“Legitimação normalizadora” do impeachment pelo Supremo Tribunal Federal? – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

16/05/2016

Analisamos no presente texto recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que, lidas em conjunto, explicam bem o papel do Poder Judiciário no processo de “legitimação normalizadora” do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, assim como a omissão jurisdicional daquele Tribunal no dever precípuo de garantia da Constituição e do Estado Democrático de Direito, mormente em momentos de crise, e como isso pode contribuir para o desmoronamento do Estado de Direito e da Democracia entre nós. É, portanto, papel da doutrina contribuir para a crítica veemente à atividade jurisdicional do Supremo Tribunal Federal quanto a esse processo.

A primeira decisão a ser analisada é a do Mandado de Segurança n. 34.193, impetrado pela Advocacia-Geral da União em que se pedia a suspensão do processo de impeachment uma vez que, tendo o Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha sido suspenso de suas funções – como analisamos em texto recente[1] –, o processo de impeachment teria sido contaminado pelo chamado “desvio de finalidade”; além disso, estando o processo de votação na Câmara eivado de ilegalidade na medida em que admitiu fatos estranhos à denúncia (o que foi textualmente proibido pelo STF não apenas na ADPF. 378 mas também em decisão liminar horas antes da votação na Câmara), bem como porque os líderes partidários encaminharam a orientação do partido político, o que acabou influenciando na livre convicção dos parlamentares, já que poderiam sofrer penalidades partidárias[2].

Impetrado no dia 10 de Maio de 2016, quando a votação pela admissibilidade do impeachment no Senado Federal ocorreria no dia 11 de Maio de 2016, o Relator, Ministro Teori Zavascki, proferiu decisão monocrática indeferindo o pleito liminar de segurança de suspensão do processo de impeachment[3].

Dois são os fundamentos apresentados para a denegação: em primeiro lugar, o Mandado de Segurança visava atacar o ato de recebimento parcial da denúncia praticado pelo Presidente da Câmara dos Deputados. Tal ato, segundo o voto do Relator, teria sido praticado no dia 2 de Dezembro de 2015 e, portanto, a impetração seria intempestiva, posto que ultrapassado o prazo de 120 (cento e vinte) dias, consoante o art. 23 da Lei 12.016/09, que prevê o prazo decadencial para a impetração daquele writ: “Trata-se, com efeito, de ato praticado em 2 de dezembro de 2015, portanto, há mais de cento e vinte dias, o que, em princípio, atrai o decurso do prazo estabelecido no art. 23 da Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/09)”[4].

De outro lado, o Relator considera que a estreita via cognitiva do mandamus impossibilita a análise da alegação de desvio de finalidade do ato praticado pelo Presidente da Câmara dos Deputados, já que o desvio de finalidade no ato oriundo do Poder Público deve se circunscrever ao plano subjetivo do agente que o pratica. Assim, entende que impossível seria atestar a plausibilidade suficiente para se conceder o Mandado de Segurança: “Como já dito, a invocação do desvio de poder como causa de pedir reclama imersão no plano subjetivo do agente público responsável pelo ato, atividade que é praticamente – senão de todo – inviável quando o ato sob contestação representa a vontade conjugada de quase 370 parlamentares, que aprovaram um relatório circunstanciado produzido por Comissão Especial, com fundamentação autônoma em relação ao ato presidencial que admitiu originalmente a representação. Generalizar vício de vontade que se alega presente nas manifestações de um parlamentar para o universo do Plenário é o mesmo que nulificar o princípio de presunção de legitimidade que é correntio em direito público”[5].

Ainda, a decisão simplesmente passa por cima da alegação de “fechamento de questão” pelos partidos políticos, já que admitiu não ter relevância na impetração, uma vez que não se sabe se tal fechamento de questão influenciara no resultado final. Daí, denegou o pedido de suspensão do processo de impeachment.

A questão é que a decisão, em última análise, acaba por negar a própria possibilidade de controle judicial do desvio de finalidade dos atos estatais, por via de Mandado de Segurança, sob o argumento de que se trata de questão subjetiva. Estariam, então, por acaso, os princípios da moralidade e da finalidade submetidos à livre vontade das autoridades públicas? Voltamos ao período pré-88 no qual as decisões dos representantes do Poder Público se configuravam em “questões políticas” e, portanto, não jurisdicionáveis? Decisões sobre o cumprimento da Constituição e das leis tratando do devido processo legal podem ser tomadas sem qualquer controle judicial?

No Direito Comparado, a já consolidada jurisprudência que vem do Conselho de Estado francês firmou-se desde o caso “Lesbats” de que o détournement de pouvoir deve ser aferido de forma a indagar se o ato praticado está de acordo com as finalidades perseguidas pelo legislador. Ora, se, eventualmente, o ato praticado busca atingir uma finalidade contrária ao objetivo (constitucional/legalmente) previsto, então há um desvio de finalidade ou de poder.

Dessa maneira, e como têm sido as lições doutrinárias e jurisprudenciais, o desvio de finalidade e poder prescinde da análise subjetiva do agente; sua análise é apenas do caráter público e objetivo do ato. Por exemplo, o próprio Supremo Tribunal Federal julga de forma consentânea à moralidade administrativa o desvio de finalidade nos casos de nepotismo cruzado[6], sem perquirir a subjetividade do agente[7], bastando a comprovação objetiva do ato.

Relegar o controle jurisdicional do desvio de finalidade dos atos estatais para o plano subjetivo do agente é, na verdade, o mesmo que abster-se de controlar a moralidade e a finalidade dos atos estatais.

Além disso, como veremos em seguida, desconhecer a alegação de encaminhamento de votação pelas lideranças dos partidos políticos implica violação do devido processo legal, já que em desacordo com o art. 23, caput, da Lei 1079/50. O relator tem dificuldades em identificar o direito lesado pela votação do relatório na Câmara, qual seja, o direito das minorias parlamentares a um devido processo legislativo.

A segunda decisão foi proferida pelo Ministro Luiz Fux no Mandado de Segurança n. 34.181, impetrado pelo deputado Paulo Teixeira (PT/SP), contra ato da Presidência da Câmara dos Deputados, sob a alegação de violação do art. 23, da Lei 1.079/50, e também do art. 192, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, além do pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que os julgamentos políticos do Poder Legislativo devem gozar da plena imparcialidade, nos termos da garantia que o Pacto de São José da Costa Rica concede aos parlamentares. Dessa forma, como já dito, o encaminhamento de votação pelos partidos, do Relatório da Comissão Especial do Impeachment, teria eivado de ilegalidade a votação na Câmara dos Deputados realizada no dia 17 de abril, razão pela qual pedia anulação do ato de votação da Câmara dos Deputados.

O Relator, ao apreciar a liminar, de forma monocrática julgou que tal ato seria infenso ao controle jurisdicional, já que constituiria matéria interna corporis, não sendo possível o cabimento do Mandado de Segurança. Segundo o Relator, o ato impugnado envolve a interpretação de dispositivos regimentais, mas, também legais, o que impossibilitaria a intervenção jurisdicional: “Resta claro que o ato praticado pelo impetrado, diante da situação fática descrita pelo impetrante, envolveu a interpretação de dispositivos regimental e legal, restringindo-se a matéria ao âmbito de discussão da Câmara dos Deputados. Dessa forma, afigura-se incabível, para o relator, o mandado de segurança, pois não se trata de ato sujeito ao controle jurisdicional”[8].

A decisão monocrática datada de 06 de Maio de 2016 do Ministro Luiz Fux simplesmente desconsidera a recente e importantíssima decisão da ADPF. n. 378, tomada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, além da própria jurisprudência do Caso Collor, na medida em que considera a interpretação de dispositivos regimentais e legais sobre o processo de impeachment como atos interna corporis infensos ao controle jurisdicional.

Ora, precisamos ser repetitivos quanto a esse ponto: o controle do processo de impeachment não pode ser considerado um ato interna corporis. Como pensar em ato interna corporis se o processo de impeachment envolve a própria estrutura do nosso sistema presidencialista de governo e, no fundo, envolve a autonomia pública de todos os cidadãos de nossa comunidade política?

As garantias do devido processo legal e do devido processo legislativo não podem ser consideradas como atos discricionários do parlamentar, já que envolvem não só aqueles que são, por este, representados, mas também ao nosso regime político-democrático como um todo. Tratar desse modo o devido processo legislativo é desmoronar todo sistema político-democrático de controle de constitucionalidade previsto pela Constituição de 1988[9]. É privatizar algo que não é privado, isto é, o mandato recebido pelos parlamentares, que possuem um direito-dever público-subjetivo de agir de forma republicana e representativa. Não é por outra razão que o STF construiu a jurisprudência acerca da possibilidade do controle (prévio) de regularidade do processo Legislativo provocável por parlamentar[10].

Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal consolida com a ADPF 378 jurisprudência inaugurada no Caso Collor, como parte do sistema constitucional, segundo a qual o rito do processo de impeachment não é uma questão meramente política infensa ao controle jurisdicional, senão que deve ser tratado como questão jurídica que afeta a toda sociedade aberta de intérpretes da Constituição[11].

Por último, a decisão monocrática do Ministro Luis Roberto Barroso no Mandado de Segurança n. 34.196, em que o Diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) da cidade de Oriental pleiteava que o Vice-Presidente Michel Temer se abstivesse de praticar certos atos de Presidente da República, na hipótese de assumir interinamente a Presidência da República, pelo afastamento da Presidente Dilma Rousseff, pelo prazo de até 180 dias, no caso de admissibilidade do processo de impeachment pelo Senado Federal[12]. Cabe, portanto, lembrar que tal afastamento não implica em sucessão no cargo (art. 79, CR/88). A decisão do Ministro Relator – diferentemente da posição adotada pelo Ministro Gilmar, mas também do Ministro Zavascki e do próprio Pleno do Tribunal, quando da nomeação do ex-Presidente Lula para a Casa Civil, da prisão preventiva do ex-Senador Delcídio do Amaral ou, mais recentemente, quando do afastamento do Deputado Eduardo Cunha –, considerou que impedir um Vice-Presidente (meramente interino no exercício da Presidência, lembramos) de livremente nomear Ministros seria uma “interferência excessiva” do Poder Judiciário, já que o país poderia ficar paralisado, uma vez que nem a Presidente afastada, nem o Vice no exercício da Presidência poderiam administrar a máquina política[13].

É, pois, uma exigência criticar veementemente essa incoerência decisória que se tem formado por meio de pronunciamentos monocráticos de Ministros do Supremo Tribunal Federal quando se sabe que em questões complexas compete ao Pleno do Tribunal dar a palavra final, confirmando ou não essas decisões. Afinal, todas essas decisões foram dadas ad referendum do Plenário, devendo por isso seguir, no mínimo, a jurisprudência do Tribunal ou, se não, justificar expressamente em que esses casos se distinguiriam dos casos anteriores; todavia, isso não é feito, em desrespeito, inclusive, às exigências legais trazidas pelo novo Código de Processo Civil. Com efeito, a guarda da decisão não pode ser confiada a um ou outro Ministro, senão que ao Pleno do Supremo Tribunal Federal. O que se tem configurado nesses casos é uma verdadeira dose de arbitrariedade e incoerência decisória, já que não há nem a explicitação pelos Ministros da suposta distinção entre o caso objeto de sua apreciação e os casos anteriores, nem muito menos o debate colegiado, em razão da não submissão, de imediato, dessas decisões, apenas proferidas ad referendum, ao Plenário; o que, de per si, já teria o condão de afastar a legitimidade dessas decisões.

Saliente-se, são decisões que afetam de imediato toda a estrutura político-democrática da Constituição. Na medida em que por meio delas há a omissão injustificada de controle jurisdicional de constitucionalidade e legalidade de atos do processo de impeachment, quem poderá crer que, por meio delas, estará o Supremo Tribunal Federal normalizando ou legitimando um processo de impeachment cada vez mais marcado por inconstitucionalidades e por ilegalidades, como já dissemos alhures?

A sequência dessas três decisões, portanto, por não considerar (de forma injustificada) a jurisprudência do Tribunal, mas também por violar a Constituição e a legislação processual, não apenas padece de coerência em face de decisões anteriormente tomadas, mas também expressa uma verdadeira ausência de integridade jurídica – tão cara não só a doutrinas mais atuais, como também ao Novo CPC, art. 926. Tal ausência de integridade tem incrementado o risco de um “Estado de Exceção Hermenêutico”, com sérias consequências políticas, a corroer as estruturas do Estado Democrático de Direito entre nós.


Notas e Referências:

[1] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, FERNANDES, Bernardo Gonçalves, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O caso Cunha no STF e a defesa da integridade constitucional: a decisão liminar na AC 4.070 e o sentido adequado das prerrogativas e imunidades parlamentares. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/caso-cunha-no-stf/, acesso em 14 de Maio de 2016.

[2] Síntese da impetração disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=316295, acesso em 14 de Maio de 2016.

[3] Decisão disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/ms-34193-teori-nega-suspensao.pdf, acesso em 14 de Maio de 2016.

[4] Decisão disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/ms-34193-teori-nega-suspensao.pdf, acesso em 14 de Maio de 2016.

[5] Decisão disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/ms-34193-teori-nega-suspensao.pdf, acesso em 14 de Maio de 2016.

[6] Por exemplo, STF, MS24.020/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 06/03/2012.

[7] Que precisaria ter a seguinte resposta “será que aquele que nomeia parente de um colega quer realmente fraudar a moralidade administrativa?”, para que, então, se pudesse anular o ato.

[8] Decisão disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/ms-teixeira-fux.pdf, acesso em 14 de Maio de 2016.

[9] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: Uma justificação do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3ª edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.

[10] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: Uma justificação do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. 3ª edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.

[11] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco Moraes, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O IMPEACHMENT e o Supremo Tribunal Federal: história e teoria constitucional brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

[12] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=316428, acesso em 15 de Maio de 2016.

[13] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=316428, acesso em 15 de Maio de 2016.


 

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