Coluna Justa Medida
Recentemente foi publicada uma Sentença que gerou imensa perplexidade, diversas discussões dentro e fora do Direito, repercutindo na mídia de forma expansiva: justiça absolve, por “falta de provas”, empresário acusado de ter estuprado uma influenciadora digital.
O processo corre em segredo de justiça, mas o que foi levado a público é que nos Autos foram apresentados vídeos, realizadas 06 perícias, além do depoimento pessoal da Vítima, do Acusado e 22 testemunhas. Uma dessas provas é o próprio esperma e DNA do empresário na Vítima.
Por mais que tenhamos dificuldade em verificar TODOS os elementos presentes neste caso, ele nos dá um vasto campo de análise a respeito de dois pontos centrais nessa reflexão: (1) a seletividade do sistema penal brasileiro; (2) a misoginia do poder judiciário brasileiro.
Iniciamos com uma breve reflexão de um ponto crucial: a seletividade racial do sistema de justiça criminal está evidenciada diante do retrato das prisões brasileiras, ocupadas com 64% de negros e 35% de brancos em 2018 (dados do CNMP – Sistema Prisional em Números).
Mais do que isso, não é de hoje que pesquisas comprovam que a justiça criminal é mais severa com negros do que com brancos, sendo que os primeiros são estatisticamente mais propensos à prisão em flagrante, a responder ao processo em prisão preventiva, a serem defendidos pela Defensoria Pública e não advogados particulares, sendo proporcionalmente mais condenados do que os acusados brancos (ADORNO, 1996)2.
A cor e classe do acusado são consideradas nas decisões judiciais, como recentemente difundida pela mídia uma sentença condenatória que utilizou a raça do réu como determinante para a formação da convicção da juíza sobre sua conduta criminosa.
No que se refere a produção de provas em um procedimento criminal, não são raras as condenações que se baseiam unicamente em relatos desconexos e confusos de vítimas e testemunhas, sem que seja respeitado o devido cotejamento com o restante do arcabouço probatório constante no processo.
Em outras palavras, procedimentos previstos legalmente como o reconhecimento pessoal, apreensão e perícia em armas ou objetos do crime, são sistematicamente ignorados pela justiça criminal, fazendo morta a letra da lei!
Assim, os princípios que regem o Direito Penal Brasileiro, tais como Devido Processo Legal, Ampla Defesa e Presunção de Inocência, são verdadeiramente ignorados e rechaçados quando quem está sentado na cadeira dos réus é o verdadeiro cliente da justiça criminal: cidadão pobre e negro.
De acordo com o que foi visto acima é possível percebermos um recorte muito específico sobre a figura desse acusado. Isso quer dizer que as regras do jogo são modificadas quando o investigado é branco, tem melhores condições financeiras e é defendido por advogados particulares.
É necessário que façamos uma ressalva, nem toda a seletividade do sistema penal está concentrada na figura do réu ou acusado! A violência de gênero, já vivida na sociedade de uma forma geral, é refletida institucionalmente nas instâncias de poder, com a perpetuação da misoginia como um todo.
Entrando no segundo aspecto da nossa reflexão, é sabido que a palavra da vítima, principalmente em crimes sexuais, é de grande valia e deve ser considerada como prova, uma vez que muito provavelmente apenas ela e seu agressor estavam presentes na situação onde o crime se perpetrou.
Por outro lado, é certo que essa prova não pode ser considerada de forma isolada, se não estiver em harmonia com os demais elementos que foram levados ao processo, como relatos concisos e sem contradições e as circunstâncias dos fatos. O que está de acordo com a sistemática criminal e o devido cuidado com a presunção de inocência.
Acontece que, ao contrário do que ocorre nos inquéritos e processos que visam apurar aqueles crimes tidos como comuns (tráfico de drogas, furto, roubo), aqui a vítima será severamente confrontada, exposta, julgada, e sua palavra será questionada até o final.
Neste sentido, os tradicionais padrões e papéis de gênero serão colocados no papel e é através da percepção destes que os julgadores chegarão às suas convicções e decisões. Assim, as mulheres e meninas que performam a glorificada “bela, recatada e do lar” terão mais chances de ter sua palavra tida como verdadeira, enquanto que as mulheres e meninas vistas como “saidinhas”, “rebeldes”, “não comportadas” são severamente julgadas e não acolhidas.
No caso em comento essa situação fica bem explícita, uma vez que a palavra da vítima não estava isolada como único elemento de prova. De forma oposta, diversas provas robustas, verificadas pericialmente, foram produzidas... e ao final ignoradas! Isso gera, sem sombra de dúvidas, diversas consequências nefastas:
(1) Em primeiro lugar, a revitimização dessas mulheres e meninas será uma grande marca em sua vida, reverberando Ou seja, além de elas serem expostas a reviver toda a sua dor durante a investigação e processo, reiteradas vezes, elas são desacreditadas. Resultados como o do processo citado acima podem levar ao desencorajamento de outras vítimas que, ao se perceberem nesta situação de extrema violência, preferem permanecer caladas do que acusar formalmente seu agressor, com receio das represálias e também da possível absolvição de seu algoz.
(2) Sob o ponto de vista do sistema de justiça, essa situação reverbera grave insegurança jurídica, uma vez que os mesmos julgadores terão dois pesos e duas medidas para suas decisões, a depender da raça e classe do Réu, e a depender do comportamento social e sexual da Vítima – percebe-se que o que se julga são as pessoas, e não seus atos!
(3) Com isso, o sistema de justiça segue cumprindo o seu papel na perpetuação das desigualdades sociais e manutenção do status
Em resumo:
Ao analisarmos os crimes baseados nas desiguais relações de gênero ou os crimes que vitimam as categorias sociais minimizadas de uma forma geral, a palavra da vítima não costuma ser suficiente para a condenação do acusado, mesmo quando confirmada por outros elementos de prova.
Por outro lado, em crimes como tráfico de drogas ou contra o patrimônio, a palavra da vítima, mesmo que contraditória, é suficiente para afastar qualquer presunção de inocência, se sobrepor a ilegalidades procedimentais cometidas (como o não respeito ao procedimento do reconhecimento pessoal), levando a praticamente certa condenação desse acusado...principalmente quando ele é o “suspeito” sempre selecionado pelo sistema: jovem pobre e negro.
Parafraseando o próprio julgado, a justiça criminal absolve 100 culpados brancos e abastados, enquanto condena todos os dias 1 inocente negro e pobre.
Decisões como esta nos caem como um verdadeiro recado: mulheres, o seu corpo não lhes pertence! Além de calar, desacreditar, desestimular e responsabilizar as mulheres e meninas vítimas de violência, encoraja e dá aval aos agressores.
A dúvida que fica é: está o sistema de justiça, através do Direito, atuando de forma de viciada, ou na verdade ele está desempenhando seu verdadeiro papel de manutenção das desigualdades sociais, raciais e de gênero?
Notas e Referências
1 ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 9, nº 18, pp. 283-300. 1996.
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