Lei Estadual pode disciplinar a remição pela leitura na LEP?

11/02/2015

Por Juliana Hermes Luz - 11/02/2015

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 define, em seu artigo 22, a competência privativa da União para legislar sobre determinadas matérias, a qual define preceitos declaratórios e autorizativos da competência geral na legislação federal, a fim de distinguir a relevância delas, quanto aos demais entes federativos.

Normas gerais de competência da União são aquelas que versam sobre assuntos que atinjam a totalidade do Estado nacional, e sobre matérias atinentes à norma específica, não sendo exaustiva, possibilitando uma zona de atuação das normas específicas de acordo com as necessidades regionais.[1]

De outro lado, o artigo 24 da Constituição prevê a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar, dentre outras matérias, sobre direito penitenciário, determinando que elas sejam regulamentadas de forma geral pela União e de forma específica pelos outros entes-federados autorizados, adotando a denominada “competência concorrente não cumulativa ou vertical”, ou “competência suplementar dos Estados-membros e Distrito Federal” (art. 24, §2º, CRFB/88), não se abrindo ao Estado a possibilidade de legislar originariamente sobre o assunto.

Por direito penitenciário entende-se o “conjunto de normas jurídicas relativas ao tratamento do preso e ao modo de execução da pena privativa de liberdade, abrangendo, por conseguinte o regulamento penitenciário.”[2], enquanto o processo executivo penal é aquele que pretende à consolidação do “consignado na sentença penal condenatória (pena privativa de liberdade, pena restritiva de direitos e pena de multa) ou na sentença penal que aplicou medida de segurança como a última fase do processo penal.”[3].

Ante a inexistência de hierarquia entre leis federais e as leis editadas pelos outros entes federativos, possível conflito representado pela usurpação de competência, resolve-se pela inconstitucionalidade da legislação do ente invasor.

Todavia, como uma exceção à privação legiferante da União, dispõe o parágrafo único do artigo 22 que “Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.

Vale dizer que caso seja feita a delegação, a lei complementar não poderá atribuir integralmente a regulação de matéria de competência privativa da União, devendo ser regrados apenas os aspectos pontuais.

Nesse contexto, o Estado do Paraná editou a Lei nº. 17.329 de 8 de outubro de 2012, que institui o projeto “Remição pela Leitura” no âmbito dos estabelecimentos penais do estado.

Mencionada lei tem como objetivo “oportunizar aos presos custodiados alfabetizados o direito ao conhecimento, à educação, à cultura e ao desenvolvimento da capacidade crítica, por meio da leitura e da produção de relatórios de leituras e resenhas (art. 2), e remir parte da pena pela leitura mensal de uma obra literária, clássica, científica ou filosófica, livros didáticos, previamente selecionadas pela Comissão de Remição pela Leitura e pela elaboração de relatório de leitura ou resenha, nos termos da Lei (art. 3).

Pelo instituto da remição, segundo os norteamentos da Lei nº. 7.210, de 11 de julho de 1984 (LEP), instituidora da Lei de Execução Penal, o sentenciado pode reduzir o tempo de cumprimento de pena pela dedicação ao trabalho ou ao estudo, observadas as regras dos arts. 126 a 128 da mencionada lei.

Segundo a LEP, a contagem de tempo restou estabelecida na razão de um dia de pena a cada doze horas de frequência escolar – atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional, devendo-se observar a divisão de tais horas em três dias, no mínimo (artigo 126, §1º, I, da LEP).

Do mesmo modo, restou assentado que as mencionadas atividades de estudo devem ser presenciais, ou por metodologia de ensino a distância, devendo ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados (artigo 126, §2º, da LEP).

Ainda, no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior, devidamente certificada pelo órgão competente, durante o cumprimento da pena, ao número total de dias a serem remidos em função das horas de estudo, deve-se acrescer a proporção de um terço.

Também ao condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto, bem como ao que usufrui livramento condicional, garantiu-se o direito de remição de parte da pena pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, observada a contagem de tempo de um dia de pena para cada doze horas de estudo.

Cumpre dizer, por fim, que o direito à remição de pena, também se aplica às hipóteses de prisão cautelar, e que o tempo remido será computado como pena cumprida, para todos os efeitos.

Observa-se que, muito embora a LEP possibilite a remição da pena pelo estudo, ela define em seu art.126, §1º, inciso I, que essa modalidade se dará por “frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional”, silenciando quanto às outras formas de estudo muito menos quanto a redução de pena pela leitura.

Dessa forma, da simples leitura do artigo supramencionado, denota-se que a remição pela leitura não foi tratada na lei federal (LEP), a qual somente previu a modalidade de redução da pena por frequência escolar. Assim, o Estado do Paraná, ao editar a lei que instituiu o referido projeto, o fez de forma inédita, sem previsão federal, usurpando evidentemente a competência da União.

Considerando o inegável caráter processual penal da matéria atinente à execução penal, que se diferencia, em muito, daquela de direito penitenciário, e ainda, levando em conta que, muito embora a LEP tenha sido jurisdicionalizada, tendo afastado o seu caráter meramente administrativo, e é aplicada em continuidade à sentença condenatória, inconteste o fato de não ser a execução penal, matéria autônoma de direito penitenciário, o que torna mencionada lei paranaense inconstitucional.

Destarte, inegável a sua inconstitucionalidade por vício material, e também inconstitucionalidade formal orgânica ante a ilegitimidade do Estado do Paraná em legislar sobre matéria de competência privativa da União (art. 22 CRFB/1988).

Do mesmo modo, ainda que se sustentasse tratar de matéria de direito penitenciário, impossível considerar que a União definiu uma forma geral de remição pela leitura ao determinar a remição pela frequência em instituição de ensino, havendo aí, também, a necessidade primordial de criação de uma lei federal que verse sobre o tema.

Ignorando as regras constitucionais de competência, a Recomendação nº. 44 do Conselho Nacional de Justiça assim o faz aos Tribunais de Justiça dispondo “sobre atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura”.

Mencionada recomendação considera a edição da Nota Técnica Conjunta de nº. 125/2012, expedida pelos Ministérios da Justiça e da Educação, em 22 de agosto de 2012 e a edição da Portaria Conjunta de n. 276, de 20 de junho de 2012, do Conselho da Justiça Federal (CJF) e da Diretoria-Geral do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça, que disciplinou o projeto de remição pela leitura para os presos de regime fechado custodiados em penitenciárias federais de segurança máxima.

O que a nota técnica conjunta e a portaria conjunta têm em comum (?): nenhuma delas é uma lei expedida pela União.

O art. 1º da mencionada recomendação, assim o faz aos tribunais para que na hipótese de o apenado não estar, circunstancialmente, vinculado a atividades regulares de ensino no interior do estabelecimento penal e realizar estudos por conta própria, com a definição de critérios, e desde que seja ele aprovado ou no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), poderá ele ter a pena remida pela leitura, em evidente contrariedade à LEP que exige a estrita vinculação à entidade de ensino.

Recomendações como essas abrem espaços para a criação de diversas normas com diferentes níveis hierárquicos, como exemplo de portarias editadas pelos magistrados da execução penal possibilitando a eles próprios a aplicação da remição pela leitura[4] (!), em evidente afronta à tripartição dos poderes e à própria Constituição.

No entanto, inobstante a ofensa à legalidade, é de se considerar que a concessão do benefício da remição pela leitura, viola também o princípio da isonomia, (artigo 5º, “caput”, da Constituição da República CRFB/1988), como vem defende o Ministério Público do Estado de São Paulo[5]:

“É indiscutível que ao viabilizar o resgate de parte a pena àquele preso que, num determinado espaço de tempo, procede à leitura de uma obra literária, o juiz da execução penal discrimina este encarcerado alfabetizado daquele que não sabe ler, estabelecendo evidente distinção de natureza social, inadmissível não só pela Lei de execução penal (artigo 3º, parágrafo único, da Lei nº 7.210/84) como principalmente pelo Texto Constitucional (artigo 5º, “caput”, da CR)”.

Dessa forma, independente do êxito ou mérito do mencionado projeto, é evidente a necessidade de uma lei federal criando a possibilidade da remição de pena pela leitura, como uma norma geral uniforme em todo o território nacional, tendo em vista a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº. 17.329, de 8 de outubro de 2012, ante a incompetência do Estado para legislar sobre direito processual penal.


[1] AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.  370

[2] MIOTTO, Armida Betfamini. Curso de ciência penitenciária. São Paulo: Saraiva, 1975. V1. p.59

[3] LIMA, Roberto Gomes; PERALLES, Ubiracyr. Teoria e prática da execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.10

[4] Portaria nº 8/2013 editada pelo Corregedor do Sistema Prisional de Joinville, Dr. João Marcos Buch.

[5]http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/notas_tecnicas/NT-%20REMICAO%20DE%20PENA%20PELA%20LEITURA.pdf

__________________________________________________________________________________________________________________

Imagem ilustrativa do post: Books HD

Foto de: Abhi Sharma

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/abee5/8314929977/

Sem Alterações

Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

__________________________________________________________________________________________________________________

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura