JUSTIÇA NEGOCIAL: A NOVA REALIDADE DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO  

06/10/2020

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

Aliado à expansão penal e aos novos desafios impostos pela sociedade de riscos, no cenário processual penal, tem-se a introdução de instrumentos de justiça negociada, que ganhou especial repercussão no ano de 2019, com a proposta de plea bargain inserida pelo ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil Sérgio Moro (2019-2020), no denominado Pacote Anticrime.

Trata-se de um instituto com gênese nos países que adotam o sistema de common law, constituindo uma espécie de acordo realizado entre a acusação e o acusado, mediante declaração de culpa, em troca da atenuação no número de acusações, na gravidade dessas, ou na redução da eventual pena[1].   

No âmbito negocial do processo penal, com a Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), positivou-se no artigo 28-A do Código de Processo Penal o instituto de acordo de não persecução penal (antes previsto nas Resoluções n. 181 e 183 do CNMP). Esclarece-se que a negociação não constitui novidade no processo penal brasileiro, sendo permitida nos institutos de transação penal, de suspensão condicional do processo e de colaboração premiada.

Ao tratar a respeito do Sistema de Justiça Negociada, Aury Lopes Junior elenca diversos pontos a serem considerados, discutidos e resolvidos neste campo, já que, em suas palavras, “a negociação no processo penal é sempre sensível, pois representa um afastamento do Estado-juiz das relações sociais”[2].

Na visão do autor, a opção negocial é perigosa, e apesar de estar ligada a uma ideia de eficiência, exclui o indivíduo já excluído socialmente e por isso desviante. A acusação se torna um instrumento de pressão, “capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança”[3].

Conforme Sánchez, na justiça negociada, os valores como “verdade e justiça ficam, quando muito, em segundo plano”[4]. Parte-se da premissa de que devem ser buscados novos paradigmas na aplicação do Processo Penal, de modo a torná-lo mais célere, efetivo e negocial.

De acordo com Nereu José Giacomolli e Vinicius Gomes de Vasconcellos:

A denominada agilização da aplicação da lei penal com a adoção do consenso pode se referir à rapidez dos processos ou à obtenção de um maior número de baixas processuais, num tempo mais curto. A adoção desses mecanismos não é o meio adequado para diminuir o número de causas criminais, mas um meio de fuga que não é capaz de extinguir a crise propriamente dita[5].

Aury Lopes Junior alerta que a justiça negocial não faz parte do modelo acusatório e que pode sepultar garantias processuais penais. Entretanto, observa o autor que a justiça negocial é uma tendência para a qual há a necessidade de preparação, de forma a impedir a implementação, por exemplo, do modelo distorcido de plea bargain norte-americano. Também aponta que cerca de 90% dos casos penais são resolvidos por meio de acordos, sem julgamento e jurisdição, e relaciona isso ao fato de os Estados Unidos serem o país com a maior população carcerária do mundo, com a banalização de acordos atrelada a uma justiça punitivista[6].

Finalizando sua crítica, Aury Lopes Junior posiciona-se admitindo que: “precisamos ampliar o espaço de consenso e os mecanismos de negociação da pena, através de lei clara e com limites demarcados (legalidade), que sirva para desafogar e agilizar a justiça criminal, mas sem representar a negação de jurisdição e das garantias processuais constitucionais”[7].

Ainda, como tendência da expansão do espaço de consenso no direito processual penal brasileiro tem-se o projeto de Lei do Novo Código de Processo Penal, cuja última ação legislativa deu-se em 04 de dezembro de 2019, de autorização de prorrogação do parecer da comissão especial.

No referido Projeto, “permite-se a negociação, inclusive com o reconhecimento de culpa e o encarceramento”[8] em um tópico elencado como procedimento sumário. O artigo 283 do Projeto, que trata do chamado procedimento sumário, “prevê a aplicação imediata da pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos, podendo ser requerida pelo Ministério Público e pelo acusado, através do seu defensor”[9].

Assim, observa-se que, apesar dos fatores negativos de sua implementação, as novas legislações e os projetos de lei estão inclinados à justiça negocial, sob o argumento de buscar a:

possibilidade de equilíbrio entre a eficiência e a manutenção das garantias para que o processo penal não seja nem excessivamente moroso e, assim, desprovido de efetividade, tampouco se torne um meio de atender a clamores populares, a partir de uma lógica essencialmente punitivista e em descompasso com a necessária atenção aos direitos humanos e às garantias individuais[10].

A própria concepção do processo penal, até então compreendido como instrumento legitimador do exercício do poder punitivo estatal, mediante a verificação probatória e posterior decisão sobre a imputação penal[11], ganha novos contornos após o acolhimento da transação penal, do acordo de não persecução penal, da colaboração premiada e da leniência.

Diante da discussão pela eficácia operativa do que se constituiu como standard de garantias e o que pode ser negociado, torna-se indispensável estabelecer, no processo penal brasileiro, quais são os resguardos básicos da dignidade humana, notadamente pela incidência do devido processo legal substancial, a ser observado em compasso com os novos institutos[12].

Para que isso seja alcançado, fazem-se necessários muitos debates e discussões sobre a possibilidade de afastamento dos fatores prejudiciais, a fim de que os espaços de consenso assegurem os direitos fundamentais e atinjam os objetivos de celeridade e eficiência.

 

Notas e Referências

[1] MARQUES, Murilo. Os perigos da plea bargain no Brasil. Jusbrasil, 2016. Disponível em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/400578643/os-perigos-da-plea-bargain-no-brasil

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1238.

[3] Ibidem, p. 1240.

[4] SÁNCHEZ, Jesus-Maria Silva. A Expansão do Direito Penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 90.

[5] GIACOMOLLI, Nereu José; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Justiça criminal negocial: crítica à fragilização da jurisdição penal em um cenário de expansão dos espaços de consenso no processo penal. Novos Estudos Jurídicos, v. 20, n. 3, p. 1122.

[6] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit.

[7] Ibidem, p. 1242.

[8] GIACOMOLLI, Nereu José; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Op. Cit. p. 1120.

[9] RAMOS, Samuel Ebel Braga; BACK, Caroline Moreira. As soluções negociadas e o Processo Penal Brasileiro. Revista Húmus, v. 9, n. 27, 2019, p. 198.

[10] Ibidem, p. 210.

[11] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 21.

[12] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: E-Mais, 2020.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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