"Revolto-me, logo existo."
—Albert Camus
O presente artigo visa abordar a anomalia dos "jurados profissionais", aqueles que repetidamente atuam nesse sentido (alguns até se orgulham de participar de tantos Júris, se inscrevem para tal etc.). No Brasil, é fato corriqueiro que Réus sejam julgados por jurados que já participaram do Plenário e já condenaram sujeitos, muitas vezes em curtíssimo espaço de tempo, eis que alguns são “escalados” até para as pautas do mês a depender da comarca e seu funcionamento (e usualmente com o mesmo membro do MP, em uma peculiar socialização e interação profissional e institucional integrante dessa anomalia jurídica e seus rituais).
Tudo relacionado ao tema dos "jurados profissionais" envolve uma atmosfera kafkiana e absurdista; Réus e seus advogados de Defesa muitas vezes sequer compreendem a dimensão de subordinações objetivas e subjetivas, tendentes, prevalentemente, à reprodução da ideologia dominante (repetição que opera como dobra ideológica); bem como a filiação do jurado com quem ocupa o lugar de defensor da Justiça, em sua acepção hegemônica na formação social historiada por Anitua (2008), o que remete contemporaneamente à figura do Promotor de Justiça, enquanto um símbolo e lugar social (que pode ser repensado como posição-sujeito ainda) historicamente representativo da Justiça do soberano e sua verticalização social, com reconfiguração no direito penal moderno, como verifica Zaffaroni (2012) também em perspectiva histórica.
Como bases teóricas, elenca-se desde já a mobilização da Análise de Discurso Francesa associada a Pêcheux (2014) e aos trabalhos (Teses, Dissertações, livros e artigos, inclusive nossos) em diálogo com a crítica criminológica latino-americana, bem representada por autores como Zaffaroni (2011) e Batista (2020).
Quando se condena alguém à prisão, se ultrapassa uma barreira ou “trava moral”, de modo que isso majoritariamente passa a integrar a dimensão de realidade aceitável da pessoa, uma versão imaginária do real que relativiza o valor da liberdade. Quando um jurado atua repetidamente, já tendo condenado outros, vemos uma espécie de jurado profissional. Essa repetição governamentalizada de jurados, só por esse ângulo, já deveria ser encarada como inconstitucional, acerca da vinculação cognitiva e afetações materiais, ideológicas e inconscientes, que atravessam essa figura do jurado profissional, o que envolve agravantes ao ser reiteradamente recrutado e tangenciado por discursos morais da ideologia dominante, que depositam neles as expectativas estadocêntricas ligadas, temporariamente, à condição de juízes da causa, ocupando e interpretando nesses rituais interacionais as práticas dominantemente deles esperadas, e materializando, em recorte de temporalidades condicionadas ao julgamento, as máscaras de magistrados, bem como, reinterpretando sua proximidade com a figura do Promotor de Justiça. A radical proximidade pela profunda vinculação histórica Capital-Estado-Juiz-Promotor-Prisão no funcionamento ideológico, com especificidades agravantes na América Latina e Brasil, estruturalmente atua com efeitos de contenção à paridade de armas, e não se desfaz com pequenas alterações de lugares ou em estrutura dos espaços (ainda que bem-vindas amenizando um pouco os efeitos dominantes). Hora de refletir.
A questão de um jurado que atuou anteriormente, especialmente se já condenou pessoas sob a mesma promotoria, e sobretudo em blocos de tempo próximos designados, pode suscitar dúvidas não apenas sobre sua imparcialidade, mas sobre toda a lisura do julgamento, bem como, pode reunir um conjunto de interações ilegais acumuladas com vistas ao reconhecimento e identificação desses “jurados profissionais” com as autoridades que carregam o símbolo de Justiça na formação social, de modo construído e reiterado, em confirmação e repetição prevalente da ideologia dominante punitiva e estadocêntrica, onde, historicamente, o Rei, seus Procuradores e Representantes eram tidos como os defensores da verdade, emanando e reproduzindo discursos com tais efeitos ligados ao poder e à autoridade que exerciam e/ou representavam. Efeito de verdade, poder e autoridade.
Nesse ponto, as filosofias contratualistas, que embasam fundamentos jusfilosóficos de um tratamento inconstitucional de inimigo, acabam sendo sinceras ao, pelo menos, admitirem essa vinculação e subordinação histórica, a exemplo do que faz Hobbes (2014), conforme explorado em Pires (2021), acerca da materialização da formação ideológica contratualista no funcionamento discursivo dominante sobre os discursos criminológicos (de efeitos hegemônicos e universalizantes, tanto na história da expansão do poder punitivo, quanto da linguagem criminal e estruturação do direito penal moderno).[i]
O fato do problema do jurado profissional não ser visto enquanto um grave problema jurídico, de justiça criminal, apto a fomentar nulidades, envolve o efeito de invisibilidade, proveniente da naturalização do funcionamento ideológico dominante: trata-se do efeito de óbvio, efeito ideológico elementar explicado por Pêcheux (2014), que questiona as evidências do jogo discursivo das “verdades” das autoridades.
As coisas pioram quando adentramos na problemática dos dados pessoais, onde existe uma disparidade inclusive digital e tecnológica no acesso de dados, e onde existem pesquisas sérias apontamento para monitoramentos ilegais de jurados. Uma paridade de armas e igualdade sobre o tema seria duplicar o problema, pois nesse caso, Acusação e Defesa, juntas, procederiam com monitoramentos ilegais e vigilâncias abusivas crescentes, o que constitucionalmente só pioraria tudo. Nao se busca uma igualdade de violações de direitos, mas o fim das violações.[ii]
Os advogados de defesa com acesso a dados poderiam, por exemplo, usar essas informações para solicitar a exclusão de jurados considerando a possibilidade de viés confirmatório e outros fatores, mas isso é como colocar um band-aid em uma ferida letal, subvertendo e obliterando o devido processo legal.
Para resolver essas preocupações, seria ideal que houvesse regulamentos e regras sobre dados pessoais claras e constitucionais, que evitasse a repetição de jurados, bem como, evitando pesquisas à vida privada dos jurados e monitoramentos ilegais que ocorrem no Brasil, contribuindo com o Estado encarcerador e seus representantes, autoridades e poderes estabelecidos, destruindo mais vidas.
É preciso refletir mais sobre essa anomalia jurídica (e necropolítica) de jurados profissionais, que atuam em diversos julgamentos, muitos já desprovidos de travas morais sobre o temor de condenar inocentes em caso de dúvidas. Afinal, muitos já fizeram isso, na prática, materializando repetidamente um In Dubio Pro Hell, para usar a designação de Rosa e Khaled Jr (2017), que diga-se de passagem, pode ser pensado ainda como um In Dubio Pro Rei.
Notas e referências:
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Prólogo E. Raúl Zaffaroni. Tradução Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2008.
BATISTA, Vera Malaguti. Estratégias de liberdade. In: PIRES, Guilherme Moreira (Org). Abolicionismos: vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Florianópolis: Habitus, 2020.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Martin Claret, 2014.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
PIRES, Guilherme Moreira. Materialização da formação ideológica contratualista no funcionamento discursivo jurídico-penal acusatório. 2021. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Letras - Análise de Discurso) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel - PR.
ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR, Salah. In Dubio Pro Hell: profanando o sistema penal. Florianópolis: Editora EMais: 2017
RESENDE, Paulo Edgar da Rocha. Epílogo I: Punitivismo Narcisista e o Racismo de Estado. In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Editora Habitus, 2018.
SILVA, Patrícia Cordeiro da. Ministério Público e o Tribunal do Júri: análise da prática de vigilância para a composição do Conselho de Sentença. 2021. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Letras - Análise de Discurso) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel - PR.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Cuestión Criminal. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2011. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos: Conferencias de Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: spee e a cautio criminalis. Coordenadores Augusto Jobim do Amaral, Clarice Beatriz da Costa Sohngen, Ricardo Jacobsen Gloeckner. Tradução e revisão técnica Augusto Jobim do Amaral e Eduardo Baldissera Carvalho Salles. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
[i] Cumpre destacar que “a construção ‘crime’ remete a um dispositivo juridicamente introduzido no jogo político, sempre associado à razão de governo e de Estado, e que retira dos verdadeiros envolvidos outras possibilidades de interação que não as impostas no jogo jurídico-penal, forjado em uma justiça particular apresentada como universal, que controla, confisca e coloniza a linguagem, governando os equacionamentos e sobre eles estabelecendo-se, de modo totalizante, com uma pretensa linguagem e justiça universal (de legitimação contratual) que alega precisar interferir em benefício de todos, para evitar o pior. Não por acaso, entre nomes como Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau e John Locke, Thomas Hobbes é um dos filósofos mais queridos pelos penalistas legitimantes da política prisional, eis que justifica a verticalidade centralizadora de um poder e autoridade marcantemente austeros e destrutivos, supostamente de modo a evitar a bellum omnium contra omnes (a guerra de todos contra todos). A premissa hobbesiana dessa guerra total (...) ante a ausência de um poder austero (principal característica da formação ideológica designada) não restou superada, mas atualizada e sofisticada nos discursos jurídico-penais da atualidade no século XXI. (...) A correspondência explicitada entre o dispositivo “crime” e a centralidade da razão de governo e justiça do soberano é forçosa, não para se restringir complacentemente à origem do poder punitivo, buscando um início e estacionando em seu contexto socio-histórico político, mas de modo a possibilitar movimentações e deslocamentos potentes capazes de romper com uma determinada ideologia, fomentando, na Análise de Discurso francesa, uma relação que não seja de reprodução da ideologia dominante e suas reverberações no mundo, mas de resistência.” (PIRES, 2021, p. 73-75). A pesquisa em questão faz uma leitura rigorosa da obra de Hobbes (2014) situando-a e comparando-a às reflexões de Anitua (2008) sobre a proximidade Juiz-Promotor a partir da perspectiva histórica, do emergir dessas figuras, e associação, produção e circulação do discurso jurídico, contando com Pêcheux (2014), Anitua (2008) e a criminologia de Zaffaroni (2009, 2011, 2012, 2013, 2020), entre outros. Nesse sentido, sugere-se em Pires (2021) a leitura da segunda seção, intitulada “o discurso jurídico (da acusação) e suas condições de produção: o emergir do poder punitivo nas histórias dos pensamentos criminológicos”. Com o destaque que o punitivismo narcisista exposto por Resende (2018) e o racismo de Estado acompanham são estruturantes das condições de produção e integrantes valiosas acerca da reprodução explorada com Althusser (1999).
[ii] Esse problema foi abordado com Silva (2021), que defende não uma igualdade e paridade no monitoramento, na vigilância particular e acesso a dados da vida privada dos jurados, mas no fim de práticas ilícitas que devem ser tratadas como inconstitucionais e ensejadoras de nulidades processuais, que minam o devido processo legal e trazem descrédito às práticas institucionais, pela vigilância incompatível com garantias fundamentais, como a própria Proteção de Dados assegurada pela Constituição Federal. É preciso que a seara criminal e os juristas acordem para a centralidade das práticas de vigilância e monitoramento (sobretudo digitais) que hoje estruturam a questão criminal, palco de nulidades e atmosfera kafkiana. Vale o reforço, ainda, de que o cenário envolve a centralidade de dados de jurados (que nem imaginam como possuem a vida revirada para serem úteis à dobra ideológica) classificados como sensíveis pela LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a exemplo de suas convicções religiosas, fé, sistemas de crenças e opinião política, abrangente das filiações e inclinações políticas e ideológicas. O Tribunal do Júri (especialmente se pensado à luz da Teoria dos Jogos, como o faz Alexandre Morais da Rosa, onde se reitera que não vale tudo) possui tudo a ver com o (ab)uso de dados pessoais, apenas alguns não entenderam isso ainda. Fixar limites e regras claras sobre dados pessoais à luz da Constituição Federal, sobre o que é permitido e o que é proibidio, tudo isso é fundamental para pensarmos em um mínimo de civilidade material, ou no jargão zaffaroniano mobilizado, ao menos para evitarmos uma irracionalidade máxima (contenção da barbárie), na esteira do defendido na clássica obra de Zaffaroni (2013), En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. É urgente que os juristas reflitam mais sobre tudo isso e que os criminólogos participem e se engajem nas discussões sobre dados pessoais no campo jurídico-penal, entendendo que este é um front fundamental da nossa Era de Dados no contexto de uma Sociedade de Controle.
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