Juventudes indígenas no Brasil: dados estatísticos, Covid-19 e demandas políticas

05/04/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

No Brasil, o censo populacional de 2010 apresentou uma análise da população indígena por faixas etárias. Em número absoluto, a população indígena foi inicialmente computada em 817.963 pessoas, mas o IBGE, “agregando-se aquelas pessoas que não se declararam indígenas no quesito cor ou raça, mas se consideraram indígenas captadas dentro das terras indígenas”[1], e consolidou a quantidade em 896.917 pessoas.

Num recorte apenas das faixas etárias legalmente definidas como de juventude (15 aos 29 anos), os dados demográficos dos povos indígenas indicam um quantitativo de 27,05% de população juvenil, correspondendo a 221.258 pessoas. É dizer, de cada 3,6 pessoas indígenas uma é jovem. Quanto à distribuição por gênero, a população total de homens jovens corresponde a 27,5%, enquanto no total de mulheres o recorte juvenil corresponde a 26,7% das mulheres indígenas.

Sobre estes números, consideramos importante relativizá-los pela ótica da pluralidade cultural dos povos indígenas, representados, no Brasil, por 305 etnias, falantes de 274 línguas, e que compreende um mosaico de diversidade étnica que repercute diretamente na complexidade das construções socioculturais da juventude e dos critérios de definição do que é “ser jovem”, não restrito unicamente ao parâmetro etário. 

Estes dados censitários estão defasados e o adiamento, por dois anos seguidos, da realização de um novo censo nacional, por decisão do governo federal, dificulta uma visualização atualizada da configuração demográfica das juventudes indígenas no Brasil. Ao mesmo tempo, há dados desagregados da presença juvenil indígena em determinadas políticas públicas, mas não atualizadas após o início a pandemia.

Um deles é no âmbito da educação superior. O cálculo mais atualizado, do Censo da Educação Superior de 2019, indica a presença de 60.226 estudantes indígenas[2] (ou 0,7% do total de pessoas matriculadas, ou seja, 8.603.824), quantitativo 4% maior do que o apurado no Censo anterior, de 2018, em que foram identificados 57.706 indígenas nas instituições de ensino superior. Em nenhum dos censos há a identificação de dados desagregados por idade, apenas no Censo de 2018 houve a delimitação de que 15.450 (ou 26,7%) indígenas estão matriculados em universidades públicas e 42.256 (ou 73,3%) em privadas. A grande maioria dos/das estudantes indígenas estão inseridas na faixa etária correspondente à juventude[3] e são predominantemente do gênero feminino[4].

Desde 2002 o Brasil conta com políticas de ações afirmativas para ingresso de representantes indígenas no ensino superior, a qual foi consolidada, nacionalmente, por meio da Lei n. 12.711/2012, expandindo progressivamente a quantidade de vagas. Os problemas atuais são da ordem da permanência dos estudantes indígenas. O governo brasileiro possui o Programa Bolsa Permanência que atende estudantes indígenas e quilombolas, mas a oferta tem sido aquém do quantitativo real e mesmo as pessoas já inseridas tem dificuldade de assegurar a renovação. Acrescente-se que, com a pandemia da Covid-19, uma parcela significativa de estudantes indígenas retornou para seus povos/territórios de origem e tiveram dificuldades adicionais de conseguirem participar do ensino remoto. Tais questões podem resultar em um aumento da desistência acadêmica. Por outro lado, após a conclusão dos cursos de graduação, existe a dificuldade da baixa presença de políticas afirmativas de recorte étnico no mercado de trabalho, basicamente existentes nas políticas educacionais e de saúde indígenas, mas que precisam ser ampliadas para outros setores laborais, ainda que não haja uma identificação censitária do quadro de empregabilidade de indígenas graduados/as.

No campo das condições de saúde das juventudes indígenas no Brasil, é necessário fazer duas análises. A primeira, diz respeito ao grave quadro de violência autoinfligida que afeta prioritariamente as juventudes em contextos indígenas. Em relação ao suicídio de pessoas indígenas, dados levantados entre 2000 e 2019 junto ao Ministério da Saúde apontam que os estados do Mato Grosso do Sul (894), Amazonas (302) e Roraima (68) concentram 90% do total de casos cadastrados[5]. As situações mais drásticas ocorrem no povo Guarani Kaiowá, no estado do Mato Grosso do Sul, que entre os anos de 2000 e 2019 apresentou uma média de 45 casos de suicídio por ano, sendo depois seguido por casos existentes no povo Tikuna, no estado do Amazonas, mas em proporções menores.

A maior parte dos sujeitos envolvidos em atos de suicídio são jovens indígenas. Dentre os motivos estão: insegurança territorial; precárias condições de vida; uso abusivo de álcool e drogas ilícitas; conflito psicológico ante o avanço de igrejas evangélicas; e, discriminação sofrida dentro ou fora da comunidade devido a condição de migrante para contextos urbanos ou retornados/as. Em 2019, o governo federal lançou uma campanha de valorização da vida e combate ao suicídio entre povos indígenas[6], com foco prioritário nas juventudes, no período do Setembro Amarelo (mês de prevenção ao suicídio).

Em relação aos impactos da pandemia da Covid-19 para as juventudes indígenas, cabe ressaltar que o primeiro caso, oficialmente reconhecido, de pessoa indígena infectada pelo novo coronavírus no Brasil foi de uma jovem do povo Kokama, de 20 anos, atuando como Agente Indígena de Saúde, no Amazonas, no dia 8 de abril de 2020, sendo que muitos outros profissionais indígenas de saúde, atuando na linha de frente do combate à Covid-19, foram infectados devido a negligência estatal na oferta de equipamentos individuais de saúde e no controle sanitário para acesso às terras indígenas[7].

No geral, até 28 de setembro de 2021 houve a apuração de 1.209 vidas indígenas perdidas, 59.462 pessoas indígenas infectadas e 163 povos indígenas afetados, segundo dados apurados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. Estes dados divergem do sistematizado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), pois esta trabalha unicamente com casos de óbito e infecção no contexto das terras indígenas oficialmente reconhecidas, o que gera uma grande invisibilidade para com a população indígena em contexto urbano e em territórios étnicos não demarcados e/ou titulados pelo Estado, com especial impacto para as juventudes indígenas, sobretudo no espaço urbano.

O Boletim Epidemiológico n. 404 da SESAI[8] indica a existência de 813 óbitos em decorrência de agravamentos da Covid-19 e estabelece a seguinte distribuição etária:

Fonte: SESAI, em 28 set. 2021.

Percebe-se que a partir dos 20 anos a quantidade de situações de óbito envolvendo jovens indígenas já se torna mais relevante. Porém, o período da faixa etária (20 a 39 anos) acaba prejudicando uma análise mais detida na condição juvenil. Por outro lado, existe uma carência de dados sobre as vulnerabilizações sofridas por jovens indígenas em decorrência da pandemia e das medidas de enfrentamento. Isto poderia ter ocorrido no relatório Juventudes e a Pandemia do Coronavírus, lançado em maio de 2021, de cuja pesquisa participaram 68.114 jovens de todo o país, sendo 1% deles autoidentificados como indígenas[9], mas a maior parte dos dados foi aglutinado na categoria de “juventudes rurais”, ocasionando a invisibilidade das juventudes indígenas e de suas especificidades.

Desde março de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) instituiu um grupo de trabalho denominado “Crianças e Jovens Indígenas em Situação de Vulnerabilidade”, regulamentado pela Portaria n. 869/2021 – MMFDH. Este espaço tem sido muito criticado devido a exclusão de representantes indígenas na composição dos seus integrantes e nas reuniões realizadas, além de possuir uma tendência conservadora no tratamento da questão, sobretudo sobre o suposto infanticídio indígena.

Por último, quanto às demandas das juventudes indígenas. Necessário indicar que muitos jovens indígenas têm atuado de maneira organizada e ativa nas mobilizações indígenas, em especial no Acampamento Terra Livre e na Emergência Indígena. Por isso, possuem o compromisso militante com as lutas pela garantia dos direitos coletivos dos povos indígenas, como são a terra, a consulta prévia e a proteção ambiental. Hoje, existem duas organizações de atuação nacional, a Comissão Nacional da Juventude Indígena e a Rede de Juventude Indígena, as quais têm promovido a articulação política e a incidência das demandas das juventudes indígenas. Dentre as principais demandas, estão: o repúdio da criminalização dos movimentos sociais, em especial de lideranças jovens indígenas; o reconhecimento da diversidade da juventude indígena na construção da incidência nos espaços de tomada de decisões; e, a valorização dos profissionais indígenas que atuam em diversas áreas, como na ambiental, saúde e educação[10].

Estas demandas são de grande desafio de incidência nas políticas públicas, visto o perfil anti-indígena do atual governo federal e das dificuldades de participação de representantes indígenas em espaços deliberativos. Porém, as mobilizações juvenis indígenas continuam a ocorrer, com uma maior eficácia de atuação junto à organismos internacionais, como a Organização Pan-americana de Saúde[11], e na composição com outros segmentos juvenis, como a recente articulação entre estudantes indígenas e quilombolas para a criação do Fórum de Educação Superior Indígena e Quilombola[12].

 

Notas e Referências

[1] Cf. IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro: IBGE, 2012, p. 54.

[2] Cf. MEC; INEP. Resumo técnico do Censo da Educação Superior 2019. Brasília: MEC; INEP, 2021.

[3] Cf. CINEP. Esboço de um perfil do estudante indígena no ensino superior no Brasil. Em: LUCIANO, G. J. S.; OLIVEIRA, J. C. Jô; HOFFMANN, M. B. (orgs.). Olhares indígenas contemporâneos. Brasília: Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, p. 204-259, 2010.

[4] Cf. OLIVEIRA, A. C. Ações políticas de jovens indígenas para territorialização intercultural da universidade: análise etnográfica do Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas. Abya Yala - Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, 3(1), pp. 148-180, 2019. Doi: https://doi.org/10.26512/abyayala.v3i1.24630

[5] Cf. RANGEL, L. H. Violência autoinfligida: jovens indígenas e os enigmas do suicídio. Em: CIMI. Relatório violência contra os povos indígenas no Brasil – Dados de 2019. Brasília: CIMI, pp.  43-50, 2020.

[6] Cf. https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2019/09/17/campanha-de-valorizacao-da-vida-damares-ministerio-da-saude.htm

[7] Cf. APIB. Nossa luta é pela vida: Covid-19 e Povos Indígenas – O enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: APIB; Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, 2020.

[8] Cf. MS; SESAI. Boletim epidemiológico n. 404. Brasília: SESAI, 2021.

[9] Cf. CONJUVE. Relatório nacional juventudes e a pandemia do coronavírus. Brasília: CONJUVE, 2021.

[10] Cf. Combate Racismo Ambiental. III Seminário Nacional de Juventude Indígena: Carta ao Estado Brasileiro e Organismos Internacionais, 16 nov. 2016. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2016/11/16/iii-seminario-nacional-de-juventude-indigena-carta-ao-estado-brasileiro-e-organismos-internacionais/

[11] O produto desta incidência é o Plano de Saúde para a Juventude Indígena de América Latina e do Caribe, cujo conteúdo pode ser acessado em: https://www.paho.org/es/documentos/plan-salud-para-juventud-indigena-america-latina-caribe-2017

[12] Cf. https://enei-evento.com.br/

 

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