Justificativas teóricas para a implementação dos Juizados Especiais Criminais no Brasil – Por Jorge Coutinho Paschoal

03/03/2016

O Direito Processual Penal é o instrumento mediante o qual pode ser exercido o poder punitivo estatal (Direito Penal), no qual reside a mais delicada (senão questionável) medida que o Leviatã dispõe em face do cidadão: a restrição ou a privação da liberdade.

Por isso, desde há muito, vem-se tentando restringir a incidência do Direito Penal, com o seu estudo científico, bem como devidamente balizado por regramentos constitucionais e legais, visando-se restringir a sua ingerência indevida, tendo o Direito Processual Penal também conferido a sua grande contribuição para tanto, na medida em que serve de freios à sanha investigatória e punitiva.

Nesse sentido, ganhou força entre nós, mormente na década de 90, o discurso de que, em vez de se procurar resolver o conflito por meio de um processo moroso (e, diga-se de passagem, penoso já em si), com diversas cerimônias degradantes, e com a possibilidade da tomada de uma série de medidas invasivas e restritivas do direito à liberdade, antes se tentar, pelo menos para as infrações de menor gravidade, resolver o caso pelo diálogo  entre partes envolvidas.

A vítima poderia obter, desde logo, alguma reparação pelos danos decorrentes do ilícito, enquanto o imputado poderia ter certas vantagens, como o arquivamento imediato do procedimento persecutório[1], a declaração da extinção de sua (suposta) punibilidade ou a aplicação de uma sanção mais branda, a princípio sem um caráter tão estigmatizante.

Começaram a ganhar voz, portanto, os reclamos quanto à adoção de uma justiça penal consensual - também denominada por justiça negociada -, que viria ao encontro dos ditames de um modelo de Direito Penal Mínimo. A abertura para o consenso, em Direito Penal, implicaria, portanto, uma mudança de mentalidade, levando a novos horizontes.

Segundo pontua Antônio Scarance Fernandes, a abertura a zonas de consenso decorreu da “inegável aceitação da visão realista de que não é possível instaurar inquéritos e processos de todas as infrações comunicadas às autoridades”[2].

A Constituição da República de 1988, nesse diapasão, deixou aberta a possibilidade para o consenso em seara penal, conforme artigo 98, I, a qual foi concretizada pelo legislador infraconstitucional, cujo anteprojeto redundou com a edição da Lei 9.099/95.

A norma veio a prever quatro institutos “despenalizadores”, quais sejam: (i) a transação civil, sendo causa extintiva de punibilidade nas infrações de iniciativa privada ou pública condicionada à representação (art. 74); (ii) a proposta de transação penal (ou aplicação imediata de pena não privativa de liberdade)(art. 76); (iii) a representação para os crimes de lesões corporais culposas ou leves (art. 88); (iv) a previsão da suspensão condicional do processo para as infrações penais cuja pena mínima não ultrapasse a 1 (um) ano (art. 89)

Os propósitos, por certo, foram dos mais nobres, dadas as disposições do texto legal, que, sopesadas as distorções do cotidiano forense, inovaram em diversas passagens.

Entre os pontos positivos listados por parte da doutrina mais entusiasta da referida lei, estão os seguintes: (a) procurar-se-ia evitar a prolongamento de processos, acarretando, assim, um descongestionamento da Justiça, propiciando que o Estado direcione o seu aparato para a resolução de casos mais graves[3]; (b) o número de recursos tenderia a ser reduzido[4], uma vez que a decisão advém do consentimento das partes; (c) evitar-se-ia a ocorrência da prescrição estatal para casos com penas brandas[5]; (d) à vítima se conferiria uma maior papel e participação no processo penal, inclusive com a possibilidade de que os danos decorrentes do ilícito sejam, desde logo, reparados; (e) com um processo mais célere e informal, haveria a resolução do caso, efetivamente, em um prazo razoável[6].

Implementou-se, entre nós, o que Manuel da Costa Andrade designa por “diversão”[7], ou, nas palavras de Raúl Cervini, por “diversificação”[8] em seara procedimental penal, sendo conferidas, dessa forma, outras respostas penais para as infrações de menor gravidade.

De um modo bem sintético, estas são as principais bases teóricas que fundamentaram a implementação dos mecanismos consensuais com a Lei 9.099/95, cujos escopos, muito ao contrário do que se imaginava, não tiveram, a nosso ver, uma ressonância positiva no Brasil.

Se analisada apenas do ponto de vista técnico, a Lei dos Juizados Especiais Criminais é excelente; contudo, na realidade prática forense, mostra-se uma legislação fracassada, e isso em diversos aspectos[9], trazendo consigo vários problemas ainda não solucionados nos dias de hoje, como poderemos abordar em outras ocasiões.


Notas e Referências:

[1] Assim ocorre em alguns países, como na Bélgica; Cf. a respeito: TULKENS, Françoise. Justiça negociada. In: Mireille Delmas-Marty (org). Ana Cláudia Ferigato Choukr & Fauzi Hassan Choukr (trad.). Processos penais da Europa. Rio de Janeiro, Lumen Juris, p. 687.

[2] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo, RT, 2007, p. 24. Vale a ressalva somente de que, para nós, a adoção do consenso já implica, por si só, um processo.

[3] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5.ª ed. São Paulo, RT, 2005, p. 59.

[4] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995.5.ª ed. São Paulo, RT, 2005, p. 59.

[5] GAGLIARDI, Pedro Luiz & SILVA, Marco Antonio Marques da. Juizados especiais para julgamento das infrações de menor potencial ofensivo. RT 630/401, p. 404.

[6] NOGUEIRA, Márcio Franklin. Transação penal. São Paulo, Malheiros, 2003, p. 34.

[7] COSTA ANDRADE, Manuel da. Consenso e oportunidade. Jornadas de direito processual penal: O novo código de processo penal. Coimbra, Almedina, 1988, p. 321.

[8] CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. São Paulo: RT, 2003, p. 85/86.

[9] A respeito do assunto e dos fracassos da Lei 9.099/95, é sempre atual o excelente trabalho contendo uma série de artigos científicos, organizado por: CARVALHO, Salo de & WUNDERLICH, Alexandre. Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.


 

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