Justiça e igualdade: De onde surge o sentido do que é justo nos humanos? (Parte 1)

28/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 28/04/2015

“Tu, tus alegrías y penas, tus memorias y ambiciones, tu sentido de la identidad personal, de la justicia y de la libertad, no son de hecho más que la conducta de una amplia asociación de neuronas y sus moléculas asociadas. Tú no eres otra cosa que un montón de neuronas”.  FRANCIS CRICK

Parte I

Em 1932, Helena Antipoff escreveu que nosso sentido da justiça representa “uma manifestação moral inata e instintiva que, para desenvolver-se realmente, não requer experiência preliminar nem socialização em contato com outras crianças. [...] Temos uma percepção afetiva inclusiva, uma «estrutura» moral elementar que uma criança parece possuir com grande facilidade e que lhe permite captar simultaneamente o mal e sua causa, a inocência e a culpa. Podemos dizer que o que temos aqui é uma percepção afetiva da justiça.” (M. Hauser, 2006)

A questão de que requisitos devem colmar a conduta humana para ser considerada como «justa» foi (e ainda é) uma constante na história da filosofia e das teorias sociais normativas, passando por rios de tinta desperdiçados em «metafísica». E se de algo há poucas dúvidas é que, em tema de justiça, boa parte da filosofia moral e jurídica contemporânea, por muito venerada que seja no âmbito acadêmico, está totalmente desvinculada do «tangível». Não guarda uma estreita relação com a evolução e o cérebro humano e, como tal, continua a correr o perigo de seguir vagando em um mar de simples opiniões com sutis maquinações de um jogo puramente especulativo-argumentativo, por muito convincentes que pareçam – sem lugar a dúvidas, recorda Patricia Churchland (2011), os clérigos medievais também se mostravam muito convencidos de suas teorias.

Está o sentido da justiça gravado em nosso cérebro? Em que consiste ser justo? Como sabemos o que se considera justo? Por que consideramos que determinados juízos ou condutas constituem uma prática injusta? Por que manter-se em um estado infantil de delírio no que à justiça se refere? É possível que o direito seja também indiferente à natureza humana, que qualquer programa filosófico, inclusive de cariz religioso, baste para estabelecer o fundamento da justiça?

Embora, em conjunto, a visão da natureza humana que foi evolucionando durante as quatro últimas décadas cambiou sistematicamente a explicação do que somos e por que fazemos o que fazemos, palavras como a «justiça», que não existe fora da imaginação comum dos seres humanos, não deixa de provocar secreção de adrenalina em determinados filósofos e juristas propensos a uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito «científica», dominada sobretudo por um positivismo de “regras e princípios”, um sociologismo, um jusnaturalismo com alguma peculiar ontologia substancialista e/ou um «neoconstitucionalismo» de direitos humanos ou fundamentais e suas sinistras ponderações.

E se nos aprofundamos um pouco mais, aparece um quadro muito mais enganoso, estrafalário e tenebroso de traiçoeiras correntes jurídicas, donde a justiça “se ha degradado en la burbuja «intelectual», una industria en crecimiento desde la cual muchos académicos se aferran a la segura oscuridad de la jerga académica especializada y a la opacidad de las abstracciones de la teoría posmoderna” (J. Wark, 2011). Para as teorias atuais, longe de ser uniforme, a justiça é esquizofrênica.

 O problema é que algo radicalmente novo está no ar: uma biologia realista da mente, os avanços da ciência cognitiva, a neurociência, a genética do comportamento, a antropologia, a primatologia, entre outras disciplinas que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie; e todas levantam questões de grande importância crítica com respeito ao que significa ser humano. As técnicas de obtenção de imagens das redes neuronais ativadas no cérebro quando se está levando a cabo um determinado processo cognitivo - o que, em linguagem comum, chamamos pensamento – revolucionou o estudo das atividades mentais e da compreensão do cérebro a tal ponto que as neurociências supõem já uma parte fundamental do mundo acadêmico.

Talvez a barreira mais difícil de superar continue sendo a das ciências humanas, com os filósofos à frente da resistência[1] e, no último degrau da aceitação dos estudos da natureza humana e do cérebro, os juristas. Parece que estes ainda não conseguiram superar dois dos grandes problemas da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito: o primeiro, pensar como iniludível a crença de que os seres humanos somente dispõem de cultura (uma variedade significativa) e nenhuma história evolutiva e/ou cérebro[2]; o segundo, assumir categoricamente a sacrossanta ideia da «excepcionalidade» humana, de que o ser humano é «tão extraordinário» que a condição humana transcende por completo o conhecimento científico (ou, ao menos, que se acha fora do alcance da boa ciência).

Ainda há uma forma dominante de pensar que produz rejeição, inclusive certa fobia, ao fato de que o ser humano é uma espécie biológica e que, para compreender o que somos e como atuamos, o que nos ocupa e o que nos preocupa, devemos compreender o cérebro e seu funcionamento (P. Churchland, 2011).  De fato, quando eliminamos a biologia da vida social, a ciência mesma fica reduzida a um de tantos sistemas arbitrários de pensamento (R. Trivers, 2011). Assim choca a idiossincrasia com a realidade: a negação da justiça como «propriedade emergente» da natureza humana.

Afortunadamente alguns juristas começam a entender que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam do cérebro e da conduta e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito, da justiça e da moral.

Destaca-se cada vez mais a consciência de que, dado que o direito e a ética carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana - indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas -, é necessário, para compor o conteúdo e a função de ambos, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou indireta, condiciona, limita e guia nossas condutas, nossos juízos de valor e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos. Também começa a acumular-se evidências, desenvolvidas em campos disciplinares muito variados, sugerindo a existência de um «instinto moral»[3], uma faculdade moral equipada com propriedades universais da mente humana que restringe o âmbito da variação cultural e  permite desenvolver uma reduzida gama de sistemas morais concretos (M. Hauser, 2006).

O que me leva a conjecturar que uma explicação unitária de base para a compreensão da justiça e de sua projeção fenomenológica, a partir das implicações jurídicas da natureza humana, existe. Desde o ponto de vista teórico e empírico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade para encontrar em nossa natureza os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da justiça, sempre e quando os valores e imperativos morais se considerem uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.

Significa isso, de alguma maneira, que a justiça está presente a nível orgânico no cérebro humano? A resposta é afirmativa, na medida em que os aspectos neurológicos se consideram agora decisivos para entender em que consiste a emoção e a cognição, a intuição, os juízos morais e as avaliações contidas nas emoções. Não teria nenhum sentido apelar à justiça e à igualdade ou reagir a um trato injusto se sua ausência ou presença não suscitara poderosas emoções nos indivíduos, nem tão pouco exortar à gente a ser justa (boa ou correta) com os demais se não tivessem uma inclinação natural para comportar-se assim.

Vamos com alguns exemplos. O psicólogo social John Darley publicou na Annual Review of Law and Social Science um artigo em que repassava as contribuições experimentais a um dos fenômenos mais curiosos da natureza humana: o rechaço à injustiça. Os seres humanos desejam castigar aos transgressores das normas compartidas, ainda que as consequências das transgressões não lhes afetem, e estão dispostos a fazê-lo inclusive se têm que pagar por isso ou se de alguma forma lhes prejudica pessoalmente a busca de justiça. Quer dizer, que a noção de justiça poderia derivar-se da necessidade de canalizar um sentimento de vingança, depositando em um terceiro (a instituição jurídica, por exemplo) a responsabilidade de obrigar ao infrator a pagar por suas culpas.

É o chamado «castigo altruísta», porque os indivíduos castigam o comportamento injusto e não cooperativo, mesmo que o castigo seja custoso e não acarrete nenhum benefício material ao que lhe inflige (Fehr e Gächter, 2002).  Um comportamento no qual um sujeito A, ao ver como outro B se salta as regras da convivência, está disposto a pôr algo de sua parte, contanto que o transgressor B seja castigado e pese a que seu «delito» não afete A de maneira pessoal. O castigador altruísta não recebe nenhum benefício, mas sim sofre uma perda — de bens ou de qualquer outro tipo.

Ernst Fehr e seus colaboradores (2002) estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas.

A teoria dos jogos também já estudou a fundo os possíveis modelos de castigo altruísta mediante o jogo do ultimatum. Alan Sanfey e colaboradores (2003), utilizando a técnica da ressonância magnética funcional (fMRI), identificaram, durante a realização deste jogo, as áreas cerebrais que estavam mais ativas quando os sujeitos eram submetidos a ofertas injustas. O mais interessante a respeito dos resultados obtidos foi a identificação, por parte de Sanfey e colaboradores, das áreas cerebrais implicadas nessa decisão de raiz estritamente ligada ao sentido da justiça: resultaram ser as mesmas que, no modelo de Antonio Damasio (1994) dos marcadores somáticos (algo assim como uma «memória corporal» ou as «etiquetas» que o corpo assigna a cada situação emocional), formam parte da rede neuronal de interconexão fronto-límbica.

Por outro lado, Joshua Buckholtz e René Marois (2012) indicaram os possíveis circuitos neuronais que subjazem à capacidade de aprender normas, de segui-las e de tratar de impô-las mediante o castigo altruísta, reconhecendo que a recompensa e o reforço positivo também são poderosas forças psicológicas que animam à cooperação, tanto a curto como a longo prazo. Como indicam estes autores, são vários os processos cognitivos implicados em um processo que é demasiado complexo, ainda que cumprir normas sociais e castigar a quem as violam são condutas que ativam o sistema de recompensa do cérebro.


Amanhã (29/04) tem a Parte II, também as 15h!


Notas e Referências:

Asma, S. T. Against Fairness: In Favor of Favoritism. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.

Brosnan, S., & De Waal, F. Monkeys reject unequeal pay. Nature, 425, 297-299, 2003.

Brosnan, S. &  de Waal, F. Evolution of responses to (un)fairnessScience, DOI: Science, 18 September 2014 DOI: 10.1126/science.1251776.

Buckholtz, J.W. & Marois, R. The roots of modern justice: cognitive and neural foundations of social norms and their enforcementNature Neuroscience, 2012; DOI: 10.1038/nn.3087

Churchland, P. S. Braintrust: What Neuroscience Tells Us about Morality. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2011.

Damasio, A. R. Descartes' Error. Emotion, Reason, and the Human Brain. New York, NY: G.P. Putnam's Sons, 1994.

Darley, J. M. Morality in the Law: The Psychological Foundations of Citizens’ Desires to Punish Transgressions, Annual Review of Law and Social Science,Vol. 5: 1-23, 2009.

De Waal, F. The bonobo and the atheist. New York, NY, W.W.Norton, 2013.

Fehr, E., & Gächter, S. Altruistic punishment in humans. Nature, 415, 137-140, 2002.

Fernandez, A. Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico. Brasil, Paraná, Curitiba: Ed. Juruá, 2007.

Fernandez, A. & Fernandez, M. Neuroética, Direito e Neurociência. Conduta humana, liberdade e racionalidade jurídica. Brasil, Paraná, Curitiba: Ed. Juruá, 2008.

Hauser, M. D. Moral minds. How nature designed our universal sense of right and wrong. New York, NY: HarperCollins Publishers, 2006.

Sanfey, A. G., Rilling, J. K., Aronson, J. A., Nystrom, L. E., & Cohen, J. D. The Neural Basis of Economic Decision-Making in the Ultimatum Game. Science, 300, 1755-1758, 2003.

Shklar, J. The faces of injustice, New Haven and London: Yale University Press, 1990.

Tricomi ERangel ACamerer CFO'Doherty JP. Neural evidence for inequality-averse social preferentes, Nature, 463(7284):1089-91, 2010.

Trivers, R. The Folly of Fools. The Logic of Deceit and Self-Deception in Human Life, New York: Basic Books, 2011.

Wark, J. Manifiesto de derechos humanos, Barcelona: Ediciones Barataria, 2011.

[1] Os filósofos foram durante décadas críticos e hostis com relação às evidências que procedem dos estudos das ativações neuronais que determinam nossos juízos morais pese a que, de maneira óbvia, os resultados obtidos supõem uma nova fonte de conhecimento relacionada de uma forma muito direta com as questões que sempre interessaram ao mundo da filosofia desde Platão e Aristóteles a John Rawls e Noam Chomsky.

[2] Claro que dizer que existe uma natureza humana é algo que não está admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente (especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma «tabula rasa» na qual que se pode escrever qualquer coisa, que sua maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Mas para os que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo ambiente em que se vive. O comportamento moral e o sentido da justiça não são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal (com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com variações). O importante, aqui, é ter em conta que não se pode utilizar a cultura como explicação de qualquer fenômeno, senão que a cultura é algo que em si mesmo requer explicação: Por que se estendem umas ideias ou práticas e não outras? Por que triunfam certas condutas e normas em um sítio e outras em um lugar não muito distante? Pretender “explicar” a cultura com a cultura é, em última instância, «re-descrever» um fenômeno, não é uma explicação. Em resumo, a cultura não é independente da biologia e a cultura como explicação causal é um mito: a cultura e a variação cultural é um fenômeno que necessita explicação por si mesmo.

[3] A superioridade de um sistema de resposta emocional (intuição moral) sobre um instinto reside em que seu resultado não está determinado. O termo “instinto” se refere a um programa genético que especifica a conduta dos animais, ou das pessoas, em circunstâncias específicas. Por outro lado, as emoções produzem câmbios internos junto com uma avaliação da situação e das opções. Não está claro se as pessoas e outros primatas têm instintos em sentido estrito, mas não há dúvida que têm emoções. Klaus Scherer diz que as emoções são “uma interface inteligente que medeia entre a entrada e a saída sobre a base do que é mais importante para o organismo em um momento dado”. (F. de Waal, 2013)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: NOT for sale: human trafficking // Foto de: Ira Gelb// Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/iragelb/5611594783 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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