“KILL ALL THE LAWYERS? A POLÊMICA QUESTÃO SOBRE HONORÁRIOS E LAVAGEM”

10/04/2021

Na clássica obra “Henry VI”, de Shakespeare, Dick, o açougueiro, sugeriu à Jack: “The first thing we do, let´s kill all the lawyers”.

Não raro, a vida imitar a arte. Aliás, Oscar Wilde foi certeiro ao afirmar que “a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”.

Muitos dizem, sobretudo os mais experientes, que nunca foi tão difícil advogar no Brasil, alertando ainda que a profissão está sobremaneira desvalorizada, seja no exercício do mister dentro do Poder Judiciário, seja na relação com a sociedade.

O que se desenvolverá neste artigo é apenas um vértice deste cenário, talvez o mais sensível, que é a criminalização da atividade profissional, direcionada ao recebimento de honorários advocatícios.

Em suma, os defensores da criminalização dos honorários fazem um silogismo, um raciocínio dedutivo, assim ilustrado: 1. A pessoa física ou jurídica X praticou alguma ilicitude, que a proporcionou uma renda, em tese, indevida; 2. X procura o advogado Y, pagando a este um determinado valor a título de honorários advocatícios; 3. Já que X obteve renda a partir de uma ilicitude, e Y recebeu um valor de X, logo os valores recebidos por Y também seriam ilegais.

A simplicidade deste pensamento, que trata as pessoas acusadas de ilicitude como verdadeiros leprosos, que onde tudo tocam, tudo se contamina, além de não resistir a uma rigorosa análise jurídica, externa uma verdadeira seletividade, quiçá um preconceito.

Ou será que os médicos, os engenheiros, os assessores de imprensa, os esteticistas, tatuadores, taxistas, dentre inúmeros outros, são acusados de praticarem lavagem de dinheiro, tão somente, por prestarem serviços a pessoas acusadas de ilegalidades? O suporto criminoso também compra roupas, carros, eletrodomésticos, come em restaurantes de luxo, corta o cabelo nos melhores salões, vai a academia, realiza consultas e procedimentos médicos, contrata serviços de limpeza para residência, faz obras, contrata serviços de conserto de automóveis e outros bens entre outras diversas outras condutas. Em síntese, goza de uma vida usual, excepcionando os ditames da suposta atividade criminosa.

No entanto, este não é o cerne do presente trabalho, que focará apenas na análise jurídica da questão.

Parte da doutrina alega que o advogado, ao proceder a defesa de supostos criminosos, e, em decorrência, não se opor a receber dinheiro a qualquer título, ainda que honorários advocatícios destes, estaria assumindo o risco de receber dinheiro o qual é produto de crime, assim o advogado estaria se materializando como um  “instrumento do crime”, servindo, desta forma, como um agente facilitador para a execução de ilícitos, podendo assim o patrono ser considerado coautor nos crimes de lavagem de dinheiro, nos moldes da Lei 9.613/98, e, nos demais delitos, estaria por praticar o injusto penal de receptação[1], pois estaria por receber, ocultar ou adquirir, coisa[2] que sabe ser produto de crime.

Neste sentido, expõe Mendroni:

“O advogado constituído para representação processual, que sabe ou deveria saber – assumindo o risco –, e recebe dinheiro a qualquer título, mesmo de honorários, produto de crime.

Parece intuitivo que o advogado não pode ser “instrumento” do crime, servindo de agente “facilitador” para a execução do crime. Se o advogado recebe dinheiro, mesmo que a título de honorários, que se sabe ou deveria saber ser produto de crime –, ele pode ser acusado de pratica de receptador, da mesma forma que o seria se recebesse um carro roubado – a título de pagamento de honorários.

A função de advogado não é “excludente de ilicitude”. Da mesma forma, se recebe dinheiro, bens ou valores – novamente, mesmo que a título de honorários –, e pratica qualquer das condutas previstas no artigo 1°, §§ 1° e/ou 2°, da lei 9.613/1998, ele pode ser acusado pela prática desses delitos.

Claro que o dever de sigilo profissional não o autoriza a praticar crimes e tampouco o impede de, como qualquer outra pessoa ou outro profissional, nas mesmas condições, evitar ou se negar a pratica-lo.

Não é difícil de imaginar a situação que o advogado recebe, por exemplo, R$ 2 milhões de seu constituído, - agente suspeito, a “títulos de honorários” – e depois, ficando com R$ 1 milhão, p.ex., (estes honorários efetivamente), devolve-lhe, por meio de qualquer mecanismo de lavagem, o outro R$ 1 milhão. Nessa situação, o agente utilizou o seu próprio advogado para lavar R$ 1 milhão – conduta evidentemente criminosa. Contudo, o dolo direito, ou indireto, se qual for, deve ser provado, nos termos da lei e por todas as provas admitidas em direito.”[3] (grifos)

O autor ainda cita como exemplo a Ação Penal 458 SP (2001/0060030-7), julgada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça em 16/09/2009, valendo transcrever os seguintes trechos da Ementa:

“I - O mero proveito criminoso do produto do crime não configura lavagem de dinheiro, que requer a pratica das condutas de ocultar e dissimular. Assim, não há que se falar em lavagem de dinheiro se, com o produto do crime, o agente se limita a depositar o dinheiro em conta de própria titularidade, paga contas ou consome os valores em viagens ou restaurantes.

II - No caso dos autos, entretanto, os valores foram alcançados ao suposto prestador de serviços de advocacia e, depois, foram simuladamente emprestados a empresas de titularidade de um dos denunciados. Sendo assim, ocultação da origem reside exatamente na simulação do empréstimo, que não seria verdadeiro, porque, na verdade, o dinheiro já pertenceria, desde o início, ao denunciado, responsável pela venda da decisão judicial, com a colaboração de outro denunciado.”

Mendroni ainda cita a jurisprudência estrangeira de Portugal, que por intermédio da lei n° 83/2017[4], obriga advogados, bancários, solicitadores, notários e outros profissionais liberais a denunciar clientes por suspeitas de lavagem de dinheiro, e também proíbem os supracitados de praticar atos que impliquem em seu próprio envolvimento em qualquer operação típica de branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo. Visto isso, a Ordem dos Advogados de Portugal (AO) se manifestou considerando que essa nova lei “é um sério ataque ao seu dever de sigilo” como profissionais. A OA defende que os advogados devem ser impedidos de ser “coparticipantes de delitos”, mas o Estado não pode transferir competências que cabem às autoridades judiciárias, incluídos nestes, o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal.[5]

Neste sentido, o Congresso Estado-Unidense tentou incluir a aplicação da teoria de cegueira deliberada, na forma do dolo eventual do advogado quando este não inquirir o cliente acerca da origem do dinheiro recebidos a título de honorários, inclusive, neste sentido foi um importante precedente do segundo circuito americano que declarou constitucional o confisco dos honorários advocatícios de advogados criminalistas recebidos de clientes condenados[6]. In verbis:

A defendant’s criminal defense counsel, who obviusly has read the indictment and discussed the chances with his cliente, could not convincingly argue, if his client were convicted, that he lacked notice that the money received in payment of his legal fees may have come from the proscribed rackteering activity. Counsel, awere the conviction of his client could result in the forfeiture of his fee, would be reluctant to handle such a case. Thus a defendant. Would be denied the opportunity to obtain counsel.[7]

O Brasil, como de costume, tentou reproduzir a tentativa do país norte-americano – que possui sistema Commum law – através do projeto de lei do Senado de nº 3443/2008[8], de autoria do então Deputado Federal Chico Alencar, que justifica o projeto ao passo que “na verdade, o pagamento de honorários advocatícios por criminoso, com recursos da atividade criminosa tem ao final o condão de levar o dinheiro que entra no mercado sem quaisquer vestígios de sua origem”.

Assim, o teratológico projeto busca ver punido o advogado que receba honorários advocatícios dos quais tem ou poderia ter (dolo eventual) conhecimento da origem ilícita dos recursos que o remunera, incluindo, desta forma, o recebimento de horários no tipo penal de lavagem de dinheiro sem quaisquer analise constitucional do direito de defesa e do Estatuto da Ordem, equiparando de modo singelo o advogado de boa-fé ao delinquente que lava dinheiro.[9]

Se, de fato, levarmos em consideração o projeto e a doutrina acima apontados, estaríamos por esvaziar por completo a advocacia criminal. Uma vez que, por mais que o advogado desconfie, não é possível ter a absoluta certeza de que o dinheiro recebido de forma justa e correta pela prestação de seus serviços seja fruto de atividades delituosas, visto que o acusado/réu pode ter uma fonte de renda legitima ou retirar a monta de outro local ou de outro indivíduo. Esse tipo de entendimento não passa de uma interpretação extensiva e obscura da lei.[10]

Sob outro prisma, que parece ser mais acertado, Pierpaolo Bottini alega que, o recebimento de honorários advocatícios maculados, de serviços realmente prestados e com regular emissão de nota fiscal, não há a caracterização do crime de lavagem de dinheiro.

O citado professor afirma que, em um primeiro momento, a conduta não contribui para mascarar o bem, uma vez que seu destino é conhecido, bem como não há intenção de simular ou ocultar, logo não é conduta típica, tendo em vista as balizas estabelecidas no art. 1°, caput e §§1° e 2. ° Neste caso, a intenção do advogado é simplesmente de receber formalmente a remuneração por seus serviços. Diferentemente seria a situação em que o advogado recebe os valores a título de honorários e devolve parte deles como suposto empréstimo ou pagamento de serviços inexistentes ao cliente, neste último caso, restaria configurado o ato de dissimulação, ficando assim caracterizado o crime de lavagem de capitais.[11]

Pierpaolo cita ainda uma jurisprudência alemã, do Tribunal Superior de Hamburgo (oberlandesgerichtI de Hamburgo de 06.01.2000), que entendeu não haver lavagem de dinheiro no caso de advogado acusado de receber honorários oriundos do tráfico de drogas para defender um cliente, em virtude do adequado exercício de defesa por parte do profissional.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre o tema, no julgamento do REsp nº 1746470/DF, no qual os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade[12], firmaram o seguinte entendimento, ilustrado no riquíssimo voto do Ministro Nefi Cordeiro:

“Resta em exame o imputado crime de lavagem de capitais. Ocorre que a denúncia indica a lavagem por atuação do recorrido como advogado, ainda que de modo intermediário e em favor de indicado encobrimento de outros. Nesse limite, tem-se tão só atuação com merecidos honorários.

Imprescindível seria à denúncia indicar o dolo, como apontou a Corte local mas, ademais, para que a atuação como advogado pudesse configurar o crime de lavagem deveria a denúncia especificar que em verdade não era o dinheiro do crime por inteiro destinado ao pagamento do advogado (que repassaria valores adicionais).

(...)

Não há imputação de pagamento além de honorários já dos valores recebidos (e não a serem usados) por corrupção. Indica-se socialização dos lucros ao advogado paciente, fala-se em 2,5% de honorários iniciais previstos no contrato firmado entre as partes, tudo ligado ao pagamento de serviço advocatício - que a denúncia admite ter sido realizado pelo recorrido - mas não a dissimulação de dinheiro do crime.

(...)

Assim, não há mínima indicação de que sabia o recorrido atuar no encobrimento de valores obtidos por corrupção (o que se indica é encobrimento de valores para corrupção ainda em execução), nem sequer de específicos atos de ocultação ou dissimulação - a tanto não servindo o pagamento de honorários pelo serviço advocatício prestado.

Acresce o acórdão recorrido que, no que se refere ao suposto crime de lavagem de dinheiro, os valores relativos às movimentações financeiras apontadas na denúncia (relativos à repartição de honorários advocatícios), tidas como caracterizadoras desse suposto delito, foram, ao que se retira das mensagens utilizadas pelo Ministério Público, todos declarados à autoridade fiscal competente, com identificação da origem e da destinação de cada valor recebido e movimentado, o que não condiz com a afirmação da acusação de que teria havido, em relação a esses valores, dissimulação ou ocultação (fl. 646).

Correto, pois, o trancamento de ação penal que imputa lavagem de dinheiro pelo recebimento de valores para a prática de crime (corrupção) ou como honorários - mas jamais como forma subreptícia de repasse dos valores da prévia corrupção.”

Os trechos do voto acima transcrito são de riqueza ímpar e encontram-se em consonância com o melhor entendimento doutrinário sobre o tema, concluindo que, independentemente de quem paga os honorários advocatícios, se é uma pessoa física ou jurídica, investigada, condenada ou não pela prática de ilícitos, desde que o advogado declare à autoridade fiscal competente, com identificação da origem e destinação de cada valor recebido, inexiste crime de lavagem de dinheiro, mas tão somente o legítimo exercício da honrada profissão de advogado.

Isso ocorre, já que, ao analisar o dolo na conduta do advogado ao receber os honorários, ou demais verbas, decorrentes da remuneração de seus serviços prestados. Resta cristalina a evidente a ausência de liame subjetivo do advogado, principalmente no que tange ao elemento volitivo. A vontade do advogado, após realizar seus serviços, é pura e simplesmente de receber a remuneração que se refere a prestação destes, tal como qualquer outro profissional.

Tal solução ainda se torna mais complexa ainda ao se referir nos crimes empresarias, especialmente nos crimes de lavagem de dinheiro, cujo o capital é misto[13], ou seja, há bens lícitos provenientes da atividade empresarial e ou exercida pelo agente, e bens ilícitos, produto de injustos penais.

Há quem argumente que não há violação do Princípio da Ampla Defesa, ao passo de que os advogados poderiam atuar sem cobrar – pro bono – ou o réu poderia ter a sua defesa técnica composta por um advogado dativo ou defensor público[14]. Esse entendimento não merece prosperar, ao passo de que a ampla defesa não consiste somente em ter um defensor, mas sim um defensor de sua escolha e confiança.[15]

Carlos Gómes-Jara conclui pela não possibilidade da aplicação do dolo eventual e da cegueira deliberada para condenar o advogado, visto que os honorários recebidos por este último se presumem de boa-fé.[16]

Por essa ótica, a doutrina estrangeira pauta pela prevalecia do direito do direito de ampla defesa, devido processo legal e presunção de inocência sobre a incriminação do advogado prestador de serviço essencial à justiça. Como corretamente expõem André Luiz Callegari e Ariel Barazzeti Weber.

Nesse sentido, utiliza-se a doutrina estrangeira a chamada “causa de justificação”. Tal teoria nada mais é que do que o reconhecimento da preponderância do direito de ampla defesa, devido processo legal e presunção de inocência quando contraposto à incriminação da conduta do advogado que preta serviço indispensável à justiça. Kai Ambos refere que a teoria da justificação está para os advogados tal qual a legitima defesa está para os agentes em geral, e parece ser a opção mais adequada sob o ponto de vista político-criminal.[17]

Não menos importante, confere-se também que a vontade do próprio legislador, materializada na lei, não quis a punição dos honorários bona fides. Naturalmente que tal predisposição só se aplica nos casos onde o advogado recebe o pagamento justo pelos seus serviços evidentemente prestados.[18]

Parece ser mais adequada a compreensão de que, o advogado somente poderá responder por lavagem de dinheiro caso ele esteja na condição de coautor ou partícipe do injusto penal. Ou seja, quando ele, de alguma maneira, participa, de forma material ou intelectual com intuito de que este crime seja consumado.

O entendimento de que o advogado, ao defender supostos criminosos, assume o risco de receber qualquer verba – inclusive honorários – produto de crime, não merece prosperar por diversos motivos expostos a seguir.

Diante do exposto, não resta outra saída a não ser analisar o dolo na conduta do advogado ao receber os honorários, ou demais verbas, decorrentes da remuneração de seus serviços prestados. Resta cristalina a evidente a ausência de liame subjetivo do advogado, principalmente no que tange ao elemento volitivo. A vontade do advogado, após realizar seus serviços, é pura e simplesmente de receber a remuneração que se refere a prestação destes, tal como qualquer outro profissional.

Não obstante, o advogado não é, e nem pode ser um policial encoberto sob o manto de sua profissão impor que o advogado pressuponha a origem ilícita dos valores recebidos por seus serviços vai além das funções que a função lhe outorga, que é exercer a defesa técnica do acusado no âmbito criminal. A atuação do advogado é pautada pelo princípio da confiança, sendo absolutamente desmedida a presunção de que todo o patrimônio do réu em processo penal é advindo de prática delitiva – a qual o advogado não tem como supor – tal presunção é uma preocupante agressão ao princípio da presunção de inocência[19], o qual é evidentemente incompatível em um Estado Democrático de Direito.

Cumpre salientar a extrema complexidade dos crimes financeiros/econômicos em decorrência de sua opacidade – crimes “entre quatro paredes”, “in the suits” –, se tratando de crimes que pouquíssimas pessoas (normalmente de elevada capacidade técnica) têm conhecimento. Não é por outro motivo que dispositivos legais, especialmente a lei 12.850/2013, prevê mecanismos especiais de meios de obtenção de prova, tais como: ação controlada, agentes infiltrados, interceptação telemática, colaboração premiada, dentre outros. Ora, se o Estado, com todo seu aparato humano e material, por si se assume hipossuficiente para solucionar tais delitos e definir o que, de fato, é produto de crime, imagine então um profissional liberal, ter que fazer uma espécie de exercício de “adivinhação” para tentar decifrar se tal capital é lícito ou não.

Isso também ocorre, pois, o objetivo da lavagem de capitais é integralizar um capital sujo, “mascarado” e ocultado,[20] a fim de dar aparência lícita a este. Com isso, após a consumação “completa”[21] das três fases do delito, fica muito difícil separar o que seria capital lícito e ilícito. É natural nos delitos de lavagem de dinheiro que o dinheiro ilícito se mescle, se misture, com o capital lícito, fazendo com que todo o capital tenha aparência lícita.

Tanto é verdade que, em inquéritos ou processos penais que tratam sobre lavagem de dinheiro, devida a imensa confusão patrimonial causada por estes crimes, as medidas cautelares muitas das vezes sequestram (Art. 4° do DL 3240/41) e ou bloqueiam um valor acima do que supostamente foi proveito de infração criminosa, fazendo com que o Estado proceda a uma espécie de “inversão do ônus da prova” em face do acusado, para que este comprove que o valor bloqueado é excedente visto a licitude daqueles bens. 

Hipoteticamente, como definir o que é capital lícito ou ilícito no caso de uma empresa renomada, que teve um dos sócios condenados por lavagem de capitais, mas continua exercendo atividade empresária? Ou ainda quando não se teve condenação, o processo ainda está em curso, mas a atividade empresária segue desimpedida pelo juízo, deveria então todos se evadirem de contratar serviços desta última sob o argumento de que estariam “deixando de cometer crime”? É preciso alertar que a lei 9.613/98 não prevê o crime de lavagem de dinheiro na modalidade culposa.

Entendemos que o profissional liberal, principalmente o advogado, não tem domínio do fato da conduta praticada por seu cliente, e, em regra, sequer tem ciência e a expertise para desvendar o que seria capital lícito e o que seria capital “sujo”, dada a tamanha complexidade, tendo em vista que o conhecimento da origem do dinheiro não é perceptível para qualquer um e, também, não deve ser uma informação obrigatória para o exercício da advocacia, assim, conhecer a origem do dinheiro, supondo que todo o patrimônio do acusado carece de licitude, excede a um saber necessário daquele constituído ou contratado para o serviço.[22]

Ademais, a conduta do advogado se configura como uma ação neutra ou cotidiana, definida por Luís Greco como “a participação criminal a fato típico alheio não manifestamente punível”[23]. Com isso, as ações neutras carecem de sentido delitivo, pois, não tem como objeto o favorecimento a um injusto alheio, em que pese a sua ação possa ter efeito secundário na consecução do ilícito criminal pelo autor principal.[24]

Isso ocorre porque a conduta do patrono ao recolher os valores devidos em virtude de seus serviços não tem como finalidade, tampouco vontade, de concorrer para o delito, mas sim, receber os honorários e demais remunerações em contraprestação a seus serviços prestados, com a devida emissão de nota fiscal, recolhimento de tributos – e consequentemente informar as autoridades do recebimento daquela verba – sendo assim, inócua sua conduta. Além disso, qualquer um dos mais de 1 milhão de advogados brasileiros[25] poderia fazê-lo. O suposto autor então não terá grandes dificuldades para contratar outro profissional, posto que o procedimento aqui indagado está dentro dos limites de normalidade e cotidianidade da vida.[26] Prevalece o princípio da idoneidade ou adequação da pena (individualização e personalidade da pena).

Ademais, o advogado, ao negar receber dinheiro em espécie por seus serviços, estaria por praticar a contravenção penal de Recusa de Moeda de Curso Legal, n/f do art. 43 da lei de contravenções penais.

É possível aqui, hipoteticamente, trazer o exemplo do padeiro que se nega a vender o pão – o qual, posteriormente, será utilizado para envenenar outro indivíduo – ele somente postergará o delito, uma vez que o agente poderá adquirir o mesmo pão em outra padaria, com um padeiro menos esclarecido. Afinal, ele apenas facilitou um resultado que provavelmente iria ocorrer, independentemente do pão utilizado e da padaria que o vendesse[27]

Porém, se de forma utópica, nenhum advogado pudesse defender os réus em litígios, especialmente as ações penais e demais desdobramentos, por apenas suporem que parte do capital deste último poderia, de alguma forma, ser ilícito, estaríamos por limitar o exercício da advocacia, e do direito do representado no que tange ampla defesa (Art. 5º, LV, LXIII e LXXIV da CRFB)[28], de maneira que restringiria o direito de livre escolha do defensor por parte do réu ao obrigá-lo unicamente a contratação de advogado dativos, ou, ter sua defesa realizada por um Defensor Público.

Neste panorama, cabe aqui trazer uma analogia no que se refere às ações neutras. Responsabilizar o advogado por receber honorários pela defesa técnica de um réu, de um suposto crime (só considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado), por uma suposta aparência de ilicitude, se equivale à imputar um fabricante de arma por homicídio, na hipótese de que o artefato foi utilizado para a consecução de um assassinato, ou, de um vendedor de bebidas alcoólicas pelo cometimento de crimes por seus clientes na direção de veículos automotores[29], ou ainda de um chaveiro que compõe uma chave que posteriormente é utilizada em um furto. Ao responsabilizar penalmente estes, estaríamos por aplicar uma espécie de responsabilização “ad infinitum” – vedada em nosso ordenamento –, já que, dada a ausência de dolo e facilidade de substituição dos agentes, a conduta se retirada da cadeia causal é irrelevante, é neutra, é um indiferente penal, sendo aplicado, desta forma, a proibição ao regresso e o princípio da insignificância.

Neste sentido, corretamente pauta José Danilo Tavares Lobato:

Os tipos penais indicam formas de comportamento que transcendem ao ordenamento jurídico da vida social, Welzel expõe, por exemplo, que a realização do coito é ato completamente adequado a vida social, salvo se a sua ocorrência se der sob circunstâncias especiais, como em relação de parentesco que leve a incesto ou no caso de inexistir consentimento.

Existe adequação social na prática de tal conduta, pois ela se move dentro do âmbito da normalidade e da ordem social da vida historicamente constituída. Ainda que a mesma provoque lesão a bem jurídico, nenhum tipo penal será formado.

É o que ocorreria se um homem realizasse sexo com uma mulher tuberculosa ela morresse em razão de sua saúde não suportar o esforço, uma vez que, além de ser tuberculosa, ela ainda estava grávida. Solução semelhante é dada por Welzel, ao caso do sobrinho que, com fito de receber previamente uma herança, estimula o tio a utilizar certo meio de transporte, na expectativa de que possa ocorrer um acidente fatal e, assim, o seu tio perca prematuramente a vida. Ainda que, ocasionalmente, o sobrinho tenha seu desejo realiado, o tipo penal de homicídio não estará constituído, pois a conduta do sobrinho foi socialmente adequada.[30]

Entender de forma diversa seria imputar ao advogado uma responsabilidade objetiva, visto que estar-se-ia recorrendo à uma responsabilização ao regresso ao imputar uma conduta criminosa àqueles que o crime “física e psiquicamente” não poderia ter evitado o curso da ação ou omissão e não participaram do sentido objetivo deste,[31] trazendo, assim, a criação de cadeias de causas ilimitadas, e, por consequência, uma enorme insegurança jurídica.

Difere-se deste paradigma, por obvio, a conduta do advogado que recebe “honorários simulados ou fingidos” ou tem pleno conhecimento acerca da origem delitiva da verba a qual irá receber.[32] De tal sorte, o advogado não é garante dos crimes que possivelmente terceiro cometeu, está cometendo ou irá cometer.

Assim, impecavelmente aduz Geraldo Prado:

“Os advogados que cometem crimes devem ser investigados e punidos, mas isso não se confunde com a incriminação de condutas inerentes à advocacia, estratégia ilícita que persegue a punição de crimes pela via da redução do âmbito normativo do exercício profissional de atividade essencial à Justiça e pela conversão de advogados em agentes encarregados de reforçar a vigilância e castigo das pessoas que recorrem a eles.”[33]

Logo, é certa e inadiável a necessidade de se combater os crimes de natureza global, como a lavagem de dinheiro, contudo, não é possível, em hipótese alguma, dirimir direitos e garantias fundamentais, conquistados com muito sangue e suor, sob pena de retroceder a tempos sombrios pautados por um sistema jurídico penal inquisitorial.

Afinal, quando Dick, o açougueiro, se ver envolvido nas garras de acusações judiciais, indevidas ou não, a quem ele irá recorrer?

 

 

Notas e Referências

AMBOS, Kay. El penalista liberal: libro homenaje a Rivacoba y Rivacoba. Buenos Aires, 2004.

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpalo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais; comentários a lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012. – 4. ed. rev., atual. e ampl; - São Paulo: Thompson Reuters Brasil.

CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017.

FERNANDES, Miguel Bajo; BAGACIGALUPO, Silvina. Política criminal y blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2009.

GARCÍA, Maria José Cuenca. Reflexones sobre los actos neutrales y la cooperación delictiva desde los critérios de la imputación objetiva (comentário a la SAP Barcelona, Séccion 2º, 728/2002, de 25 de Julio). Revista Penal, n.º 32, Barcelona, Espanha: julho/2013

GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras – a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro:ed. Renovar, 2004.

LEMOS, Marcelo Augusto Rodrigues de. Ações neutras em direito penal: a perspectiva do cúmplice em crimes de lavagem de dinheiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria geral da participação criminal e ações neutras: uma questão única de imputação objetiva. 1º ed. Curitiba: Juruá,2010.

MANZANO, Mercedes Pérez. Los derechos fundamentales al ejercicio de la profesión de abogado, a la libre elección de abogado y a la defensa y las “conductas neutrales”. La sentencia del tribunal constitucional alemán de 30 de marzo de 2004. Homenaje al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo, Madrid.

MCCAY, Frank. Forfeiture of attorney’s Fess Under RICO and CCE. Fordham Law Review. Disponível em: <http://tinyurl.com/bkvuv8>. Acesso em 03 de fev. 2020

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro – 4. Ed. Ver., atual. E ampl – São Paulo: Atlas, 2018

PRADO, GERALDO. Ações neutras e a incriminação da advocacia. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/acoes-neutras-e-a-incriminacao-da-advocacia>. Acesso em 13 de fev. 2020

[1] Art. 180, Código Penal - Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:           

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. 

[2] Abstrato, como exemplo: celular, dinheiro, carro, bens em geral.

[3] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro – 4. Ed. Ver., atual. E ampl – São Paulo: Atlas, 2018. P.262.

[4] Lei n° 83/2017 de 18 de agosto. Artigo 4°.

Entidades não financeiras

I – Estão sujeitas às disposições da presente lei, nos termos constantes do presente artigo, com exceção do disposto no capítulo XI, as seguintes entidades que exerçam atividades em território nacional: (...)

O advogado, solicitadores, notários e outros profissionais independentes da área jurídica, constituídos em sociedade ou em pratica individual.

[5] MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro – 4. Ed. Ver., atual. E ampl – São Paulo: Atlas, 2018. P.263.

[6] CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017. P. 212.

[7] MCCAY, Frank. Forfeiture of attorney’s Fess Under RICO and CCE. Fordham Law Review. Disponível em: <http://tinyurl.com/bkvuv8>. Acesso em 03 de fev. 2020

[8] Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0b9f7f72c83ebc0863a595fd1624abd9.node2?codteor=934298&filename=tramitacao-pl+3443/2008>. Acesso em 04 fev. 2020

[9] CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017. P. 213.

[10] CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017. P. 213.

[11] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpalo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais; comentários a lei 9.613/1998, com as alterações da lei 12.683/2012. – 4. ed. rev., atual. e ampl; - São Paulo: Thompson Reuters Brasil. P.197- 199.

[12] A Ministra Laurita Vaz não participou do julgamento, por estar impedida.

[13] CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017. P. 211.

[14] Idem, P. 213

[15] AMBOS, Kay. El penalista liberal: libro homenaje a Rivacoba y Rivacoba. Buenos Aires, 2004. P. 87

[16] FERNANDES, Miguel Bajo; BAGACIGALUPO, Silvina. Política criminal y blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2009. P 189.

[17] CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro – 2. ed. rev., atual. e ampl – São Paulo: Atlas, 2017. P. 214.

[18] Idem, ibidem.

[19]  Art. 5º, inciso LVII da CF/88: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

[20] 3°, 2° e 1° fase da lavagem de dinheiro

[21] A lavagem como tipo penal misto alternativo pode se consumar com qualquer uma das três condutas descritas no tipo penal.

[22] MANZANO, Mercedes Pérez. Los derechos fundamentales al ejercicio de la profesión de abogado, a la libre elección de abogado y a la defensa y las “conductas neutrales”. La sentencia del tribunal constitucional alemán de 30 de marzo de 2004. Homenaje al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo, Madrid. P. 789-935.

[23] GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras – a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro:ed. Renovar, 2004, p. 110.

[24] GARCÍA, Maria José Cuenca. Reflexones sobre los actos neutrales y la cooperación delictiva desde los critérios de la imputación objetiva (comentário a la SAP Barcelona, Séccion 2º, 728/2002, de 25 de Julio). Revista Penal, n.º 32, Barcelona, Espanha: julho/2013

[25] Disponível em: <https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados>.

[26] LEMOS, Marcelo Augusto Rodrigues de. Ações neutras em direito penal: a perspectiva do cúmplice em crimes de lavagem de dinheiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 112

[27] Lobato, José Danilo Tavares. Teoria geral da participação criminal e ações neutras: uma questão única de imputação objetiva. 1º ed. Curitiba: Juruá,2010. P. 33-38

[28] LEMOS, Marcelo Augusto Rodrigues de. Ações neutras em direito penal: a perspectiva do cúmplice em crimes de lavagem de dinheiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.  p.105-108.

[29] Idem, p. 45-46

[30] LOBATO, José Danilo Tavares. Teoria geral da participação criminal e ações neutras: uma questão única de imputação objetiva. 1º ed. Curitiba: Juruá,2010. P. 33-38

[31] CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Brazzeti. Lavagem de dinheiro. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2014. P. 203-204

[32]LEMOS, Marcelo Augusto Rodrigues de. Ações neutras em direito penal: a perspectiva do cúmplice em crimes de lavagem de dinheiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.p.104

[33] PRADO, GERALDO. Ações neutras e a incriminação da advocacia. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/acoes-neutras-e-a-incriminacao-da-advocacia>. Acesso em 13 de fev. 2020

 

 

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