Laicidade e liberdade de consciência

21/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 21/04/2015

Buen hombre, a muchos he oído decir que eres muy sabio y muy versado en el conocimiento de las cosas de Dios, por lo que me gustaría que me dijeras cuál de las tres religiones consideras que es la verdadera: la judía, la mahometana o la cristiana.” (El sultán Saladino al judío Melquisedec, “Los tres anillos” de Boccaccio)

A percepção da religião como uma espécie de mensagem, mistério[1] ou mandado divino por almas que sofrem, perfeita para a narrativa e a fábula (tanto pela emotividade que envolve como pelo poder de engano sensibilização que tem), é algo a todas luzes orgânico: uma função do cérebro, uma ideia construída pela atividade fisiológica dos tecidos cerebrais como todas as demais ideias, “sin ninguna connotación especial más allá de cómo lo hace con otras ideas, como la belleza o la moral” (F. Mora).

Como explica J. Bering, se trata de “un estado mental, una ilusión psicológica, una especie de evolucionada imperfección grabada en el sustrato cognitivo esencial del cerebro” que, de vez em quando, comete erros e nos engana. Algo parecido ao que sucede com as ilusões ópticas (ou «erros do cérebro», como chama N. D. Tyson): ainda que entendamos que nos “impide tener momentos sostenidos de claridad”, não desaparecem. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para interpretarmos nossa própria realidade e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que nos inventamos. Somos o que somos e os deuses (e as ideias) “solo existen cuando la gente cree en ellos”.

Criada baixo os dogmas de uma superstição organizada e governada por um Deus que se parece muito a um chefe mafioso (que nos oferece “proteção” e promete não fazer-nos dano, castigar ou matar sempre e quando Lhe juremos absoluta fidelidade, cumpramos estritamente suas regras e Lhe paguemos em moeda moral – J. Bering),  a religião se transformou no combustível mais eficaz de uma das capacidades mais extraordinárias de nosso cérebro: a de imaginar coisas que realmente não existem. Mas como não é ouro tudo o que brilha e nem estão perdidos todos os que vagam pelo mundo, foi precisamente a liberdade de consciência[2], como nêmesis pública da tirania religiosa, que minou todas as bases dessa atrativa e exitosa invenção humana.

Uma liberdade que constitui, segundo Steven Pinker, a única maneira de adquirir conhecimentos sobre o mundo, de saber que os sistemas de crenças das religiões e as culturas tradicionais de todo o mundo —suas teorias sobre as origens da vida, os seres humanos e as sociedades— são objetivamente falsos. Talvez o maior descobrimento na história humana —um que é lógicamente decorrente  dessa  liberdade — é que todas “nuestras fuentes tradicionales de creencia son, de hecho, generadores de error y deben ser descartados como fuentes de conocimiento. Estos incluyen la fe, la revelación, el dogma, la autoridad, el carisma, el augurio, la profecía, la intuición, la clarividencia, la sabiduría convencional, y el cálido resplandor de la certeza subjetiva. Sólo adquirimos conocimiento atacando las ideas y viendo cuáles resisten los intentos de refutarlas” (S. Pinker).

De fato, no curso do tempo, o direito à liberdade de consciência se forjou como peça central das sociedades modernas, inscrito em quase todas as constituições do mundo. Também se converteu no flagelo à alienação religiosa, à superioridade espiritual ou moral dos que abraçam qualquer tipo de mensagem celestial e a comumente intolerante e paranóica reação dos cruzados da fé. Sobra dizer que as constituições atuais, de uma maneira geral, determinam que nenhuma confissão religiosa terá caráter estatal, que os Estados são laicos e que permanecem à margem dos credos, considerados todos esses por iguais aos efeitos do trato que hão de receber.

Não há um documento semelhante à «lei das leis» no que se refere às religiões, mas, ao menos as chamadas «do livro», dispõem de uns textos sagrados aos que seus respectivos devotos atribuem uma autoria divina. A igreja católica, por exemplo, dispõe da Bíblia e, formando parte dela, um Novo Testamento no qual figura, se não recordo mal, a metafórica recomendação feita por Jesus de “dar a César o que é de César e a Deus o que pertence a Deus”.

Esta separação entre o mundo laico e o religioso foi um dos fundamentos da aparição dos Estados modernos, porquanto o poder religioso – nomeadamente depois da reforma protestante – “deixou” de atender aos assuntos políticos e de usurpar os poderes legítimos das autoridades civis, centrando-se no que forma parte da mensagem bíblica e dos importantíssimos, complexos e insondáveis assuntos próprios dos sacros dogmas (ainda quando, há que reconhecer, a maioria dos vicários do Senhor continuem a incorrer na denominada contradição «performativa»: “chove, mas não creio que chova“; “meu Reino não é deste mundo, mas atuo tal como se fosse”).

Como a gente culta compreende - e deixando deliberadamente de lado qualquer reflexão filosófica desnecessária -, as religiões pertencem ao âmbito privado (e a estas alturas já deveria estar claro o motivo), são válidas para quem queira crer em seus tautológicos postulados, mas não são válidas para qualquer sujeito. Isso implica que não deve haver qualquer tipo de interferência do (ou desde o) privado sobre o público. O âmbito público deve estar protegido do privado: no âmbito público não valem as «razões» privadas, precisamente porque no âmbito público se busca o que é suscetível de universalidade e aceitação por qualquer sujeito, comum a todas as pessoas e válido para todos, enquanto que o privado, por definição, é o que vale para uns, mas não para todos.

Em um Estado laico, todos cidadãos e instituições são laicos no âmbito público, quer dizer, quando se trata do que a todos concerne, e logo cada cidadão tem suas próprias crenças e preferências em seu âmbito privado. O laicismo é precisamente a ordem político-jurídica que garante o anterior; e ao que se opõe é justamente a essa identificação do público com uma opção religiosa, protege a liberdade de pensamento no âmbito privado donde é inviolável, assim como sua livre expressão sem mais limite que a ordem pública: a liberdade dos demais. (A. Carmona)

E mais: em um Estado moderno, a decisão sobre o bem ou o mal e outras questões morais estão restritas, protegidas e garantidas, ao espaço privado da consciência individual. Desta forma se assegura a liberdade individual para pensar e viver de acordo à própria ética e se proíbe que o poder público possa impor uma religião ou moral particular ao conjunto da sociedade, respeitando assim a liberdade de pensamento, eleição, decisão, ação e crença de cada cidadão.

Por isso se estabelece um «muro de separação» entre os dois âmbitos: o privado e o público. Ninguém pode vulnerar a liberdade de consciência nem de expressão e de ação, nem um particular, nem a maioria, nem o Estado com suas leis. Nenhum particular, grupo fático ou religioso pode impor suas próprias convicções, doutrinas, ritos e/ou símbolos aos demais. Não por outra razão é que o limite de nossa liberdade é a liberdade dos outros, não suas crenças.

A liberdade religiosa, que não se justifica (em modo algum) como homenagem ou consideração às religiões ou aos grupos religiosos enquanto titulares de direitos ou interesses mais altos que os dos indivíduos[3], não acarreta ou determina, baixo nenhuma circunstância, dar validez ao fato religioso, nem tão pouco significa ou ordena fazer o terceiro (e o mais nefasto) dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto.[4]


Notas e referências:

[1] «Mistério»: este “curioso mecanismo que permite, graças à ausência de resposta, que tenhamos resposta para tudo; uma noção empregada de forma desmesurada que se converte em um mero sofisma para justificar o injustificável” (Marcel Conche). Aliás, seja dito de passagem, uma das maiores vantagens constitutivas das religiões sobre as ideologias laicas é a denominada «inutilidade da prova». As ideias, contos, símbolos e fabulações que nos apresentam não têm escala humana ou temporal, ao contrário de nossos ideais terrestres, obrigados a resignar-se às leis da verificação e da persuasão racional. Como a sentença de Descartes que Spinoza adotou como máxima para orientar-se: “Nada debe ser considerado como verdadero excepto aquello que haya sido probado con buenas y sólidas razones”.

[2] Dizer liberdade de consciência é dizer liberdade de expressão e de ação.

[3] A liberdade religiosa é uma consequência ou aplicação da liberdade individual e se protege para que qualquer sujeito possa decidir se professa alguma religião ou não professa nenhuma (e para que possa viver em consequência) e, em seu caso, concorrer aos ritos ou práticas correspondentes, no que não resultem incompatíveis com a liberdade de todos e cada um e com a ordem pública mais básica. Entre outras coisas, porque a liberdade, a autonomia e/ou a vontade individual nesta vida é assunto mais sério que a complacência dos deuses, o capricho dos sacerdotes de qualquer credo ou o legítimo desejo que alguém tenha por fazer-se um espaço na vida eterna ao lado do Grande Chefe, com anjos, querubins ou virgens.

[4] Ignacio de Loyola dizia que o sarifício que mais agradava a Deus de todos os sacrifícios possíveis era o sacrifício do intelecto, quer dizer, a disciplinada e cega subordinação da razão à fé; o “creo a pesar de que es absurdo” ou precisamente “porque es absurdo”, como dizia Tertuliano. É o «sacrificium intellectus», «el sacrifizio dell’inteletto como le gustaba decir al vasco universal». Mas isto não é uma característica ou prerrogativa da religião católica. Não existe nenhuma religião viva que não exija de algum modo o sacrifício do primogênito do homem, a «Razão».


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España    


Imagem Ilustrativa do Post: Norway in Mourning // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ssoosay/5971049633 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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