LIBERDADE CONTRATUAL E PATERNALISMO LIBERTÁRIO: REFLEXÕES EM UM DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL

03/10/2018

 

Coluna Substractum / Coordenadores Natã Ferraz, Juliana Jacob e Luciano Franco

A construção histórica do Direito muito nos esclarece a respeito de inúmeras concepções, perspectivas e institutos hoje percebidos como basilares de uma ciência pautada pela proteção da pessoa humana, bem como pela noção de que, na contemporaneidade, os ideais de sociabilidade, eticidade e solidariedade constituem fundamentos básicos da ordem jurídica.

No plano do Direito Civil, sobretudo no âmbito contratual, estas considerações são de tamanha relevância que, não raras as vezes, fazem com que importantes debates dogmáticos sejam refletivos nas relações particulares e que o próprio Poder Judiciário seja instado a se pronunciar no ensejo de que, à luz de um novo modelo jurídico não mais exclusivamente individual e patrimonialista, seja feita uma nova leitura de institutos clássicos.

Não temos dúvida de que, com o decorrer do tempo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, a proteção da pessoa humana passou a ser alvo de importante debate e reconhecimento em sede constitucional. Nessa linha, dada a compreensão de força normativa da constituição e de sua respectiva hierarquia como parâmetro de validade em relação às demais normas, o Direito Civil passa a ser influenciado por novos princípios basilares constitucionais, tais como dignidade da pessoa humana, solidariedade e justiça social, dentre outros, implicando, assim, na chamada constitucionalização, não só desse ramo jurídico em específico, mas também de todos os outros. A respeito de tal leitura, confira-se destacável julgado do STF (RE 201819/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 27/10/06) onde foi reconhecida a necessidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

Todo este cenário leva a conclusão de que se o Direito Civil era proveniente de ideais liberalistas de Estado, da autonomia plena e do patrimônio como finalidade principal a ser protegido, atualmente temos uma relativização da plenitude das escolhas, ainda que no âmbito exclusivamente privado. Isso porque, historicamente, a concepção de liberalismo foi construída em face de um modelo de Estado Absolutista, o qual não mais prevalece na atualidade, uma vez que a noção de Estado Democrático de Direito na qual estamos imersos, traduz na necessidade de um modelo transformador da realidade social.

Note-se que a aplicabilidade de direitos e garantias fundamentais em todos os ramos do Direito é de notável importância que, com bastante propriedade, sustenta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana cumpre duas funções: a limitadora, no sentido de restringir, em certa medida, a autonomia particular, o qual tem por condão viabilizar um amparo aos indivíduos a fim de que seus direitos constitucionais não sejam violados; de outro lado, a função prestacional implica no desejo de concretizar uma existência digna a todos (DIAS, 2013).

Feitas estas reflexões, podemos iniciar os apontamentos a respeito dos modelos liberalista e paternalista. Pois bem. As referências históricas ao modelo liberalista parte de uma necessária conceituação do que, ao longo do tempo, foi construído. Neste sentido, afirma-se que em John Locke se fez possível um primeiro apontamento importante a respeito do tema, sendo que, para o filósofo – que se pautou por uma concepção de liberalismo clássico – o poder do Estado não seria absoluto, sofrendo limitações por meio das próprias liberdades dos cidadãos. Este panorama foi posteriormente marcado pelo fenômeno do movimento constitucionalista, fator imprescindível para com a desconstrução de um modelo absolutista e monárquico. A esta visão, também se acrescenta as noções provenientes de uma tradição liberal econômica decorrente do século XVIII, defendida por Hume e Adam Smith (ÁLVAREZ, 2015).

Próximo a estes registros, podemos elaborar uma relação no sentido de que a consciência de proteção ao indivíduo encontra-se intimamente ligada à própria afirmação de seus direitos fundamentais e, nesse aspecto, a noção de paternalismo e liberalismo surge com o objetivo de, por um ângulo, fortalecer a autodeterminação do ser humano numa dimensão positiva e, por outro, vedar eventuais constrangimentos numa dimensão negativa (DIAS, 2013). Aqui reside a importância de se discutir os modelos paternalista e liberalista para que, logo em seguida, se faça possível elaborar algumas perspectivas para o cenário brasileiro atual.

Em tal contexto, devemos ter em mente que a primeira definição de liberalismo, seja pelo aspecto político ou econômico, pautava-se pelo objetivo de se reduzir o controle dos indivíduos por parte do Estado (situação também vislumbrada por intermédio da chamada primeira geração dos direitos humanos – que preconizava a não interferência do Estado a fim de que fosse garantida a plena liberdade individual).

Entretanto, descrever alguns marcos filosóficos é de imensurável importância para com a compreensão do que se entende por liberalismo. John Stuart Mill, principal referencial teórico sobre o liberalismo, pautou seus ideais no contexto do Iluminismo. Com ele, podemos apontar o chamado “princípio do dano” o qual preconizava que ao Estado não caberia a interferência na esfera privada individual, salvo se a ação realizada causasse dano a terceiros. Diante disso, por intermédio de tal perspectiva filosófica, já podemos vislumbrar uma primeira preocupação no sentido de que, se de um lado temos a autodeterminação individual, de outro temos uma limitação em prol da proteção da humanidade e da prevenção de ocorrência de danos aos semelhantes. Por isso, defende-se que, em um quadro onde a proteção da pessoa humana constitui um objetivo basilar da ordem jurídica (democrática), deve haver coincidência entre a utilização da liberdade com outros fins primordiais. Além disso, o fato de ser o homem um ser essencialmente social, leva a crer que dignidade humana deve oferecer certos mecanismos de limitação à plena autonomia, principalmente considerando o aspecto antropológico, o qual inviabiliza uma integral separação entre público e privado (ÁLVAREZ, 2015). Conforme faremos referência, há casos em que a ação de uma pessoa, ainda que não cause danos direitos a indivíduos determinados, poderá implicar em danos a interesses protegidos sobre o ponto de vista coletivo, o que justifica alguma autorização por parte do Estado, que atua na condição de promover o bem comum.

Uma vez que a dicotomia integral entre paternalismo (num viés onde a liberdade de escolha é praticamente suprimida por opções previamente elaboradas) e liberalismo não atende, do ponto de vista deste estudo, aos objetivos defendidos pela constitucionalização do Direito, conforme esclareceremos a seguir, a proposta de Cass Sunstein e Richard Thaler no sentido de construir um modelo de paternalismo libertário nos parece induvidosamente pertinente ao nosso ordenamento jurídico e, em específico, no âmbito do direito contratual civil.

Para os autores mencionados, a noção deste paternalismo libertário acoberta a ideia de que um esforço consciente deve ser valorizado, seja por instituições públicas ou privadas, de modo que os indivíduos sejam guiados em direções que levem a um retorno positivo no âmbito de seu próprio bem-estar. Isto seria viabilizado por meio da adoção de normas padronizadas que já levassem, em um ponto de partida, a atender aos melhores interesses dos indivíduos. Ou seja, o objetivo traçado pelos autores não é um aspecto onde as instituições possam impedir escolhas ou mesmo as antecipar, mas sim de que haja um direcionamento às pessoas promovendo o referido bem-estar. Salientamos que este objetivo é, inclusive, buscado pela ordem constitucional brasileira por intermédio dos arts. 1º, III e 3º, IV, ambos da CRFB/88.

Por fim, para que possamos compreender as razões que levaram à defesa deste modelo (paternalismo libertário), faz-se imprescindível apontar alguns pontos que, segundo Sunstein e Thaler, o justificam: a) sugestividade – em um contexto de incertezas, as pessoas simplesmente poderiam fazer o que a maioria faz ou, alternativamente, o que as mais bem informadas fazem; b) inércia – quando se altera uma regra padrão e exige-se a adoção de alguma conduta positiva, muitas pessoas deixam de questionar, seja por lapsos de memória ou até mesmo procrastinação; c) efeito dotação – traduz a noção de que as pessoas buscam valorizar primordialmente o que a elas, ao longo do tempo, já foi atribuído, inviabilizando uma adequada capacidade de avaliação; e d) preferências mal formadas – em vários cenários, as pessoas facilmente se “contaminam” pelo padrão ou inexistem, em suas concepções pessoais, preferências bem formadas (SUNSTEIN, 2015).

Feitas tais considerações a respeito da proposta de tal paternalismo, faremos algumas referências em relação ao novo modelo de Direito Civil, qual seja, aquele pautado pelos valores constitucionais estabelecidos e pelo aspecto da sociabilidade, fatores estes que, por consequência, exigem uma nova leitura das obrigações avençadas entre particulares.

Com o brilhantismo que lhe é peculiar, Anderson Schreiber (2016) conceitua o modelo de direito civil constitucional como sendo aquele em que se faz presente uma corrente metodológica que sustenta uma incessável interpretação do direito civil à luz da Constituição. O autor ainda reforça que não basta uma mera leitura das normas civis já existentes em relação às normas constitucionais, mas é necessário um verdadeiro esforço no sentido de reconhecer que tais normas devem ser diretamente aplicadas às próprias relações estabelecidas entre os particulares. Tudo isso, segundo ele, decorre da necessidade de um novo modelamento dos institutos do direito civil diante de valores fundamentais do ordenamento jurídico, os quais são consubstanciados na Constituição Federal, de modo a não mais permitir uma segregação entre tais ramos jurídicos.

A partir desta peculiar relação entre os valores fundamentais e o Direito Civil, podemos afirmar, conforme sustenta Gustavo Tepedino (2018), que se faz imprescindível “superar o descompasso entre as categorias jurídicas ultrapassadas e a realidade emergente”, o que ocorrerá, na linha defendida pelo autor, mediante a percepção de que estamos diante de uma “concepção aberta e unitária do sistema jurídico”. Essas noções são de extrema importância para o estudo aqui elaborado, uma vez que, ainda com amparo no renomado autor, temos que a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada nas esferas pública e privada, o que nos leva a ter em mente a induvidosa relação entre controle da atividade econômica conforme os valores constitucionais. Ou seja, trata-se, na linha do que sustentamos, da necessidade de uma análise conjunta entre Direito Constitucional e Civil, o que repercute significativamente na esfera da liberdade/autonomia particular.

Conceitualmente, podemos dizer que a autonomia privada pode ser vista como um “poder de autorregulamentação e de autogestão conferido aos particulares” que constitui em um dos princípios basilares civilísticos. Todavia, esta noção deve ser conjugada com o fato de que, em alguns momentos – como o da vulnerabilidade –, é indispensável proteger também outros interesses jurídicos, razão pela qual foram elaborados os princípios responsáveis por mitigar a obrigatoriedade das avenças firmadas entre particulares, a exemplo dos mecanismos de controle da justiça contratual, como a boa-fé objetiva e os deveres anexos (TEPEDINO, 2018). Destaque-se: estes princípios estão diretamente ligados com o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil e são responsáveis por produzir efeitos na ideia de liberalismo até então compreendido como um dogma absoluto na esfera privada.

Ainda neste aspecto, com bastante propriedade, afirma-se que a tarefa de uma nova leitura do direito civil implica, necessariamente, na despatrimonialização dos seus institutos tradicionais, conclusão esta que é alcançada pelo fato de que a Constituição não objetivou eliminar a garantia da livre iniciativa e da propriedade privada, mas a condicionou à realização de valores sociais. A pretensão de exercício dos direitos se torna, assim, direcionada a fins não mais exclusivamente individuais, de modo que, sob certo ângulo, “o ter deixa, assim, de ser um valor em si mesmo para se tornar mero instrumento de realização do ser” (SCHREIBER, 2016).

Neste cenário de um Direito Civil-Constitucional, a noção de solidariedade proveniente da Constituição (art. 3º, inciso I), constitui elemento fundamental para com o entendimento da relativização da autonomia privada, isso porque, nas palavras de Bruno Stigert (2015), a concepção de solidariedade deve ser tida como “via alternativa aos projetos liberais e sociais de Estado”, de modo a “atenuar o liberalismo radical e consertar a igualdade perfeccionista”. Este entendimento, no contexto do paternalismo libertário (aqui defendido), traduz em uma das principais pretensões deste estudo, qual seja, defender a concretização da força normativa constitucional como escopo de proteção à pessoa humana no âmbito das relações particulares.

Como resultado de tais premissas, não estamos aqui a sustentar a supressão da autonomia privada, mas a reforçar a ideia de que a Constituição passa a trazer mecanismos de controle de legitimidade desta autonomia. Não por outra razão, defende-se, com bastante acerto, que “o solidarismo constitucional adicionou à autonomia privada a companhia de outros três princípios: a boa-fé objetiva, a função social do contrato e justiça (ou equilíbrio) contratual”, ou seja, trata-se na verdade de uma valorização da autonomia mediante um equilíbrio de uma fria realidade de desigualdade, já que, conforme sabemos, em certos casos alguns terão preponderância de poder sobre outros (ROSENVALD, 2015).

A ideia de sociabilidade, para fins de abordagem deste estudo, é referenciada em diversas oportunidades na Constituição em matéria econômica. Inicialmente, além do já mencionado art. 3º, inciso I, podemos extraí-la, ainda que implicitamente, do conteúdo do art. 170, que dispõe acerca da ordem econômica, uma vez que não se pode pensar na valorização do trabalho, na livre iniciativa e nos ditames da justiça social sem que haja o aspecto da referida sociabilidade.

Com amparo em toda a construção histórico-dogmática aqui formulada, podemos ter em mente que eventuais limitações constitucionais à liberdade contratual e de manifestação da vontade no âmbito particular, deverá operacionalizar-se a partir da preconização de que o crescimento deverá ser não só meramente econômico, mas também social. Por isso, é imprescindível perceber que os interesses legítimos de cada parte devem ser protegidos à luz de um equilíbrio contratual, a fim de que não haja preponderância do interesse de um às custas do outro, fato este que se fará presente seja nos casos de contratação por adesão ou mesmo em contratos paritários, buscando-se o equilíbrio material entre as obrigações (ROSENVALD, 2015).

No cenário normativo brasileiro, diversas são as disposições que visam tutelar a proporcionalidade e a equidade nas relações particulares, as quais, por traduzirem direções basilares a serem seguidas pelos contratantes, podem ser consideradas como manifestação do paternalismo libertário. Assim, em um rol exemplificativo, podemos apontar os seguintes artigos do Código Civil: 421 (que delimita a liberdade contratual aos ditames da função social), 422 (que estabelece a necessidade de resguardar o princípio da boa-fé no âmbito contratual) e

478 (responsável por permitir a resolução do contrato em alguns casos de onerosidade excessiva). Além de tais disposições, faz-se indispensável mencionar alguns outros artigos constantes no CDC: 6º, V (que permite a modificação de cláusulas em caso de onerosidade excessiva ou estipulações desproporcionais) e 39, I (que proíbe a chamada “venda casada” de produtos), sem prejuízo de inúmeras outras normas.

Como nota final, por intermédio de toda a construção aqui elaborada, podemos dizer que a adoção do paternalismo libertário em nossa ordem jurídica – especificamente no âmbito contratual – é possível de ser verificada acaso a leitura do Direito Civil se dê mediante a concretização das normas constitucionais que objetiva, não suprimir a autonomia privada, mas sim conceder um aspecto de legitimação, reforçando-se, assim, a tutela aos direitos e garantias fundamentais e, em especial, a proteção a ser necessariamente concedida à pessoa humana.

 

Notas e Referências 

  1. ÁLVAREZ, Tomás Prieto. La intervención del Estado en la libertad individual: liberalismo, paternalismo, bien común. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 4, n. 1, jan.- jun./2015. Disponível em: <http://civilistica.com/la-intervencion-del-estado-en-la-liberdad- individual/>. Acesso em 08 de setembro de
  2. DIAS, Felipe da Veiga; GERVASONI, Tássia Aparecida. Autonomia privada x paternalismo estatal: uma demonstração de (in)compatibilidade no constitucionalismo contemporâneo. Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro. n. 7. 2013. Disponível em <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/1582/>. Acesso em 29 de setembro de
  3. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: contratos – teoria geral e contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas,
  4. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. In KONDER, Carlos Nelson; SCHREIBER, Anderson (coordenação). Direito Civil Constitucional. 1ª São Paulo: Atlas, 2016.
  5. STIGERT, Bruno. O constitucionalismo solidário brasileiro e o sentimento constitucional nos 25 anos da Constituição. In FERNANDES, Bernardo Gonçalves; STIGERT, Bruno (Organizadores). 25 anos da Constituição de 1988: entre o passado e o Belo Horizonte: Arraes Editores, 2015.
  6. SUNSTEIN, Cass S.; THALER, Richard O paternalismo libertário não é uma contradição em termos. Trad. Fernanda Cohen. Civilistica.com. Revista eletrônica de direito civil. Rio de Janeiro: a. 4, n. 2, 2015. Disponível em: <http://civilistica.com/o-paternalismo- libertario-nao-e-uma-contradicao/>. Acesso em 29 de setembro de 2018.
  7. TEPEDINO, Gustavo. O papel da vontade na interpretação dos contratos. In Revista Interdisciplinar de Direito da Faculdade de Direito de Valença. Fundação Educacional André Arcoverde. Faculdade de Direito – v. 16, n. 1, Jan./Jun. Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2018.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura