Limites da desconstrução da inquisitividade no NCPP: abordagem inicial - Por Fauzi Hassan Choukr

14/10/2017

Caracterizada a inquisitividade pela concentração de poder[1] e pela baixa transparência e controle sobre as movimentações dos intervenientes processuais, deve-se observar como o NCPP movimenta-se para desconstruir normativamente o histórico modo de funcionamento da administração da justiça penal, analisando o esforço legislativo sob dois ângulos distintos: primeiro, pela nova disciplina sugerida e, para além disso, pelos mecanismos refreadores da persistência de práticas e conceitos do regime que se quer superar. Verdadeiramente o segundo aspecto apontado é vital para que um eventual novo modelo de administração do sistema persecutório possa superar as heranças e permanências inquisitivas. Tão vital quanto as discussões de fundo sobre a essência dos modelos[2] processuais. 

E, na discussão de fundo, para além da dicotomia inquisitivo x acusatório (ver aqui) surgiu ao longo das últimas décadas no cenário jurídico brasileiro, largamente desacostumado às discussões sistêmicas[3], uma nova polarização: acusatório x adversarial (adversativo), ambos opondo-se à inquisitividade, mas comportando cada qual origens e modos de atuação pelas quais se sustenta que não podem ser considerados como sinônimos. E, mesmo dentro de cada um desses campos, há diferentes conceitos de acusatoriedade e há aspectos do modelo adversativo que são diferentes quando tomado como parâmetro o direito estadunidense e o inglês.[4] 

Aqui, no entanto, deve-se manter vivo o alerta primário de qualquer estudo comparado: o da impossibilidade de usar-se de forma acrítica e meramente transpositiva conceitos e análises realizados a partir de outras origens históricas e em outros contextos sociais. Por isso, no caso brasileiro, um sistema acusatório ou adversativo deve ser concebido observando-se a larga tradição de desrespeito a direitos fundamentais que permeia o funcionamento do Estado brasileiro no qual o sistema persecutório é apenas uma de suas manifestações. 

Isto assentado, as diferenças entre os conceitos de acusatoriedade na forma como pautado por parte significativa da doutrina leva em conta o papel preponderante do órgão julgador no percurso epistemológico algo que soa comum no direito europeu-continental que se vê francamente acusatório convivendo com poderes instrutórios oficiais e repudia que sua máquina persecutória seja adjetivada de inquisitiva por essa característica. 

Nesse ponto, a superação dos chamados “juizados de instrução” e a limitação da cognição unicamente ao que foi produzido perante o órgão julgador em renovações legislativas podem ser consideradas como suficientes para caracterizar novos códigos como acusatórios[5]. Se, em juízo, houver o intervencionismo judicial no itinerário de cognição (produção de provas “de ofício”) ainda assim será rotulado como acusatório o novo modelo. 

Por outro lado, o conceito de modelo adversativo vem construído na tradição do direito comum anglo-saxão, basicamente ligado à progressiva intervenção da defesa técnica nos julgamentos penais e, com ela, a consequente construção de um intrincado sistema de exclusão probatória com vistas a limitar o arbítrio estatal. O distanciamento do órgão julgador desse itinerário cognitivo é natural a partir da superação das origens mais primárias do júri nas quais o julgador era, em si, alguém que detinha o conhecimento direto e pessoal dos fatos a serem julgados. 

Por detrás dessa discussão está, igualmente, a forma como a pessoa submetida à persecução é tratada e a própria justificação técnico-política dessa forma de tratamento. E, particularmente sensível nesse campo a forma como se dá o tratamento da liberdade na alegada contraposição ao objetivo de “efetividade” do processo. Seara na qual o NCPP será particularmente desafiado a regular.

 



[1]              Concentração de poder que aparece destacadamente, como já visto, na concretização dos denominados “poderes instrutórios” do órgão julgador. Aqui, acrescente-se a crítica de FROEB, Luke M.; KOBAYASHI, Bruce H. Evidence production in adversarial vs. inquisitorial regimes. Economics Letters, v. 70, n. 2, p. 267-272, 2001, para quem, a partir de modelos matemáticos, demonstra-se que essa concentração não significa uma melhor performance da administração da justiça penal. Esse trabalho destaca, igualmente, que não há supremacia de um modelo sobre o outro.

[2]              Tenha-se aqui que “"Model" is more easily used as an example, an ideal or a prototype. The concept of "model" is also associated with something "whole," it is rather holistic, it suggests a "something" e que “The concept of "system" on the other hand is primarily relational. It combines things. It can be used for external connections from a "whole" or for internal connections of components of a "whole." The concept of "system" is normally associated with the structure of relations, possibly interactions”. NIJBOER, Johannes F. The American adversarial system in criminal cases: Between ideology and reality. Cardozo J. Int'l & Comp. L., v. 5, p. 79, 1997.

[3]              Discussões que alimentam o cenário comparado há décadas. Entre vários exemplos ver Langbein, John H. and Weinreb, Lloyd L., "Comparative Criminal Procedure: “Myth” and Reality" (1978). Faculty Scholarship Series. Paper 532. http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/532 para uma discussão sobre os limites de comparação de modelos de administração da justiça.

[4]              A ver, por exemplo, na descrição de NIJBOER, Johannes F. The American adversarial system in criminal cases: Between ideology and reality. Cardozo J. Int'l & Comp. L., v. 5, p. 79, 1997.

[5]              ILLUMINATI, Guilio. The Accusatorial Process from the Italian Point of View. NCJ Int'l L. & Com. Reg., v. 35, p. 297, 2009, para quem “In light of the current Italian code of criminal procedure, the accusatorial system can be defined as the system where only the evidence produced in a public trial, which grants crossexamination, may be used as a basis for the judge's decision. This stands in opposition to the inquisitorial system, where the decision is grounded upon evidence gathered unilaterally and secretly during the preliminary investigation by the magistrate in charge, with little difference as to whether the investigation is carried out by a judge or prosecutor.”

 

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