Legado olímpico: o que e para quem? O antes e o depois de uma trama esportiva

31/08/2016

Por Enzo Bello – 31/08/2016

Após uma cerimônia de abertura repleta de ufanismo e ceticismo, e duas semanas de muita euforia, confraternização e recordes, em 21 de agosto a Olimpíada Rio 2016 passou o bastão para a não tão badalada - porém, não menos importante - Paralimpíada. Já saudosos com o fim dos Jogos, muitos afirmam que é hora de retomar a vida normal, voltar ao cotidiano. Não no que está além da dimensão unicamente esportiva e festiva.

Os Jogos Olímpicos representam apenas o ápice de um processo complexo, global e local, que começou há muitos anos e perdurará por outros tantos[1]. Com os preparativos e a realização dos Jogos Mundiais Militares (2011), da Copa das Confederações (2013), da Copa do Mundo (2014) e dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos (2016), os brasileiros e cariocas puderam e poderão acompanhar de perto (ou de longe, se considerado o acesso custoso e restrito às arquibancadas) o que outros países já vivenciaram (de bom e de ruim) quando serviram de palco para sediarem o circo dos megaeventos esportivos internacionais[2].

A tônica desse processo é dada pela ausência de democracia na tomada e na execução de decisões (privadas e estatais) que envolvem a produção e a circulação de capital nas esferas nacionais, internacional e supranacional, fundamentalmente a partir do dispêndio de dinheiro público, em grande monta, em prol de interesses e lucros empresariais.

No âmbito privado, o histórico, a estrutura e as práticas das principais entidades esportivas mundiais (FIFA e COI) e brasileiras (CBF e COB) demonstram um perfil de natureza privada, patrimonialista, hereditária e mercantilista, que há muito superou o amadorismo que caracterizava os "espíritos" esportivo e olímpico. Useiras e vezeiras em escândalos de corrupção, essas entidades movimentam fortunas e se caracterizam pela ausência (i) de legitimidade e alternância na escolha de seus dirigentes[3], (ii) de processos públicos de tomada de decisões com grandes repercussões (por exemplo, escolhas das sedes para os megaeventos) e (iii) de transparência na arrecadação e na prestação de contas.

No espaço público, os países que decidem se candidatar a sediar os megaeventos esportivos internacionais replicam essas práticas. Como em muitos (se não todos) eventos anteriores, a escolha pela candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos de 2016 não passou por quaisquer processos democráticos de consulta popular (plebiscito ou referendo), que deveriam ser abrangentes e envolver as três esferas federativas (nacional, estadual e municipal).

Trata-se de um Estado empresário[4] gerenciado por atores que agem em função do interesse privado, abastecido e impulsionado com recursos públicos.

Símbolo desse feixe elitista entre público e privado, os cadernos de encargos  (documentos privados) das entidades supranacionais assumem, na prática, força e hierarquia normativas superiores à Constituição. E servem como justificativa para a criação de um estado de exceção em que o Estado edita legislações de emergência e implementa políticas “públicas” excepcionando direitos fundamentais dos cidadãos e abrindo mão de tributar vultuosas receitas de grandes empresas.

Por um lado, uma série de restrições graves a direitos civis, políticos e sociais. Por exemplo, a proibição (por agentes de segurança privados!) a manifestações políticas  pacíficas (Fora Temer!) dentro das instalações olímpicas; o impedimento de cidadãos que não portassem ingressos de utilizar a recém inaugurada linha 4 do metrô (sentido Barra da Tijuca), que foi construída com recursos públicos (em valor 280% acima do orçado).

Por outro lado, uma enorme renúncia da União Federal a tributações. À título ilustrativo, a Lei 12.780/2013 concede isenção fiscal ao Comitê Olímpico Internacional, ao Comitê Organizador Rio 2016 e a uma série de empresas envolvidas nos Jogos (patrocinadores, fornecedores e operacionais em  geral), tais como bancos (Bradesco), emissoras de TV (Rede Globo), empreiteiras (Odebrecht e Carvalho Hosken), multinacionais (Coca-Cola, Nike, Panasonic, Nissan), escritórios de advocacia, entre outros. Total de 780 entidades beneficiadas e estimativa de R$ 3,8 bilhões a menos nos cofres públicos[5]. Exigência do COI (caderno de encargos), claro, integralmente atendida, a despeito da Constituição Federal e da legislação ordinária.

E tudo sob o manto da própria legalidade. Além de outras normas anteriores, chama a atenção a pouco divulgada Lei 13.284, editada em maio de 2016, que regula direitos e obrigações patrimoniais relacionados à realização dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Basicamente em torno de direitos de propriedade intelectual (marcas e patentes) e acesso privilegiado a áreas públicas e locais oficiais, com as respectivas sanções civis e penais em caso de descumprimento, e… a responsabilidade civil da União Federal, claro!

Essa dinâmica marcou o antes e o durante das Olimpíadas Rio 2016, sinalizando características do porvir que ora se inicia e que merece ser objeto de atenção e análise. Eis o que se propõe a designar o tão mencionado e ainda pouco delimitado “legado olímpico”[6]. A expressão “legado” significa aquilo que fica, resta, permanece de histórias, realizações, feitos. No caso dos megaeventos esportivos internacionais, o “legado” funciona como coringa em discursos prévios que buscam legitimar as futuras realizações de jogos como algo que trará prosperidade, avanço, progresso, e que “certamente” deixará elementos subjetivos e objetivos como, respectivamente, memórias afetivas e construções físicas.

Supostamente, os sentimentos de mudança e os resultados das reformas urbanas que permeiam esses eventos ficariam para quem os acompanhou e, especificamente, para as populações dos locais que sediam os Jogos.

Afinal, o que fica para o povo e a cidade do Rio de Janeiro?

Ao invés de seguir o ponto de vista oficial, institucional e hegemônico, que, obviamente, visa a justificar os resultados relacionando-os integralmente às premissas por eles construídas, é preciso olhar a partir de outro ponto de vista: o de quem não participou das escolhas e/ou das festividades, o de quem foi açoitado para que as construções fossem erguidas, o de quem não teve voz e não foi visto nesse processo.

Uma boa pista pode ser encontrada no âmbito do local, para então se projetar percepções e noções nos planos nacional e até global. Trata-se dos chamados "aparelhos olímpicos”. Já há decisões tomadas e encaminhadas num viés de entrega à iniciativa privada, por meio de concessões e “parcerias” público-privadas (PPPs). Sua construção, utilização e destinação indicam características e tendências de processos complexos e articulados no dito “legado olímpico”, muitas vezes identificado pela figura dos “elefantes brancos”.

A partir da matriz do direito à cidade e da experiência vivida e em vivência nas ruas da cidade e nas “áreas olímpicas” em meio à Olimpíada Rio 2016, sugiro algumas pautas de pesquisas a partir de alguns eixos, entre os muitos que se poderia adotar: (i) “aparelho olímpico”; (ii) fomento e desempenho esportivo; (iii) segurança pública; (iv) mobilidade urbana; e (v) moradia.

(i) “aparelho olímpico”: de acordo com reiteradas manifestações da prefeitura municipal, o destino é a entrega à iniciativa privada do que permanecer após a desmontagem de certas construções nos imóveis de propriedade estatal nas 5 áreas olímpicas: (i) Região Barra: Centro Olímpico de Golfe, Parque Olímpico da Barra, Pontal, Riocentro e Vila dos Atletas[7]; (ii) Região Copacabana: Arena de Vôlei de Praia, Estádio da Lagoa, Forte de Copacabana e Marina da Glória; (iii) Região Deodoro: Centro Olímpico de Hipismo, Parque Olímpico de Deodoro e Parque Radical de Deodoro; (iv) Região Maracanã: Estádio do Maracanã, Ginásio do Maracanãzinho, Sambódromo e Estádio Olímpico (Engenhão); (v) Boulevard Olímpico: Campo Grande, Parque Madureira e Porto Maravilha.

(ii) fomento e desempenho esportivo: a Grã-Bretanha (“Team GB”) pulou de 1 medalha de ouro e 15 no total em Atlanta 1996 para 27 de ouro e total de 67 no Rio 2016, saltando do 36o para o 2o lugar na tabela de classificação. Por quê? Investimento pesado, com ênfase em esportes individuais, sobretudo depois dos Jogos de 2012. E o Brasil? Não foi alcançada a projeção inicial do governo federal (documento “Plano Brasil”[8]), que almejou a inédita classificação entre os 10 primeiros colocados. O “Time Brasil” ficou em 13o, com 7 medalhas de ouro, 6 de prata e 6 de bronze (total de 19). Ou seja, como se verifica a partir daquele documento e dos resultados, continua-se investindo mais em esportes coletivos e os medalhistas brasileiros persistem despontando individualmente (por exemplo, em 2012 Arthur Zanetti e em 2016 Isaquias Queiroz) e muito por conta própria, sem ou com pouquíssimos investimentos (principalmente da área privada) em sua formação e aperfeiçoamento.

(iii) segurança pública: normas jurídicas como a "lei antiterrorismo” foram criadas e utilizadas para legitimar a repressão a manifestações pacíficas em praças e ruas da cidade. Houve aparato militar ostensivo, inclusive, na condução da tocha olímpica antes dos Jogos, quando populares sequer puderam se aproximar dos condutores. A Força Nacional de Segurança compareceu em peso e, além da sua missão precípua, exerceu gratuitamente atividades internas que poderiam/deveriam ser prestadas por agentes privados (a limpeza dos Parques Olímpicos foi realizada pela empresa pública municipal, COMLURB!). Aliás,permanecerão as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)? Como e por quanto tempo?

(iv) mobilidade urbana: houve estouro de orçamento e atraso na entrega das obras de transportes, com transferência imediata à iniciativa privada, mediante concessões e permissões (PPPs), para exploração da linha 4 do metrô e da via Transolímpica, sendo que a empresa concessionária desta última cobrará uma das tarifas de pedágio mais caras do país[9]. Haverá mais expansão da malha de transporte coletivo?

(v) moradia: tratada como sinônimo de mercadoria[10] pelos governos federal, estadual e municipal. Coadunam-se estranhamente políticas “públicas” construtivas e destrutivas. Por um lado, a partir de 2009, com o Plano Minha Casa Minha Vida, em “parceria” com empreiteiras privadas, o governo federal viabilizou a construção na cidade do Rio de Janeiro de “mais de 66.270 unidades, 33.363 dessas unidades são destinada (sic) as (sic) famílias que possuem uma renda mensal de até R$1.600,00”[11]. Por outro, essa mesma prefeitura promove práticas de gentrificação e realizou, entre 2009 e 2013, remoções forçadas de cerca de 67 mil pessoas[12]. Destaque para a Vila Autódromo[13], comunidade localizada há 40 anos ao lado do atual Parque Olímpico da Barra, e que perdeu a maioria de seus integrantes, mas conseguiu manter-se viva graças à mobilização popular que ganhou repercussão internacional.

Muito provavelmente a já tão aguardada Olimpíada de Tóquio 2020 apresentará questões como essas. Talvez não com a mesma ginga brasileira, mas com a mesma dinâmica desse processo de trama esportiva entre público e privado que permite ao capital financeiro correr e saltar sem barreiras.


Notas e Referências:

[1] BELLO, Enzo. A cidadania na luta dos movimentos sociais urbanos. Caxias do Sul: EDUCS, 2013.

[2] MOLINA. Fabiano Silveira. Megaeventos e produção do espaço urbano. São Paulo: Annablume, 2016.

[3] Os casos mais notórios de longevidade nos cargos de presidência da FIFA e da CBF são, respectivamente, os dos brasileiros João Havelange (1974-1998) e Ricardo Teixeira (1989-2012), curiosamente sogro e genro.

[4] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[5] http://rodrigomattos.blogosfera.uol.com.br/2016/07/20/olimpiada-da-isencao-fiscal-a-odebrecht-globo-e-outras-700-empresas/

[6] Nesse sentido já vem se manifestando em tom crítico, inclusive, a imprensa estrangeira: https://www.theguardian.com/books/2016/aug/21/rio-2016-olympic-games-brazil-legacy-party

[7] De acordo com descrição do site Globoesporte.com: "São 31 prédios divididos em sete condomínios, com o total de 3.604 apartamentos, 10.160 quartos com capacidade para hospedar 18 mil atletas e oficiais. Durante os Jogos, cerca de 10 mil profissionais - entre funcionários, terceirizados e voluntários - atuarão na operação da Vila, que ocupa 475.000 m² de área. A empreiteira da obra é a Carvalho Hosken. Depois dos Jogos será um condomínio". Cf. http://app.globoesporte.globo.com/olimpiadas/instalacoes-olimpicas/vila-dos-atletas.html

[8] http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/incentivo-ao-esporte/plano-brasil-medalhas.

[9] O valor ficará entre R$ 5,90 e R$ 6,50, num patamar de R$ 0,25/km, bem acima da média praticada no resto do país (R$ 0,10) e pelo governo federal (R$ 0,06). Cf. http://extra.globo.com/noticias/rio/transolimpica-tera-um-dos-pedagios-mais-caros-do-pais-com-cerca-de-025-por-quilometro-19990382.html.

[10] https://brasildefato.com.br/2016/08/16/moradia-se-tornou-sinonimo-de-mercadoria-diz-a-ex-relatora-da-onu-raquel-rolnik/

[11] http://www.minhavidaminhacasa.com/minha-casa-minha-vida-rio-de-janeiro-rj

[12] AZEVEDO, Lena; FAULHABER, Lucas. SMH 2016: remoções do Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015.

[13] SILVA, Marcela Münch de Oliveira e. Vila autódromo, um território em disputa: A luta por direitos desde sujeitos fronteiriços e práticas insurgentes. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) - Universidade Federal Fluminense. 2016.


Enzo BelloEnzo Bello é Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


Imagem Ilustrativa do Post: Tocha Olímpica // Foto de: Naiara Pontes // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/naiarapontes/27661990010/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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