Juízes ou semideuses: a (ir)responsabilidade do julgador - Por Leonardo Isaac Yarochewsky

18/06/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky – 18/06/2016

“Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz E pela minha lei A gente era obrigado a ser feliz”

Chico Buarque

Já foi dito, lembra Francesco Carnelutti, que para ser juiz um homem “deveria ser mais que um homem”. Assevera, ainda, o mestre italiano que: “nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar outro homem, aceitaria ser juiz. Contudo achar juízes é necessário. O drama do direito é isto. Um drama que deveria estar presente a todos, dos juízes aos jurisdicionados no ato no qual se exalta o processo. O Crucifixo, que, graças a Deus, pende ainda sobre a cabeça dos juízes, seria melhor se fosse colocado defronte a eles, a fim de que ali pudessem com frequência pousar o olhar, este a exprimir a indignidade deles; e, não fosse outra, a imagem da vítima mais insigne da justiça humana. Somente a consciência da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno”. [1]

É cediço que julgar o semelhante está entre as tarefas mais difíceis, árduas e complexas conferidas a um ser humano, principalmente, se exercida com ética, denodo, responsabilidade, respeito às partes, ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa e, sobretudo, com comprometimento social e com os inalienáveis direitos e valores fundamentais.

Quando se trata, em especial, do juiz criminal a tarefa de julgar se torna hercúlea e de incomensurável responsabilidade, posto que, como já sentenciou Roberto Lyra,

 “o juiz criminal apaga ou acende a lâmpada do destino, atribui a graça ou a desgraça”. [2]

Portanto, deve o julgador se pautar por critérios legais, pelos princípios fundamentais e de direito e, sobretudo, de respeito à dignidade da pessoa humana.

Deve o juiz agir com independência, sem a preocupação de agradar aos tribunais superiores (censor/pai). Somente o juiz independente e consciente de seu papel de garantidor, assevera Aury Lopes Jr., e “que, acima de tudo, tenha a dúvida como hábito profissional e como estilo intelectual é merecedor do poder que lhe é conferido”.[3]

Não é despiciendo ressaltar que o juiz criminal decide sobre o que há de mais sagrado para o ser humano: a liberdade. Alguns poderiam dizer que é a vida. Ficaria sempre a pergunta: há vida sem liberdade?

Não é sem razão que os princípios norteadores do processo penal e do direito penal privilegiam a liberdade – status libertatis – como regra em detrimento da prisão, que constitui uma exceção. A inocência é que se presume. In dubio pro reo. Não há crime sem lei anterior que o defina e nem pena sem prévia cominação legal. A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu etc..

Assim, por ter poderes, inclusive, de decidir sobre a vida e a liberdade de outrem é que deve o juiz ser responsabilizado pelos seus atos praticados no exercício da profissão. “A toga é a marca da superioridade da instituição sobre o homem”. [4] Porém, assevera Aury Lopes Júnior, “o juiz consciente de seu mister, não se pode deixar despir de sua natureza humana pela toga. Precisa racionalizar, inclusive seus medos. Deve ter presente a função democrática-garantidora que lhe atribui a Constituição (especialmente no processo penal), jamais assumindo o papel de justiceiro, de responsável pelo sistema imunológico da sociedade, com uma posição mais policialesca que a própria polícia; mais persecutória que o próprio acusador oficial. Tolerância, humanidade, humildade são atributos que não podem ser despidos pela toga e tampouco asfixiados pelo poder”.[5]

É certo que há tempos vários profissionais são responsabilizados por condutas praticadas no exercício da atividade laboral. Todo e qualquer profissional pode e deve ser responsabilizado pelos seus atos no exercício da sua função, ofício ou profissão. A responsabilidade pode decorrer de uma conduta dolosa ou culposa (imprudência, imperícia ou negligência). A conduta pode gerar uma responsabilidade administrativa, civil e/ou criminal.

Não são raras as vezes que um advogado é condenado a indenizar o cliente em razão de conduta que lhe gerou prejuízo.

Quando um edifício, uma casa, um viaduto etc. desmorona a responsabilidade do arquiteto, do engenheiro e de outros é logo questionada e apurada.

Médicos são condenados constantemente pelos seus erros, cometidos por imprudência, imperícia ou negligência.

E o magistrado?

O Código de Hammurabi (1726-1686 a.C), rei da Babilônia, já previa em seu art 5º. i, que o juiz corrupto seria responsabilizado: “Se um julgou uma causa, proferiu uma sentença e mandou exarar documento selado e depois alterou seu julgamento, comprovarão contra esse juiz a alteração do julgamento feito, e ele pagará até doze vezes a quantia que estava em questão no processo; além disso, fá-lo-ão levantar-se de sua curul de juiz na Assembléia dos Juízes e não tornará a se sentar com os juízes em um processo”.

O art. 13 da Tábua Nona do Código dos Decênviros que: "Se um juiz ou um árbitro indicado pelo magistrado recebeu dinheiro para julgar a favor de uma das partes em prejuízo de outrem, que seja morto". Obviamente que essa responsabilização foi minguando com o passar dos anos por não se enquadrar nos modernos ordenamentos jurídicos, ao ponto de praticamente desaparecer, como ocorre atualmente.

No Brasil, o novel CPC praticamente consolidou o que vinha se sedimentando na jurisprudência a partir do CPC de 1973, “in verbis”:

Art. 143. O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando:

I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;

II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte.

Parágrafo único. As hipóteses previstas no inciso II somente serão verificadas depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência e o requerimento não for apreciado no prazo de 10 (dez) dias.

Dispõe o atual Código Civil em seu art. 927: 

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Rubens Casara e Antônio Melchior[6] observam que a responsabilização dos magistrados pela violação das leis e danos causados decorre da sujeição do órgão julgador à lei e somente à lei.  Segundo os eminentes processualistas, a dificuldade na responsabilização dos magistrados “reside em exercer esse controle sobre os atos judiciais sem que surja uma relação de dependência entre o órgão julgador e o órgão com atribuição de controle”.[7]

A despeito de tudo, é quase uma ficção, um juiz, desembargador ou ministro ser responsabilizado pelos seus desmandos, pelas arbitrariedades cometidas, pelo abuso de autoridade e pelos seus erros.

Há muito se sustenta a necessidade de responsabilização dos julgadores pelos seus erros, pelos abusos cometidos e pelas arbitrariedades perpetradas, ora contra advogados, ora contra os acusados. Principalmente do juiz criminal que atinge, como já dito, o bem mais precioso do individuo que é a sua liberdade.

Não pode um juiz decretar uma prisão ou manter alguém preso contrariando a lei, a doutrina, a jurisprudência e o direito, agindo a seu bel prazer, porque assim entende ou assim quer. Isso não é autonomia, não é independência da função, isso não é poder discricionário, isso é, sim, abuso de poder, isso é arbitrariedade.

Quase nada, principalmente nas doutrinas, é tratado a respeito da possibilidade de responsabilizar os magistrados em casos de erro judicial e de decisões que geram danos, prejuízos e graves ofensas aos direitos fundamentais do indivíduo. Não resta dúvida que responsabilizar o magistrado por erro judicial não é tarefa fácil. O corporativismo e o próprio mito do juiz infalível são fatores que, ainda, prevalecem quando se tenta impor penalidades aos magistrados. Para parte da sociedade os juízes são vistos e tratados como seres superiores e, de fato, muitos magistrados se acham superiores e com poderes de semideuses.

Não se pode negar o fenômeno conhecido como “juizite”. Souza Neto[8] refere-se à “juizite” como uma patologia que não possui ainda CID, em que pese ser constatada com “razoável frequência”. A “juizite”, explica Souza Neto, “pretende exprimir que o cargo ocupou a pessoa, de tal maneira que se tornou aquele ser alguém prepotente e arrogante, a mandar sempre”. [9]

Apesar da “juizite” afetar, na maioria dos casos, os recém-aprovados no concurso para ingresso na magistratura, alguns magistrados se aposentam ainda sob o efeito da “juizite”.

Luigi Ferrajoli defende a punição “disciplinar” como o modo mais eficaz de responsabilizar o magistrado. Para Ferrajoli, é precisamente a responsabilidade disciplinar, auxiliada por garantias idôneas, que representa ademais a forma mais apropriada de responsabilidade jurídica dos juízes, que por isso seria fortalecida. Antes de tudo porque prevê como ilícitos disciplinares hipóteses taxativas de violação judiciária dos direitos de defesa (interrogatórios defeituosos segundo os termos da lei, acareações irregulares, capturas infundadas e outras), excluindo ao invés aqueles tipos indeterminados de lesão do ‘prestígio’ da magistratura ou semelhantes que permitiram, por muitos anos, desqualificar o juízo disciplinar atribuindo-o a indevidas intimidações da independência dos juízes em razão de suas orientações políticas jurisprudenciais. Em segundo lugar, atribui diretamente ao cidadão que se acredita injustamente lesado o poder de ação disciplinar, e, portanto, de acusação, perante os órgãos da justiça disciplinar”.

Rubens Casara e Antônio Melchior defendem que a responsabilidade administrativa é a melhor e mais adequada forma de responsabilização jurídica do magistrado, “desde que pautada em princípios atrelados à consecução do bem comum e à melhor realização do serviço público”. Para tanto, dizem os autores, “faz-se necessário que a sanção disciplinar, de natureza administrativa (por exemplo, a perda da parte do ordenado), vem acompanhada de garantias idôneas que asseguram a imparcialidade e a independência do julgador. Assim, os ilícitos disciplinares e as respectivas sanções devem estar rígidos e taxativamente previstos em lei, tudo para evitar a manipulação política do juízo disciplinar”.[10] Contudo, é necessário que a responsabilização, seja qual for a forma, não se transforme em instrumento de controle político/ideológico das decisões judiciais. Nem, tampouco, em mecanismo de intimidação dos magistrados que não leem na cartilha dos covardes.

É evidente que quando se defende a necessidade de responsabilização dos magistrados, não se pretende de forma alguma sejam eles punidos por suas posições ideológicas, como, também, não se pretende controlar a consciência do julgador. Não obstante, é necessário, em nome do Estado Democrático de Direito, que os juízes que agem contrariamente ao direito, à lei e à doutrina que privilegiem a dignidade da pessoa humana sejam de alguma forma responsabilizados pelo dano e prejuízo causado ao individuo. Em casos penais, na maioria das vezes, o dano à liberdade – valor fundamental – é irreparável.

A recíproca, contudo, não é verdadeira. Assim, diante de uma lei ou de jurisprudência que ofenda princípios fundamentais - como no caso recente da decisão do STF em relação à presunção de inocência – deve o juiz agir sempre e, tão somente, em nome dos princípios fundamentais, notadamente, a dignidade da pessoa humana, como postulado do Estado Democrático de Direito.

Como guardião da legalidade constitucional assevera Paulo Queiroz que “a missão primeira do juiz, em particular do juiz criminal, antes de julgar fatos, é julgar a própria lei a ser aplicada, é julgar, enfim, a sua compatibilidade – formal e substancial – com a Constituição, para, se a entender lesiva à Constituição, interpretá-la conforme a Constituição ou, não sendo isso possível, deixar de aplicá-la, simplesmente, declarando-lhe a inconstitucionalidade”. [11]

Não é mais possível, em nome do Estado Democrático de Direito, que juízes (lato sensu) fiquem impunes diante dos abusos manifestos cometidos no exercício profissional. Juízes que decretam ou mantém alguém encarcerado indevidamente; juízes que mantém o acusado preso por mais tempo do que a lei permite; juízes que elevam injustificadamente a pena, nitidamente, para evitar a prescrição; juízes que ofendem os acusados; juízes que desrespeitam testemunhas; juízes que cerceiam a defesa, ameaçando e intimidando advogados; juízes que decidem contra a lei e a jurisprudência mais benéfica ao réu; juízes que “produzem” provas, inclusive, ilícitas; juízes parciais; juízes que se aliam ao Ministério Público e que a priori aderem e acolhem as teses da acusação; enfim, juízes que violam os princípios constitucionais e garantistas do direito penal e do processo penal democrático.

Por fim, vale lembrar a recomendação de Rui Barbosa aos jovens e futuros magistrados:

Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar do contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo”. [12]

Que assim seja!

.

Belo Horizonte, 17 de junho de 2016.


Notas e Referências:

[1] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. Campinas: Conan, 1995.

[2] LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975.

[3] Aury Lopes Júnior. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[4] Aury Lopes Jr. ob. cit. p. 129.

[5] Idem, ibidem.

[6] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR , Antonio Pedro: dogmática e crítica. Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[7] CASARA e MELCHIOR, ob. cit. p, 162.

[8] Apud Aury Lopes Júnior. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e  sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[9] Apud  Aury Lopes Júnior, ob. cit.

[10] CASARA e MELCHIOR, ob. cit. p. 164.

[11] QUEIROZ,  Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001.

[12] BARBOSA, Rui. Oração aos moços.


 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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