Qualquer pessoa pode mal dormir ou desconfortar-se com a noite (os incômodos emocionais, parece, preferem a noite). Não dormir pode ser apenas não dormir, mas o desconfortar-se com a noite já pede mais reflexão. Como se manifesta o desconforto? Por exemplo, no transcorrer das horas noturnas alguém se dirige seguidamente à porta da casa para confirmar o que já sabe: está fechada. Já está mais que visto que está trancada, mas a pessoa levanta-se, vai a ela, põe-lhe a mão na maçaneta, força-a, confere o já sabido e torna, angustiada, a deitar-se, temendo que volte a compulsão que a atormenta: conferir a porta. Sabe que não está sendo racional; não sabe, contudo, descrever exatamente o seu conflito (transtorno), que é um sintoma.
Que lhe diria um\a psicanalista? Um\a psicanalista lhe ouviria, fazendo breves intervenções. Mas, não estamos em terapia, então, pensemos: que é uma porta? Sim, pela porta, na calada da noite, pode entrar alguém que lhe faça mal. Mas, segurança conferida, o que mais é uma porta, além de um lugar de entrada? Pois é, uma porta é, também, um lugar de saída. Ao se mover a maçaneta está-se avaliando se a porta está trancada; sabe-se, todavia, que a mesma maçaneta pode abrir a porta. Será que o desconforto que brota no silêncio da noite não está dizendo que alguém está desconfortável (talvez pela companhia) na própria cama? Será que o tanto ir à porta não significa querer sair, deixar a casa, ou quem está nela? A porta não seria o caminho para outra vida, supostamente mais feliz?
Esta angústia da noite – esse ir à porta – Freud diria que é um recado de uma parte importante de nosso aparelho psíquico, o Inconsciente. A nossa psique tem duas “partes”: o Consciente, que é a mais operacional, relaciona-se com o ambiente imediato, estabelece controles. O que destaca o Consciente é o fato de o indivíduo ter noção clara da sua existência, ainda que não o compreenda de todo; o Inconsciente, por sua vez, é deduzido; ele existe, é incidente no comportamento, porém é inacessível à consciência; está operante, mas sua manifestação não é de fácil elucidação. Suas mensagens, embutidas nos sonhos, nos atos falhos e nos comportamentos aparentemente inexplicáveis, devem ser decifradas. Daí a psicanálise, as leituras que, com a ajuda de um\a psicanalista, fazemos de nós mesmo\as.
Outros exemplos: imagine uma pessoa com mania de limpeza. Bem pensado, essa pessoa está a cada momento procurando sujeira, tocando nela, ainda que com a desculpa de removê-la. O que significa, para essa pessoa, tocar em sujeira? Melhor, o que lhe significa a sujeira em si? Seria algo que ela gostaria de tocar, mas que, por achar “sujo”, tem que limpar? Talvez, não conseguindo limpar o “sujo” (um pretexto impeditivo), limpe tudo o mais e sempre e mais. Suponha, agora, alguém que se considere perseguido\a, detestado por todo\as. Não, não é tão humilde assim. Antes, sente-se importantíssimo\a, a ponto de crer que o mundo lhe dê tanta atenção que cuida de se voltar contra ele\a. Ele\a é, na sua própria apreciação, digno\a de inveja geral. É, “o buraco é mais embaixo”, mas não é tão complicado.
Uma última ilustração: pense naquele\a indivíduo\a que paga as dívidas da família, que deixa todo\as pendurado\as na sua conta bancária e ostenta, indignado\a essa exploração. Será que cobrir as obrigações do\as outro\as não seria, afinal, controlá-lo\as e submetê-lo\as? Estaríamos lidando com um\a explorado\a, ou com um\a autoritário\a enrustido\a? Desconfio, na verdade, até do\a bonzinho ou boazinha (bem diferente do\a justo\a). Pessoas excessivamente boas, no fundo, querem (é uma troca) ser amadas por sua esforçada bondade. Convido você a um olhar psicanalítico do derredor, a perceber, nas atitudes, os Inconscientes se manifestando. E não esquecer, no silêncio da noite, de se voltar para si próprio\a. Nos passeios por si mesmo\a, espero que mais se entenda e mais se goste.
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