Liberdade de Expressão, regulamentação e o direito de escrever (e acreditar em) mentiras

03/08/2018

Coluna O Direito e Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

A decisão do Facebook de apagar algumas páginas vinculadas ao Movimento Brasil Livre (https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/veja-o-que-motivou-remocoes-de-paginas-e-perfis-ligadas-ao-mbl-do-facebook/) traz, para além de nossas afinidades (ou falta de) com o grupo, algumas questões bem importantes sobre liberdade de expressão e auto-regulamentação e uma linha tênue entre regulamentação externa, censura e “edição”.

O Facebook se meteu em uma série de problemas pela sua (falta de) política editorial com relação às Fake News. Basicamente, a “rede social” (se é que o facebook ainda se encaixa nessa nomenclatura) teve que responder nos Estados Unidos e na União Europeia pela sua falta de oversight sobre a propagação de notícias falsas, e, sobretudo, pela facilidade com a qual aceitou lucrar com a propagação de informação de conteúdo duvidoso (e, muitas vezes, odioso) pela rede.

A discussão é muito mais complicada do que ela inicialmente parece. Para compreender ela a gente precisa, antes de mais nada, tentar entender qual é o papel do Estado na regulação de discurso, e o papel das organizações jornalísticas na auto-regulamentação editorial.

Aqui, começamos com um problema: o que diabos é uma “organização jornalística”? O facebook se encaixa nessa definição? Certamente, o facebook não produz notícias, não é, no sentido clássico do termo, um veículo jornalístico. Ele não tem, na origem, uma função desse tipo. O facebook nasce como uma rede para troca de contatos, foto de bicho, álbum de família, microblogging e mini-jogos online. Notícias entram no facebook muito pela necessidade que veículos de mídia (tipo BBC, CNN, Rede Globo) sentem em se fazer “presentes” nas redes sociais, buscando comentários e reações instantâneas à notícias - e também meios de “fidelizar” os seus usuários.

Paralela à presença dos meios de comunicação normal dentro das redes sociais, toda a rede paralela de veículos de comunicação “alternativa” também entra na internet. A diferença é que os veículos alternativos aprendem rápido a usar os mecanismos de ampliação de audiência do Facebook (e de outras redes sociais), e conseguem sair de uma bolha de usuários mais afeitos à teoria da conspiração.

Me parece que aqui temos uma questão central: redes de notícias falsas e teorias da conspiração existem na internet desde os primórdios da rede. Isso contemplam desde veículos de extrema direita e extrema esquerda reproduzindo pauta de zines que na década de 80 eram impressos em almoxarifado em um contexto muito maior, até veículos de teorias da conspiração sobre extraterrestres, reptilianos, ceticismo com relação à chegada do homem na lua, cultos apocalípticos, e tudo isso ai junto e misturado.

O que o facebook e o twitter fazem, junto com a popularização dos smartphones e os apps de consumo rápido de manchetes, é colocar essa informação, antes restrita a pessoas que ativamente queriam ler e procurar sobre esses assuntos, em um grande outdoor para milhões de usuários.

As consequências desse modelo de multiplicação de notícias são enormes. Notem que o New  York Times, e sua circulação de milhões de exemplares, jamais colocariam um anúncio de uma organização defendendo que a terra é plana na lateral da coluna sobre astronomia do jornal - enquanto isso, o algoritmo do facebook, por uma parcela do preço, coloca o link para um vídeo explicando a plausibilidade da teoria do terraplanismo do lado de um vídeo do Neil deGrasse Tyson - do ponto de vista editorial, essa “escolha” coloca uma equivalência entre uma opinião especializada, bem fundamentada e uma mentira ridícula.

Esse tipo de falsa equivalência, provocada pela falta de critérios para a multiplicação de informação dentro do facebook (e outras redes sociais) traz uma questão importante: quem tem o direito de terminar qual informação vale, e qual informação não vale? Quem tem o direito de dizer que não podemos fazer falsas equivalências em público, se é que alguém tem o direito de dizer isso?

No que segue, eu gostaria de propor uma reflexão sobre isso a partir da teoria da liberdade de expressão do nosso amigo John Stuart-Mill.

Stuart-Mill, vocês sabem, fundamentou boa parte da teoria política dele em cima da liberdade de expressão. A liberdade de expressão é tão importante no trabalho do homem que o Dworkin usa ela de exemplo para o que ele entende como "direito".

Se vocês lembrarem do "Levando direito à sério", o velho Ronald passa um bom tempo definindo "um direito" como algo difícil de ser relativizado, ou colocado em perspectiva. Ele usa a definição de "liberdade de expressão", em Mill, como um exemplo do que ele quer dizer como "direito", embora ele não concorde com o Mill sobre a prioridade da liberdade de expressão: o Mill acreditava tanto na liberdade de expressão que ele colocava a possibilidade da liberdade de expressão como valor mais marcante de uma sociedade democrática, e defendia, na mesma linha, que todos deveriam ter a liberdade de poder dizer o que bem entendessem para tantas pessoas quanto eles conseguissem mobilizar.

Mas, mesmo entre Millianos, o funcionamento dessa “liberdade para dizer o que bem entender para quem tiver vontade de ouvir” é complicado.  O termo escolhido para falar de liberdade de expressão é o "livre mercado de ideias", a ideia é que expressões se regulam melhor se elas não forem "marcadas" previamente como boas ou ruins - indivíduos "votam com os pés" na direção de diferentes opiniões. No entanto, existe um debate entre esses mesmos Millianos sobre o que a gente chama de "discriminação do falso", que é relacionada tanto com o direito de afirmar mentiras e o direito de acreditar em coisas mentirosas.

Internamente, tu vai ver aqui um debate bem radical entre perspectivas mais libertárias, que vão na direção até do direito de discriminação interna, e vedação de discriminação externa, e perspectivas mais realistas, que falam em uma vedação de discriminação interna e direito de discriminação externa

Sobre o primeiro caso: é o caso do Facebook determinando, internamente, quem pode ou não pode falar no facebook. Enquanto plataforma privada, o veículo escolhe um grupo que pode ou não pode falar, por "n" motivos. A força epistêmica do "n" motivo é de discricionariedade interna do facebook, nota bene. O facebook decide o que tem ou não tem "realidade" suficiente para merecer espaço (essa decisão pode ter, e vai ter, relação direta com custo-benefício, é claro) - enquanto isso, ele fala para  o público que está tomando providências objetivas sobre as consequências mais nefastas da auto-determinação libertária dos seus algoritmos.

Nessa linha,  uma interpretação libertária do Mill vai dizer: isso é vedar direito de expressão dentro de um contexto interno, e o direito de discriminação de expressão é direito fundamental (derivado do direito de expressão). Esses mesmos Millianos, via de regra, defendem que grupos se autorregulem para serem exclusivos de perfis ou de discursos específicos - o que é dizer, vão defender o direito de discriminar por raça, capital, gênero como incluídos dentro do direito de expressão, desde que, é claro, essa discriminação seja discriminação de discurso, decidida internamente, e não implique em violência física. Eu não conheço algum Milliano que defenda o direito de expressão incluindo direito de agir com violência física contra alguém por causa de opinião distinta.

A segunda interpretação é a que eu chamei ali em cima de interpretação realista do Mill (que eu acho a mais alinhada com a Economia Política, diga-se de passagem). Ela vai em uma direção menos privatista:

Quem tem direito de determinar a força epistêmica do argumento não é só o livre mercado de ideias, porque o livre mercado de ideias não opera em um vácuo. Nesse caso, apenas externamente (por exemplo, por alguma determinação legal) é possível regular o discurso. O discurso é livre dentro de qualquer plataforma DESDE QUE ele não viole normas estabelecidas legalmente. Assim, qualquer veículo que se proponha a facilitar expressão/comunicação não pode editar previamente o conteúdo de expressões colocadas lá dentro. Pelo contrário, quem define essa "edição prévia" é alguma força de lei, específica sobre isso. Se não há a lei, não há possibilidade de ação proibitiva dentro dos veículos de mídia.

Nesse caso, o Estado se coloca no papel de facilitar a mediação do discurso, através da determinação da forma epistêmica do "discurso". Os atores privados surfam dentro dessa forma, e não podem discriminar qualquer expressão compatível com ela.

No fundo, a tensão aqui é sobre qual é a justificação possível para a discriminação de discurso e/ou censura. E não se enganem, ao dizer "esse tipo de discurso falso não pode ser dito", o facebook está, tecnicamente, operando um tipo de censura/discriminação

A gente pode passar dias aqui discutindo se essa discriminação/censura é justificável, se existe um dever de proteção contra a propagação de mentiras, ou se o "livre mercado de ideias" tem maturidade para se regular sozinho, ou, em outros termos,  se o livre mercado de ideias pode ser regulado apenas a partir dos agentes difusos que têm plataformas para facilitar o "diálogo de ideias".

O debate sobre o Facebook tirando o MBL do ar, me parece, é mais produtivo se  a gente pensa ele a partir dessa tensão. Meu posicionamento é que menos regulamentação de discurso é melhor que mais, e que é assustador que um veículo apenas detenha tanto poder sobre discurso; ainda que, em última medida, quem tenha transferido esse poder para esse veículo tenha sido todos nós, quando usamos esse veículos para debater - e não para trocar fotos de nossos animais de estimação.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lenovo Facebook event_001 // Foto de: TAKA@P.P.R.S // Sem alterações

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