O Caso dos Saleiros dos Restaurantes.
A última semana foi marcada por polêmica interessante sobre o Caso dos Saleiros dos Restaurantes. Talvez pareça prosaica a discussão, mas a aprovação do Projeto de Lei nº 174/14, da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, remete para questões relevantes sobre: afinal de contas para que serve a lei? Decidi debater o tema, pois não se trata de assunto local apenas, mas relacionado com a questão abrangente dos limites do exercício do próprio poder legislativo. São corriqueiras as críticas em relação ao papel menor das Câmaras de Vereadores, que legislam sobre temas de pouca relevância para a sociedade, do número excessivo de propostas para dar nomes de ruas, conceder honrarias, etc. Entendo que o Poder Legislativo Municipal pode sim ter papel crucial na vida das comunidades! No entanto, é preciso alterar em diversos aspectos – inclusive de âmbito constitucional – a competências das Câmaras de Vereadores, instaurando-se o sentido de protagonistas na vida dos cidadãos. Bem, mas isso é outra história.
Programa Meu Saleiro, Minha Vida, ops!
O citado projeto de lei, não tenho qualquer dúvida, é meritório, pois foi aprovado para instituir o Programa Menos Sal, Mais Saúde e a Semana Menos Sal, Mais Saúde e dá outras providências, inserindo-se na competência municipal para a criação e efetivação de políticas públicas voltadas para a saúde e outros programas sociais. O artigo 1º explicitou a finalidade do programa: “conscientizar os servidores públicos municipais, os alunos da rede municipal de ensino e a população em geral acerca dos efeitos nocivos do consumo e do uso excessivo de sal na alimentação.”
A legislação municipal segue a linha da Lei nº 11.346/2006 que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujo artigo 1º indica a construção da política pública com a participação da sociedade civil organizada para formular e implementar políticas, planos, programas e ações com vistas a assegurar o direito à alimentação adequada.
O marco regulatório da política pública de segurança alimentar é muito mais complexo, mas a materialização no âmbito dos municípios não poderá distanciar-se da integridade e coerência necessárias.
O texto do Projeto de Lei Municipal (artigos 2º e 3º) instituiu o evento Semana Menos Sal, Mais Saúde, com realização anual, bem como ações de conscientização e prevenção. O problema foi a apresentação de emenda ao projeto de lei ao inserir o seguinte artigo: “Os Bares, restaurantes e similares, incluindo cantinas localizadas em hospitais, centros de saúde e escolas, não colocarão sal sobre as mesas. O produto será disponibilizado a partir do pedido dos clientes.”
Regulação sim, mas com Integridade e Coerência.
A regulação acima é um dos riscos do exercício de competência legislativa em matéria de políticas públicas. Não questiono se é bom ou ruim. Durante a semana li e ouvi argumentos como: Ah!, bem, é uma coisa boa! É para o bem de todos! Realmente o sal faz mal para a saúde!
Creio que a partir deste caso, devemos de fato refletir sobre a finalidade da lei. Uma coisa é construir políticas públicas, em conjunto com a sociedade, considerando os sentidos normativos partilhados, sobre de que modo devemos viver. Essa é uma das questões relevantes, por exemplo, discutida por Ronald Dworkin no livro Justiça para Ouriços. A lei, desde a fase do pensamento mítico, identifica-se com a relevância de substituir ações fundadas no subjetivismo, para buscar indicações mais objetivas sobre a vida em sociedade[1]. O diálogo com a historicidade possibilita compreender as relações complexas entre lei e sociedade ao longo dos tempos, seja sob a perspectiva filosófica, social, política ou jurídica. Platão relacionou a democracia com a existência de lei universais[2], em Cícero o cumprimento da lei seria responsável por criar condições para a liberdade e com o Estado Moderno a concepção de soberania também se relaciona com a capacidade de legislar. O Estado Democrático de Direito inseriu elementos cruciais de legitimidade, tanto de cunho formal como substancial.
Agora, guarda coerência com tudo isso proibir, sob o manto de política pública, a colocação de sal sobre as mesas?
Outro interessante livro é A Ideia de Lei, no qual o autor abre a obra questionando sobre a necessidade da lei: “O que estamos realmente dizendo é que a natureza do homem é tal que ele só pode atingir uma condição verdadeiramente humana dada a existência ou inexistência da lei.”[3] Trata-se de afirmação polêmica e discutível, mas de qualquer modo há limites para a regulação da vida em sociedade. Nem estou aqui discutindo os interesses e campos de poder criados pelos textos normativos.
Determinar se os estabelecimentos comerciais devem ou não colocar saleiros nas mesas distancia-se muito dos debates sérios e a respeito do papel da lei em sociedades democráticas.
Vejam o perigo se a moda pega. Poderíamos enumerar diversas práticas na linha da Emenda aludida – saliente-se mais uma vez que tal dispositivo não estava no projeto original! Não é apenas o sal que faz mal para a saúde humana, bem então, sugere-se o seguinte (calma, é só ironia!): 1) a lei da cerveja e outras bebidas alcóolicas, obrigando os supermercados a guardar em cofre o produto pernicioso, cuja chave, caso os clientes insistam em consumir, ficaria com o gerente; 2) a lei do churrasco, costela gorda exposta no açougue, nem pensar! A gordura faz mal. Logo, a conclusão é lógica, deveria ficar guardada em outro local, longe dos olhares ávidos pelo churrasco do final de semana. Se o chato do cliente pedir, bem, mostra para ele a costela gorda; 3) e finalmente a Lei da Páscoa. Ora, também é senso comum os malefícios do consumo excessivo de açúcar. Ai vai a sugestão: urge legislar para proibir supermercado de na época da páscoa montar estandes cheios destas gostosuras. Não pode, faz mal. Os ovos de páscoa devem ficar depois dos enlatados, na última prateleira, e armazenados da forma mais discreta possível ou então guardados a sete chaves!
Exageros a parte, volta-se ao Projeto de Lei nº 174/14. Após pesquisar sobre a tramitação verifiquei que houve parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça (Parecer nº 378/14) em 10.11.2014, fundamentando-se no artigo 196 da Constituição Federal, disciplinando o direito à saúde e a competência do Município para legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, inciso I, CF), além da análise a partir da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre. Após, 04.03.2015, foi aprovado pela Comissão de Urbanização, Transporte e Habitação e em 28.11.2014 aprovado pela Comissão de Economia, Finanças, Orçamento e do Mercosul, cuja conclusão final refere: “Neste contexto, a Administração Pública Municipal tem papel fundamental na condução equilibrada e inclusive da educação alimentar e saúde na cidade. Deve-se adotar medidas voltadas para atender às demandas relacionadas à saúde pública, e o presente projeto vem imbuído de tal objetivo, já que proporciona ao munícipe o conhecimento acerca dos riscos e efeitos nocivos do consumo excessivo de sal na alimentação.”
A fatídica emenda ao projeto de lei foi apresentada em 10.02.2016!
Entendo que uma das relevantes virtudes do Estado Democrático de Direito, em parte na linha do pensamento de Ronald Dworkin, é a integridade. O Estado que a aceita possui melhores argumentos em favor da legitimidade[4], pois “a integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção.”[5]. Trata-se do dever de todo agente público construir argumentos e exercer suas ações de forma integrada ao conjunto do Direito, como aduz Lenio Luiz Streck[6]. A integridade também se aplica para o legislador, limitando a institucionalização jurídica ao criar ou alterar a legislação em vigor, de modo a preservar o conjunto de princípios, como refere Adalberto Narciso Hommerding[7]. Com efeito, há visível quebra de coerência entre um projeto de políticas públicas para, fundado na participação da comunidade, realizar ações de prevenção sobre o consumo excessivo de sal na alimentação – se é que de fato tal matéria deve ser objetivo de lei – e criar a proibição do “sal na mesa”.
Mais uma vez ressalto a possibilidade de a lei desempenhar efetivo papel na sociedade atual, mas não se pode vulgarizá-la, ou seja, adotar a postura excessiva da regulação dos comportamentos. Vingando o texto normativo em questão, imagino o dia a dia da fiscalização exercida pela Administração Pública: percorrer os poucos (!!) estabelecimentos comerciais para ver se o saleiro está em cima da mesa, como se as diversas áreas de abrangência do poder de polícia já não fossem suficientes para ocupar o quadro de agentes públicos da fiscalização. O caso remete para o sempre e atual problema das indicações que caracterizam e justificam a lei, o mero procedimento formal em respeito às competências constitucionais ou também referências materiais vinculadas com o texto constitucional democraticamente aprovado no processo constituinte? A questão da necessidade não se responde a partir de práticas solipsisitas, mas da missão de cada agente público – inclusive os legisladores – de materializar o ethos constitucional no qual a autoridade deve respeitar a integridade e coerência.
Enquanto isso, cuidado, na próxima páscoa o coelhinho será obrigado a esconder muito bem ovos de chocolate e para ganhá-los, bem, só se o cliente pedir!
Notas e Referências:
[1] CABO MARTÍN, Carlos. Sobre el Concepto de Ley. Madrid: Trotta, 2000, p. 15.
[2] As Leis, 2ªed. Bauru-SP: Edipro, 2010, 715d, p. 187.
[3] A Ideia de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 03.
[4] O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 232.
[5] O Império do Direito, p. 264.
[6] Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 336.
[7] Teoria de la Legislación y Derecho como Integridad. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 118.
CABO MARTÍN, Carlos. Sobre el Concepto de Ley. Madrid: Trotta, 2000.
DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HOMMERDING, Adalberto Narciso. Teoria de la Legislación y Derecho como Integridad. Curitiba: Juruá Editora, 2012.
LLOYD, Dennis. A Ideia de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO, As Leis, 2ªed. Bauru-SP: Edipro, 2010.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ªed. São Paulo: RT, 2013.
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