Justiça restaurativa: uma cultura da paz

28/07/2016

Por Camila Marques Rosado Ferraz – 28/07/2016

O crime existe e faz parte do cotidiano brasileiro. Uma vez ocorrido, o relacionamento entre vítima e ofensor será dilacerado, eis que por mais que as partes não tenham um relacionamento prévio, o delito termina por resultar em um vínculo hostil que pode afetar o bem-estar da vítima, do ofensor e, consequentemente, da sociedade. Nas palavras de Zehr: “O crime não é primeiramente uma ofensa contra a sociedade, muito menos contra o estado. Ele é em primeiro lugar uma ofensa contra as pessoas, e é delas que se deve partir”.

Assim, o crime envolve violações que precisam ser sanadas na esfera da vítima, na esfera dos relacionamentos interpessoais, bem como no âmbito do ofensor e da comunidade.

Contudo, o modo utilizado para se interpretar o crime praticado, afeta aquilo que é escolhido como elemento relevante, a avaliação de sua importância relativa e o entendimento do que seja um resultado adequado. Atualmente, a tendência é a de analisar o crime por meio de uma perspectiva retributiva que retribui o ato ilícito com a imputação de uma pena privativa de liberdade. Esta talvez esteja se tornando um modo anacrônico e ineficaz na punição, reinserção, responsabilização, reeducação e inclusão do indivíduo na sociedade. O motivo é que, o processo penal, valendo-se dessa perspectiva não consegue atender a muitas necessidades da vítima e do ofensor. Isso porque termina por negligenciar as vítimas enquanto fracassa no intento de responsabilizar o ofensor, bem como coibir o crime. Como bem prenunciou Howard Zehr:

“Para a justiça retributiva, o crime é uma violação contra o estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e estado, regida por regras sistemáticas”. 

Nesse panorama, para buscar soluções para o problema da criminalidade, é preciso buscar além da punição ou de simples penas alternativas. É preciso também procurar outras formas de ver o problema e a solução. Os fracassos nos ideais de responsabilização e reeducação mostram, cada vez mais, a necessidade de mudança. Ademais é percebida uma forte dificuldade do Estado em realizar políticas públicas necessárias para fazer cumprir o texto da Constituição Federal, do Código Penal, do Código de Processo Penal, da LEP e outras legislações pertinentes à seara penal.

Paralelamente, há uma real preocupação do país – inquietação também evidenciada por operadores do direito brasileiro- com novas alternativas de resolução de conflitos, bem como novos modelos de se fazer justiça.

Neste cenário surgiu a proposta da Justiça Restaurativa apresentado como um novo paradigma na forma de ver e entender o crime. Ressalta-se, contudo, que ainda não é um paradigma plenamente desenvolvido.

A Justiça Restaurativa é apresentada como uma alternativa de aperfeiçoamento do sistema de justiça e resolução de conflitos. É um novo modelo de Justiça, diferente do processo convencional com o escopo de solucionar problemas resultantes de relações pessoais prejudicadas por situações violentas.

O objetivo é restaurar e reestabelecer as relações prejudicadas pelo delito, por meio de diálogos envoltos de respeito. Possibilita-se a dignidade entre as partes e a compreensão recíproca de sentimentos, de modo a tornar a vida das pessoas envolvidas mais tranquila e compensada pelos sofrimentos decorrentes do conflito. São valorizados sentimentos de honestidade, humildade, interconexão, empoderamento e esperança. Entende-se a resolução dos conflitos de forma democrática, com ações construtivas que beneficiem a todos, resgatando a convivência pacífica nos ambientes afetados pelo conflito.

Na prática, o procedimento ocorre da seguinte maneira: aqueles que fazem parte do programa restaurativo, sendo estas as pessoas envolvidas em situações de violência ou conflito, bem como seus familiares, seus amigos e sua comunidade, se reúnem frente a frente, apenas sob a figura de um mediador ou facilitador. Depois, procuram, por meio do diálogo, entender e delito cometido e seus motivos de acontecer. Dialogarão sobre o ocorrido e suas consequências, apresentando os prejuízos emocionais, morais e materiais causados. Além disso, são feitas reuniões, círculos de debates, palestras e outras atividades.  A finalidade é reparar a dor, os traumas, as relações, a autoestima da vítima, bem como os danos materiais sofridos

Se na justiça tradicional retributiva o foco é o crime, a culpabilização e a punição; por outro lado, na justiça restaurativa o foco é o ser humano. No final, o acordo é encaminhado ao juiz como forma alternativa de cumprimento de sentença. Consiste em um paradigma de Justiça criminal capaz de suprir as falhas e ineficiências do sistema punitivo.

Dito tudo isso, acredita-se ser a Justiça Restaurativa um modo mais eficaz de lidar com a questão da criminalidade na atualidade, vez que seu objetivo principal é a restauração das relações dilaceradas e hostilizadas pelo crime.

A Justiça Restaurativa apresenta-se, pois, como uma “Cultura da Paz”, pois busca para além da punição, a restauração e pacificação das relações humanas, por meio do diálogo.

Diante desse paradigma novo que vem surgindo no Brasil é recomendável que, com humildade, seja revisitada a visão daquilo que entendemos como Justiça e o modo de implementá-la , refletindo se esta tem sido mesmo a melhor forma, ou se não é hora de mudar, pois como bem colocou o Juiz Egberto Penido

“Importa perceber que somos seres relacionais vivos, inseridos dentro de uma cultura que é determinada por visões de mundo construídas socialmente, que muitas vezes nos distanciam de valores fundamentais para a convivência conosco mesmo, com o outro e com a ambiência em que estamos inseridos. E assim procedendo, talvez, aumentemos a probabilidade de não ficarmos estagnados e cegos; vagando pelo mundo como mortos em vida; apegados e cristalizados em crenças tidas como imutáveis (muitas delas construídas em contextos culturais e históricos diversos e que não existem mais; ou foram firmadas de modo equivocado) que não se mostram eficazes em tornar este mundo melhor ou mais maravilhoso, e acabam, em última instância, retroalimentando um circuito de violência e dominação – calcado no poder sobre o outro e não com o outro - que nos mantem presos e cumplices, ainda que de modo inconsciente, a ele”.

Por todo o exposto, a implementação da Justiça Restaurativa, bem como o seu formato e método, devem, ser aplicados dentro da perspectiva de uma “Cultura de Paz”, de responsabilidade e de convivência que considera a Justiça na relação com o outro e com nós próprios, para além dos fóruns.

Não por outro motivo, é preciso trocar as lentes através das quais nossos olhos percebem a realidade; analisar outras perspectivas; criar novas perguntas; ir de encontro a novas respostas e ser coerente com elas, de modo transformado e sempre refletindo e ponderando.

Se assim é, mais do que a técnica de resolução e transformação de conflito que venha a ser implementada, deve-se vagar sobre o contexto cultural o termo “Justiça” é definido e concretizado no cotidiano, mirando para nós próprios e para o enquadramento em que cada um está inserido, para que as ações que visam a sua materialização tenham uma probabilidade maior de se tornarem efetivas e não serem incorporados por sistemas institucionais que não estejam em conformidade com seus princípios.

Com este cuidado, a Justiça Restaurativa associada à uma “Cultura de Paz” tem se mostrado um caminho seguro e efetivo para a implementação transformadora da Justiça Restaurativa. Pode-se dizer que não há como assim não ser, eis que os princípios fundantes da Justiça Restaurativa mesclam-se com os princípios norteadores da Cultura de Paz. “Cultura”, do latim, culturae, que significa “ação de tratar”, se correlaciona com aquilo que “cultivamos” e “cuidamos” em nós mesmos e no mundo – aquilo que nutrimos em termos físico, emocionais, mentais e espirituais. Como sempre foi: não há como pensar a paz sem justiça. Com esse fim é apresentada: a Justiça Restaurativa.


Notas e Referências:

PENIDO, Egberto de Almeida; MUMME, Monica Maria Ribeiro Mumme. Justiça Restaurativa e suas Dimensões Empoderadoras. Revista do Advogado, Ano XXXIV, n. 123, Agosto de 2014

PENIDO, Egberto; BRANCHER, Leoberto. O Braço da cultura de paz na Justiça. Folha de São Paulo, 05/07/2005. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0507200509.htm. Acesso em 24/08/2014.

ZEHR, Howard “Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça restaurativa” – São Paulo; Ed. Palas Athena, 2008

ZEHR, Howard, “Justiça Restaurativa”, Ed. Palas Athena, 2013.


Camila Marques Rosado Ferraz. Camila Marques Rosado Ferraz é aluna e extensionista do 7º período de Direito da PUC/MG, Coração Eucarístico Estagiária do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 5ª Câmara Criminal, Desembargador Alexandre Victor de Carvalho. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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