Justiça de transição e novo constitucionalismo: algumas ausências e emergências envolvendo o Brasil

31/05/2016

Por César Augusto Baldi – 31/05/2016

O “novo constitucionalismo latino-americano” é, ainda, um campo epistêmico em disputa. Se, de um lado, a caracterização de Raquel Yrigoyen Fajardo insistiu no âmbito do reconhecimento das diversidades- em especial, étnico-raciais-, por outro lado, autores como Ruben Dalmau e Roberto Viciano insistiram na intensificação da participação popular. Na primeira versão, a experiência indígena foi o grande vetor de análise; no segundo, a reativação do Poder Constituinte por conta de assembleias nacionais convocadas para tal fim ou mesmo de mecanismos de plebiscito para sua confirmação.  Neste sentido, tanto uma relação mais harmônica entre constitucionalismo e democracia, com um protagonismo maior dos tribunais, quanto um protagonismo indígena, que é mais evidente nos casos da Bolívia e do Equador.

A Constituição de 1988, neste sentido, é sempre um híbrido entre as periodizações existentes e hegemônicas. Se, de fato, foi o documento constitucional que incorporou não somente a maior participação popular, com previsão de referendos e plebiscitos, apesar de ter sido apreciada por meio de um Congresso não eleito para tal fim, por outro, foi a que também incluiu a questão da diversidade cultural- tanto indígena, quanto negra, quanto “outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.”

Ao mesmo tempo, foi a que menos explicitamente trabalhou com os parâmetros de “justiça de transição”, diferentemente das discussões que foram realizadas, tanto no processo constituinte, quanto pelos Judiciários nacionais, em relação à responsabilização dos agentes públicos durante o período ditatorial (1964-1985). Mais que isso, o próprio processo constituinte foi conduzido por uma conciliação, via Colégio Eleitoral, com representantes do processo que se esperava encerrar.

No geral, tem passado despercebido que tanto polícia, quanto Ministério Público quanto Judiciário tiveram muito mais continuidades do que rupturas em relação ao período anterior. O STF, neste sentido, é o grande paradoxo: o Tribunal responsável pela “guarda da Constituição”, até 2003 tinha integrantes nomeados pelos militares e, mais que isso, interpretava a Constituição nova ainda pela visão hegemônica daquela que, em princípio, parecera romper. Roger Raupp Rios destacou, por exemplo, que, entre 1950 e 1988, há uma evidente condescendência do STF com realidades discriminatórias e tratamentos díspares; a partir de 1988, mais fundamentalmente depois do ano 2000, uma preocupação com o princípio da igualdade no sentido de reconhecer seu conteúdo antidiscriminatório. Não é casualidade, portanto, que no período predominem discussões de direito administrativo e tributário, para somente mais adiante tecer-se considerações sobre igualdade material, de que a questão das ações afirmativas e dos direitos das mulheres são alguns bons exemplos.

Talvez a apreciação da “união homoafetiva”, cujo julgamento completou cinco anos, pode refletir as dificuldades do próprio entendimento do “princípio da igualdade” no campo das sexualidades: o tratamento da questão, em muitas vezes, ainda que a decisão convergisse, por maioria, no sentido favorável, veio pelo assimilacionismo e pelo direito de família, não ousando, sequer, a possibilidade de utilização da “igualdade extensiva”, consagrada na jurisprudência colombiana. O julgamento do caso “Raposa Serra do Sol“, por sua vez, mostra maiores dificuldades no trato da diversidade cultural e dos pressupostos etnocêntricos que já se encontravam em tensão com as Constituições novas da Bolívia e do Equador, bem como dos tratados internacionais de direitos humanos.

A dificuldade de incorporar a jurisprudência internacional de direitos humanos pode indicar, mais do que parece, a permanência de uma visão autoritária- mais que isso- de “baixa intensidade” de direitos humanos, dentro das instituições que mais tardiamente romperam com o período anterior- a polícia, o Ministério Público e o Judiciário. Uma lógica militar, de fronteiras definidas, no sentido de preservar uma “soberania” que não poderia ser desafiada: de novo, o caso “Raposa Serra do Sol”, paradoxalmente, em zona de fronteira, mostrou como uma ausente “justiça de transição” nestas três instituições se fazia assombrar como um fantasma permanente.

Não é demais lembrar, por exemplo, que apesar do fim da tutela, expresso no art. 231 da CF, mesmo o Ministério Público- e o STF, por consequência- tem dificuldades de reconhecer a legitimidade processual dos povos indígenas, tal como prevista no art. 232 da CF.  A ojeriza com a denominação “povos” é, mais uma vez, um resquício do período anterior, ignorando, seletivamente, a jurisprudência internacional de direitos humanos. A falta de punição de qualquer envolvido em tortura, por sua vez, é que permite a proliferação de discursos apologéticos de maus tratos, torturas e de violações de direitos humanos sem qualquer “reprimenda”, por notas de repúdio que sejam, por parte de PGR, PFDC e mesmos ministrxs do STF.

Neste sentido, é novo paradoxo que o reconhecimento do caráter ‘supralegal’ de tratados internacionais de direitos humanos tenha ocorrido no caso da prisão de depositário infiel e não de direitos sociais, econômicos e sociais. Mas que, ao mesmo tempo, a questão LGBT tenha entrado em discussão, nos tribunais, inicialmente pelo viés dos direitos previdenciários, para, somente depois, da questão do casamento e do princípio da igualdade. A convivência de duas camadas geológicas- da constituição de 67 e de parciais parâmetros da constituição de 1988- colapsa a tradicional teoria geracional de sucessão de direitos civis e políticos; econômicos, sociais e culturais; e de terceira geração.

A Constituição de 1988, no entanto, coloca alguns pontos para serem pensados dentro da lógica do novo constitucionalismo com a justiça de transição que mereceram pouca atenção. Se o racismo, pela primeira vez, é  tido como “crime inafiançável e imprescritível”, pela coincidência simbólica do centenário da abolição da escravatura, e os “quilombos”, que haviam desaparecido da legislação nacional no período de cem anos, a discussão sobre a racialização da construção nacional, do longo processo de escravidão, do racismo persistente e mascarado de “democracia racial”, do massacre da juventude negra e do encarceramento massivo da população negra mereceriam um contraponto, no espaço sul-americano em relação aos processos constituintes ocorridos a partir dos anos 80.

O Brasil é, depois da Nigéria, a maior nação negra do mundo e não vem trabalhando a questão da diáspora e da escravidão, nesta dupla junção de justiça de transição e novo constitucionalismo e algumas linhas de pesquisa poderiam servir para tanto:

a) O reconhecimento do pluralismo jurídico afro, tanto de comunidades quilombolas, quanto de povos tradicionais de matriz africana ou povos de terreiros;

b) A tematização, ainda incipiente, não só da história africana e afro-brasileira, mas da descanonização das ciências sociais, de que são evidentes as ausências de autorxs tais como Abdias do Nascimento, Lélia González, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Luís Gama, Dandara de Palmares. Que tipo de conteúdo vem sendo veiculado nas novas obras editadas para tais fins, a partir da Lei nº 10.639/2008 e como elas trabalham as lógicas da ditadura e da colônia? De que forma vêm sendo tratadas as histórias e as culturas tanto afro quanto indígenas nos livros didáticos? De que modo isso tem colaborado (ou não) para o combate ao racismo? Em que sentido os Poderes constituídos – mas também Ministérios Públicos e Defensorias Públicas – têm estabelecido a observância dos preceitos legais e do combate às distintas formas de racismo como diretrizes de sua atuação? O que passa pelo “controle social dos conteúdos ou, também, da intervenção dos interesses e perspectivas dos usuários do sistema de ensino sobre o que se ensinará e também sobre como se ensinará” (Rita Segato).

c) A injustiça cognitiva, pelo não reconhecimento não somente dos conhecimentos tradicionais dos povos afro-brasileiros como igualmente “científicos” (reproduzindo uma racialização), quanto das agressões contra terreiros e casas de umbanda, tidas como casos de “intolerância religiosa” quando são evidentes demonstrações de racismo epistêmico;

d) A necessária tematização da Comissão Nacional da Verdade Negra, mostrando as persistências, não somente do período colonial dentro da lógica republicana, mas também do período militar dentro do período democrático pós 88;

e) As novas formas de “buen vivir” afro que rompam com os padrões eurocentrados de “civilização”, “progresso” e PIB;

f) A discussão das memórias suprimidas e das oralidades não reconhecidas como determinantes da construção das narrativas, invisibilizando temas, propostas e conhecimentos.

g) O rompimento da própria colonialidade dos espaços, dentro da manutenção do espaço público para brancos e heterossexuais, deixando o espaço privado e da intimidade para não-brancos, não reconhecendo, como bem salienta Rita Segato, que ao contrário de uma “expropriação e canibalização de símbolos negros pela sociedade brasileira em geral”, estamos agora diante de uma “forte presença africana que invadiu e colonizou o espaço cultural branco em processo irreversível”;

h) O não questionamento da forma de acesso aos cargos públicos, nem menos ainda da própria dinâmica da seleção realizada – como se ela fosse “neutra” – é, de uma forma ou de outra, a manutenção de um efetivo “racismo institucional”, que merece ser combatido.

i) as manifestações de junho de 2013 colocaram em evidência, dentre outras reivindicações, a democratização incompleta, as permanências de lógicas ditatoriais, mas também da necessidade de repensar a racialização da cidade e dos espaços públicos, numa continuidade das lógicas das obras de infraestrutura do período militar e as novas obras das Olimpíadas e da Copa do Mundo, em especial a “higienização” dos espaços negros;

j) não desvincular a discussão da desmilitarização das polícias dos processos raciais e ditatoriais, em que se verifica que os casos de tortura, hoje em dia, são superiores aos do período ditatorial e não estão desvinculados do extermínio da população negra ( o caso dos “crimes de maio” de 2006 são o exemplo mais evidente e não punido).

Como salienta Julia Suárez-Krabbe, é necessário questionar o “privilégio epistêmico” que permite que, nas palavras do caribenho Lewis Gordon, o “corpo branco seja visto pelos outros sem ser visto como tal”, de forma que “vivido como ausência ofereça sua perspectiva como presença”. Contra um racismo epistêmico, há de se desenvolver novas formas de justiça cognitiva, “o direito de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Shiv Visnanathan).

Daí porque Quijano afirme, categoricamente, que a única forma que as promessas da modernidade podem ser cumpridas é pela “desracialização total da classificação social das gentes”, ou seja, não é possível levar, na prática, as referidas promessas “sem a destruição da colonialidade”. A discussão dos distintos privilégios da “branquitude” (Guerreiro Ramos) salienta que colonialismo, sexismo e racismo continuam presentes tanto nas discussões da justiça de transição quanto do novo constitucionalismo latino-americano. E há muitas ausências que necessitam ser tematizadas. Se o constitucionalismo latino-americano vem sendo reconhecido por “indigenizar” as Constituições, o caso brasileiro salienta a necessidade de o “enegrecer”.


César Augusto Baldi. César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS), doutor em “Derechos Humanos y Desarrollo”, pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador dos livros “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004) e “Aprender desde o Sul” (ed. Forum, 2015). .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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