número de matrícula. Tornemos letra morta a falácia da reeducação.

 

Notas e Referências

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 9. ed. São Paulo: 2019.

BARTHES, Roland. Aula. 13. ed. Cultrix. 1980.

 

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