Lei de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: trajetória histórica, impacto legislativo e interseções com os direitos de crianças e adolescentes

03/03/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

A Lei de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (LETP) – Lei nº. 13.344, de 6 de outubro de 2016 – surgiu com o objetivo, dentre outros, de equiparar a legislação pátria ao Protocolo de Palermo (promulgado no Brasil em março de 2004, com a edição do Decreto nº. 5017), em relação aos mecanismos de intervenção sobre as dinâmicas do tráfico de pessoas. Representou, assim, importante avanço na legislação brasileira, pois supriu lacunas e deficiências existentes a respeito do tema, sobretudo no que concerne à inclusão de outras formas de tráfico humano que não fosse à exploração sexual, bem como, mecanismos de prevenção e de atenção às vítimas do crime.

Neste artigo, temos a intenção de tratar dos aspectos históricos, normativos e dos desafios de cumprimento da LETP, buscando, neste último aspecto, tecer análises sobre as interseções do enfrentamento ao tráfico de pessoas com os direitos de crianças e adolescentes.

 

Breves considerações sobre a história da lei e de seus principais avanços

A tramitação legislativa do que veio a se consolidar como LETP foi iniciado por meio do Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) nº. 479/2012, o qual teve sua origem na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) de Tráfico de Pessoas realizada pela Casa Legislativa em questão, surgida em 2011 e com término em dezembro de 2012.

Depois, a partir da legislação sugestiva que foi resultado da referida CPI, o PLS foi encaminhado à Câmara dos Deputados com a denominação de Projeto de Lei (PL) nº. 7370/2014. Na Câmara dos Deputados, Casa Legislativa Revisora, sofreu algumas modificações e retornou novamente à Casa Legislativa Iniciadora (no caso, o Senado Federal) com a denominação de Substitutivo da Câmara dos Deputados (SCD) nº 2/2015. Essas revisões foram rejeitadas, aprovando-se, assim, o texto original de autoria do Senado Federal e que, após sanção presidencial, no dia 6 de outubro de 2016, transformou-se na Lei nº 13.344, cuja publicação no Diário Oficial da União se deu em 7 de outubro e seu período de vigência da lei (vacatio legis) foi de 45 dias.

A LETP foi então dividida em sete capítulos vislumbrando os aspectos considerados de maior importância para a aplicação da lei no caso concreto. No primeiro capítulo, dividido em dois artigos, traça aspectos referentes às diretrizes e aos princípios de direitos humanos e da atuação estatal que estruturam a normativa.

Já o segundo capítulo trata da prevenção ao tráfico de pessoas, calcada em medidas intersetoriais, fortalecimento da participação da sociedade civil e promoção de campanhas educativas; enquanto que o capítulo três da lei aborda as formas de repressão ao crime, por meio da cooperação, integração e, ainda, da formação de equipes interdisciplinares que se preocupam com o eixo temático em questão.

O quarto capítulo da LETP trata dos aspectos concernentes à proteção e atenção a vítima, elementos de fundamental importância para dar maior eficácia e aplicabilidade à lei brasileira dentro dos contextos nacional e internacional. O capítulo da lei traz à tona as disposições processuais da legislação pátria acerca do tema e importantes considerações sobre a mesma. Já o sexto capítulo aborda a respeito das campanhas que visam o enfrentamento ao crime, de maneira ainda a instituir o dia 30 de julho para comemorar seu dia nacional, e, por fim, no sétimo e último capítulo da lei são relacionadas as disposições finais da lei, definindo a revogação dos artigos 231 e 231-A do Código Penal e tratando do período de vacatio legis.

É inegável que a LETP trouxe significativos avanços, sendo os mais importantes:

  1. O estabelecimento de que a proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoa, neste último aspecto envolvendo seus familiares, devem ser efetivados por uma atuação integrada de um conjunto de serviços públicos calcados na assistência jurídica, social, de trabalho e emprego, de acolhimento e abrigo provisório, e saúde, além de atenção às necessidades específicas das pessoas, especialmente em relação às questões de gênero, orientação sexual, origem étnica, raça, nacionalidade, faixa etária, entre outros (Art. 6º, incisos I a VII, LETP).
  2. Ainda em relação às vítimas estrangeiras traficadas para o Brasil, a garantia de concessão de residência permanente independente de sua situação migratória e de colaboração em procedimento administrativo, policial ou judicial, incluindo também seus familiares (Art. 7º, LETP), ainda que tal disposição jurídica tenha mudado devido à edição da Lei nº. 13.445/2017 (Nova Lei da Migração) que revogou o Estatuto do Estrangeiro e passou a tratar desta garantia no artigo 30, inciso II, alínea “g”[1].
  3. No âmbito da política de prevenção, a obrigatoriedade da realização de campanhas socioeducativas para sensibilização da sociedade, o incentivo à participação e mobilização da sociedade, e, fundamentalmente, a implantação de medidas intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo, assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos (Art. 4º, incisos i a IV, LETP). A respeito do tema, as campanhas nacionais de enfrentamento ao tráfico de pessoas, segundo o artigo 15 da LETP, devem visar à conscientização da sociedade sobre todas as formas do crime, assim como, devem ser divulgadas em veículos de comunicação.
  4. Mudança do tipo penal revogando os artigos 231 e 231-A, e instituindo o novo artigo 149-A[2] ao Código Penal Brasileiro (CPB), cujo texto amplia o entendimento de repressão ao tráfico de pessoa para as modalidades de: remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo; trabalho em condições análogas à de escravo; qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; e, exploração sexual.
  5. Além disso, contou-se com aumento da pena para quatro a oito anos que, embora não seja o ideal, já é considerado de maior impacto punitivo, além de contar com garantia da quebra de sigilo e demais peculiaridades que favoreçam a investigação jurídico-policial. Salienta-se, contudo, que o crime de tráfico de pessoas, embora gere repulsa uma vez que afronta a dignidade do ser humano, não é considerado um crime hediondo por não estar previsto no rol taxativo da Lei nº 8.072, de 25 de 1990, nem faz parte da Constituição Federal no que diz respeito à equiparação, apesar de haver certa divergência doutrinária nesse sentido.

 

Impacto legislativo da LETP

De posse das explicações acima, importante se fazer uma análise do impacto legislativo da referida lei. O impacto legislativo de uma lei é realizado pela denominada legística ou legisprudência, que consiste no estudo de como produzir as leis a partir de métodos e sistemas com a finalidade de aperfeiçoar a qualidade das mesmas, estando esta agregada à avaliação do impacto legislativo.

Essa legística pode ser dividida em dois ramos: o material, também chamado de metódica da legislação; e, a formal, cujo objetivo central é propor a avaliação legislativa, sob o enfoque da eficiência da lei, que integra a legística material da LETP. Com relação à avaliação do impacto legislativo, esta busca apresenta ao legislador subsídios para que estes optem pelos melhores projetos para a sociedade, partindo de escolhas economicamente eficientes; dessa forma, pode ser equiparada a análise econômica da legislação, se analisada a teoria comportamental inspirada na Economia.

Para a realização dessa avaliação do impacto legislativo, dois passos são necessários: o primeiro trata da definição do problema e da indicação dos agentes relacionados à questão ou afetados por ela. E o segundo passo, trata da análise do objetivo, das opções para atingi-lo, do arcabouço jurídico, dos impactos sociais da legislação em debate, além da análise de custo-benefício.

De posse dessas informações, alguns questionamentos são também fundamentais na busca de respostas que vão ao encontro da melhor análise do impacto da lei no cenário brasileiro: o primeiro questionamento é saber qual o problema que a lei pretende solucionar e a resposta é bastante simples: trata-se da adequação da legislação pátria ao Protocolo de Palermo para melhoria do enfrentamento do tráfico de pessoas – documento jurídico internacional que, reitera-se, possui vigência no Brasil desde março de 2004, portanto, com mais de 12 anos de atraso!

O segundo questionamento da avaliação do impacto legislativo é no que diz respeito aos objetivos da lei, relativos à contemplação dos três eixos descritos tanto no Protocolo de Palermo, quanto na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, de 2006, que são a prevenção, a repressão e a atenção às vítimas.

Na sequência da avaliação do impacto legislativo estão opções e alternativas atualmente existentes e disponíveis que visem a atingir os objetivos colimados pela proposição. Estes podem ser divididos em três: a prevenção no artigo 4º, a repressão no artigo 5º e a atenção às vítimas presente no artigo 6º, todos da LETP.

Posteriormente, a avaliação do impacto legislativo se dá por meio do arcabouço jurídico através dos limites legais que envolvem o tema: no plano infralegal, têm-se a Política Nacional, de 2006, e os três Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP’s): o I PNET, promulgado por meio do Decreto nº 6.347, de 08/01/2008 e que teve vigência de dois anos (de 2008 a 2010), o II PNETP, promulgado pela Portaria Interministerial nº 634, de 25/02/2013 e que teve vigência por quatro anos (de 2013 a 2016) e, finalmente, o III PNETP que foi promulgado pelo Decreto nº 9.440, de 03/07/2018 e possui vigência também de quatro anos, iniciada em 2018, portanto, já influenciado pela LETP e com término previsto para 2022. Importante destacar também a existência do Decreto nº 9.796, de 20 de maio de 2019, responsável por instituir o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III PNETP e também o Decreto nº 9.833, de 12 de junho de 2019, a respeito do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP) que foi instituído para substituir o Decreto anterior (Decreto nº 7.901, de 04 de fevereiro de 2013). Além disso, tem-se ainda a recepção do CPB que contava anteriormente apenas com as disposições acerca do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e, finalmente, a edição da LETP que preencheu as lacunas existentes até 2016 na legislação nacional.

Dando continuidade, os impactos econômicos a respeito da proposição se dão a partir da necessidade de alocação de recursos para a efetiva implementação das ações propostas pelo marco legal, ao se realizarem as discussões para a proposição da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA). Isto, sem dúvida, é um grande desafio (ou dificuldade) para assegurar a vitalidade da LETP, haja vista o contingenciamento de recursos financeiros pelo governo federal e governos estaduais em decorrência da crise político-econômica, amplamente prejudicial às políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas e os danos de investimento estatal em médio-longo prazo com a promulgação da Emenda Constitucional do Teto dos Gatos Públicos[3].

A respeito do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), este foi originalmente instituído pelo Decreto nº 7.901, de 04 de fevereiro de 2013, e atualmente encontra-se regido pelo Decreto nº 9.833, de 12 de junho de 2019. Assim, o CONATRAP é um órgão colegiado, composto por membros do governo e da sociedade civil. Este colegiado encontra-se vinculado administrativamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e tem como missão articular a atuação dos órgãos e entidades públicas e privadas no enfrentamento ao tráfico de pessoas, com o intuito de qualificar o processo de tomada de decisões da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto nº 5.948/2006) por meio de diálogos construtivos e de forma a oferecer apoio ao fortalecimento da Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Dessa maneira, integram o CONATRAP os seguintes membros: o Secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (que o presidirá), o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Cidadania, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e, ainda, três representantes de organizações da sociedade civil ou de conselhos de políticas públicas, que exerçam atividades relevantes e relacionadas ao enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Em relação aos impactos sociais da aprovação da legislação há várias considerações importantes: propiciar o resgate da dignidade das pessoas que foram vítimas do tráfico, assim como, por meio da prevenção, milhares de brasileiras e brasileiros não se submeterão às condições de vida degradantes, nem terão seus direitos ameaçados ou violados, como a liberdade, a intimidade e até mesmo a vida. Além disso, a política de atenção às vítimas, segundo a LETP, obriga a prestação de assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde, além de observar suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica, raça, faixa etária, dentre outras. Também é fundamental o que se preceitua envolvendo o cuidado contra a revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais, bem como, em relação à sensibilização da sociedade e multiplicação dos agentes sociais em suas comunidades, bairros, escolas, igrejas, etc.

Por fim, e não menos importante no que diz respeito à avaliação do impacto legislativo, está a comparação das alternativas debatidas, ou seja, uma análise do custo versus o benefício aventado. Com relação a este quesito, pode-se dizer que, à primeira vista, a relação custo-benefício para a administração pública seria desequilibrada por gerar uma despesa alta em relação ao número de beneficiários – 475 casos, conforme relatório do Ministério da Justiça de 2012 (Brasil, 2012); e, noutro conjunto de dados, de casos de tráfico de pessoas atendidos pela Rede de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) e pelos Postos Avançados de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM), via relatórios semestrais, apontem o seguinte quantitativo: 1º semestre/2014: 340 casos; 2º semestre/2014: 358 casos; 1º semestre/2015: 495 casos; 2º semestre/2015: 459 casos; e, 1º semestre/2016: 352 casos[4]. Salienta-se, no entanto, que estes números observados foram anteriores à LETP.

Números mais recentes, obtidos por meio do Relatório Nacional de 2017 (cujos dados são de 2014 a 2016), revelam que, de acordo com o Ligue 180, quando se trata da modalidade de exploração sexual, houve um total de 488 casos, enquanto que a exploração para o trabalho escravo trouxe um total de 257 casos. O mesmo Relatório destaca que, segundo o Disque 100, foram alcançados 18.514 trabalhadores, dos quais, 3.705 encontravam-se em condição análoga à de escravo e 224 eram estrangeiros. O Relatório Nacional também narra que a respeito dos inquéritos e indiciamentos por modalidades de exploração, de acordo com Polícia Federal (e somando-se os dados de 2007 a 2016) trazem um total de 137 inquéritos e 285 indiciamentos (quando se trata de tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual), 754 inquéritos e 1.383 indiciamentos (quando se trata de redução à condição análoga à de escravo), 47 inquéritos e 77 indiciamentos (quando se trata de tráfico internacional de crianças e adolescentes) e, ainda, 21 inquéritos e nenhum indiciamento (quando trata da comercialização de tecidos, órgãos e partes do corpo humano) (BRASIL, 2017).

Já segundo o Relatório Trafficking in Persons, do Departamento de Estado dos EUA, de junho de 2019, e trazendo dados de 2018, enquanto Relatório Internacional mais recente, afirma em relação ao Brasil que houve maiores esforços do Estado brasileiro no enfrentamento ao crime. As autoridades relataram ter conduzido 172 investigações (133 nos termos do artigo 149 e 39 no artigo 149-A) em comparação às 190 investigações realizadas em 2017 (171 nos termos do artigo 149 e 19 no artigo 149-A). O governo relatou processar 37 suspeitos (sendo 27 nos termos do artigo 149, 8 nos termos do 149-A e 2 em outro artigo) em comparação aos 57 processos em 2017 (sendo 55 nos termos do artigo 149 e 2 nos termos 149-A). Além disso, as autoridades relataram 128 condenações (sendo 121 nos termos do artigo 149 e 7 nos termos artigo 149-A) em comparação às 81 condenações realizadas em 2017 (das quais, foram 75 nos termos do artigo 149 e 6 nos termos do artigo 149-A). Destaca-se que no ano de 2018 as sentenças impostas variaram de um a cinco anos de prisão e que o governo brasileiro passou a tratar o trabalho forçado como um crime distinto do tráfico de pessoas (TIP, 2019).

Contudo, a análise de uma política pública não deve restringir-se tão somente ao aspecto quantitativo, mesmo porque os relatórios emitidos pelos órgãos governamentais e organismos internacionais apontam para a enorme subnotificação de casos. Mais do que focalizar nos números de registros oficiais de casos, deve-se centralizar a atenção na capacidade de transformação qualitativa que a LETP busca proporcionar às pessoas vítimas de tráfico de pessoas, assim como à sociedade como um todo, além de agravar as formas de punição aos autores do crime.

 

Desafios da LETP e as interseções com os direitos de crianças e adolescentes

O contexto histórico de surgimento da LETP é, talvez, o mais adverso, no Brasil, para assegurar o cumprimento de medidas de intervenção/custeio estatal de cunho não apenas repressivo, mas social, preventivo e intersetorial para garantia de direitos. 

A elaboração de uma lei calcada nos preceitos da prevenção, do atendimento e da repressão ao tráfico de pessoas, com ampla participação social, parece estar, no atual contexto político-governamental brasileiro, indo na contramão das prioridades de atuação do governo federal. Na melhor das hipóteses, somente executável no aspecto punitivo-repressivo, pois é o que mais interessa aos atuais gestores, e com pouca ou nenhuma participação da sociedade civil no planejamento e monitoramento das ações.

A prova disto é que o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, elaborado para ter um monitoramento transparente e continuado por meio da plataforma Monitora 87 (https://monitora87.mpt.mp.br/), não possui nenhum indicador monitorado em relação ao ano de 2019, o que torna o instrumento um desperdício de esforço de pessoas interessadas e de investimento público, pois foi estruturado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Apesar de ainda estar identificação como plataforma “em elaboração”, é muito provável que não haja interesse da gestão federal em repassar as informações necessárias para alimentar os indicadores e tornar pública a visualização de como as metas estão sendo cumpridas (ou não) pelos responsáveis.

Outra questão crítica da LETP, é que os aspectos que se referem à prevenção são muito frágeis, pois não se fixa a prevenção nas motivações da traficância, ou seja, não incorpora o enfrentamento das desigualdades de gênero, geração, etnicorracial e orientação sexual, sobretudo não explicita que a prevenção deve ocorrer em todos os âmbitos das políticas públicas já existentes. Além disso, não inclui medidas mais efetivas para assegurar a participação da sociedade civil e o controle social das políticas públicas, especialmente quanto à manutenção dos trabalhos do CONATRAP – ficando, assim, na dependência da vontade do Poder Executivo para assegurar o custeio do controle social ou do apoio oriundo das cooperações internacionais.

Em terceiro, no aspecto da repressão, a LETP trata o tráfico de pessoas sem considerar os interesses das cadeias produtivas e os aspectos relevantes de responsabilidade ampliada, ainda não considerada no texto normativo. Assim, a responsabilização da traficância fica restrita aos responsáveis diretos, sem considerar todos os beneficiários da exploração do corpo e do trabalho das pessoas traficadas.

Outra crítica à LETP é feita por grupos que se debruçam sobre a questão do trabalho em condições análogas a de escravo. Eles argumentam que, com a inclusão do artigo 149-A no CPB, a figura conhecida como “gato” (o aliciador) será punido mais gravemente que o explorador final (o patrão), pois o primeiro será alcançado pela disposição do artigo 149-A, inciso II, do CPB e o segundo será responsabilizado pelo artigo 149[5], cuja pena é de reclusão de 2 a 8 anos e multa, além da pena correspondente à violência. A situação mantém o que já observavam anteriormente, o “gato” continuará a ser punido mais gravemente que o explorador final, o dono do negócio.

Um dos aspectos que também necessita ser considerado é que, para além do Protocolo de Palermo, o ato de “comprar” pessoa foi incorporado a LETP. Assim, dirimiu-se uma das questões mais complexas que era o trato da questão do tráfico quando ocorria por meio da transação comercial de bebês, mas cuja finalidade era a adoção. O que até então poderia não ser considerado tráfico, porque a finalidade era o “benefício” à convivência familiar da criança, com a LETP torna-se irrelevante se ocorreu pagamento, sendo considero tráfico de pessoa da mesma forma.

Aliás, com isso já vislumbramos uma primeira interseção da LETP com os direitos de crianças e adolescentes. Neste campo jurídico, o debate sobre o tráfico de pessoas tem tradicionalmente ocorrido apensando-o à discussão da violência sexual, tornando-a um dos ramos de ocorrência dentro do subcampo da exploração sexual. Por óbvio, com a nítida centralização do interesse sobre o assunto quando relativo ao tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, algo que a própria LETP buscou superar, ou melhor, diversificar para além desta modalidade de interseção. Coube ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, em sua primeira edição, de 2000, e na segunda, de 2013, trazer aportes para o planejamento das políticas públicas de crianças e adolescentes com foco no enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Porém, com a edição da LETP, além da diversificação da análise do problema para além da perspectiva da exploração sexual – ou seja, pensando no envolvimento de crianças e adolescentes nos casos de tráfico de pessoas com finalidades de remoção de órgãos, trabalho em condição análoga à de escravo, qualquer tipo de servidão e, como dito mais acima, de adoção ilegal –, é preciso exercitar a proteção e o atendimento às vítimas de tráfico de pessoas com o respeito de suas necessidades específicas e, no caso de crianças e adolescentes, com um enfoque geracional.

Isto significa que o atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de tráfico de pessoas deve levar em considerações os aportes normativos, técnicos e metodológicos da escuta especializada e do depoimento especial, sobretudo com base na interseção com a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, Lei essa referente à escuta especializada e ao depoimento especial, que estabelece a organização do Sistema de Garantia de Direitos para atendimento das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, visando, com isso, um atendimento mais humanizado de acordo com o princípio de proteção integral à criança e ao adolescente e, ainda, de coletar evidências que apurem a materialidade e autoria dos fatos criminosos no que se refere à investigação.

Entre outras coisas, é importante compreender a situação e fazer a seguinte análise: qual será o órgão responsável por desenvolver a escuta especializada da criança ou do adolescente em situação de tráfico? Nos locais onde haja o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), este poderia ser definido como o órgão de referência para a escuta especializada, buscando articular com os aportes do atendimento humanizado já desenvolvidos pelos NETP. Porém, como os NETP existem basicamente nas capitais dos estados, com exceção do Amazonas que implantou o serviço em alguns municípios com alta demanda portuária, há de se considerar que, via de regra, serão provavelmente os órgãos socioassistenciais ou de justiça que vão assumir esta competência, a depender dos arranjos locais.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

_____. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>.

_____. Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5948.htm>.

_____. Decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008. Aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP e institui Grupo Assessor de Avaliação e Disseminação do referido Plano. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6347.htm>.

_____. Decreto nº 7.901, de 4 de fevereiro de 2013. Institui a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - CONATRAP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D7901.htm>.

_____. Decreto nº 9.440, de 3 de julho de 2018. Aprova o III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9440.htm>.

_____. Decreto nº 9.796, de 20 de maio de 2019. Institui o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação para o monitoramento e a avaliação do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Decreto/D9796.htm>.

_____. Decreto nº 9.833, de 12 de junho de 2019. Dispõe sobre o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9833.htm>.

_____. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>.

_____. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm>.

_____. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-8072-25-julho-1990-372192-normaatualizada-pl.html>.

_____. Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Brasília: Casa Civil, 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.803.htm#art149>.

_____. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Brasília: Casa Civil, 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm>.

_____. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13431.htm>.

_____. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília: Casa Civil, 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm>.

_____. Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas: consolidação dos dados de 2005 a 2011. Brasília: Ministério da Justiça, 2012.

_____. Relatório Nacional sobre o Tráfico de Pessoas: Dados 2014 a 2016. Brasília: Ministério da Justiça, 2017.

______. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: <https://www.novo.justica.gov.br/>.

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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Portaria Interministerial nº 634, de 25 de fevereiro de 2013. Aprova o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - II PNETP e institui o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/politica-brasileira/anexo_gi_-monitoramento/portaria-interministerial-no-634-de-25-de-fevereiro-de-2013-1.pdf>.

MONITORA 8.7. Plataforma de Monitoramento de Planos da Meta 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável em prol da erradicação do Trabalho Forçado, da Escravidão Contemporânea, do Tráfico de Pessoas e do Trabalho Infantil (Agenda 2030). Disponível em: <https://monitora87.mpt.mp.br/>.

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado n° 479, de 2012. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/110044>.

SENADO FEDERAL. Substitutivo da Câmara dos Deputados n° 2, de 2015, ao Projeto de Lei do Senado nº 479, de 2012. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/119888>.

US DEPARTMENT OF STATE. Trafficking in Persons Report. 2019.

[1] “Art. 30.  A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses: [...] II - a pessoa: [...]; g) tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória” (Brasil, 2017).

[2] “Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;  II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se: I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa” (Brasil, 2016).

[3] Emenda Constitucional nº. 95/2016, conhecida por Emenda do Teto dos Gastos Públicos, determinando que a partir de 2018 as despesas federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada, conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), por um período de 20 anos, o contingenciamento do orçamento público para financiamento de políticas públicas, incluindo as específicas de tráfico de pessoas, passa a ser constitucionalmente assegurado e afeta drasticamente as projeções de cumprimento da LETP.

[4] Existe ausência de dados do segundo semestre de 2016, justamente devido a conjuntura de agravamento da crise político-econômica no Brasil que refletiu na articulação dos serviços de enfrentamento ao tráfico de pessoas, inclusive em relação à produção e sistematização de dados de atendimentos. Por outro lado, é importante referir que os casos registrados dizem respeito àqueles que chegaram num dos 16 estados do Brasil que possuem implantados os serviços de NETP e de PAAHM, portanto, excluindo, de antemão, outros 11 estados que não possuem tais serviços, o que impossibilita uma “análise nacional” da situação.

[5] “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência” (Brasil, 2003).

 

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