Juiz Cristo  

03/02/2019

 

Existe, na teoria do Direito, uma proposta de descrever os modelos de juiz usando ideias da mitologia, podendo serem citados os modelos Júpiter, Hércules e Hermes, cada qual representando um tipo de comportamento do magistrado e o modo como atua ao proferir suas decisões. Também pode ser mencionado o juiz MacGyver, em crítica à forma de atuação dos juízes brasileiros (https://www.conjur.com.br/2013-nov-02/diario-classe-complexo-macgyver-modelos-juiz-episodio).

Entendo que tais sugestões somente existem porque não foi corretamente compreendido o que realmente significam o Direito e o Cristianismo, dentro de uma visão integral da Vida, que não separa aspectos políticos, religiosos e científicos, os quais se inserem em uma só realidade cultural, física e histórica, em uma só substância de mundo, e uma Humanidade.

O presente texto desenvolve algumas propostas do artigo “O Juiz Sacerdote” (https://emporiododireito.com.br/leitura/o-juiz-sacerdote-por-thiago-brega-de-assis), em que constou:

“Nas assim chamadas ciências jurídicas, a Lei ainda possui relação com a ideia do sagrado, e a Constituição representa concretamente essa Lei, como espaço especial das relações humanas. Considerando que o art. 102 da Constituição Federal, por exemplo, dispõe que compete ao Supremo Tribunal Federal guardar a Constituição, o que é missão profissional do Poder Judiciário, e obrigação cidadã de toda a população, podemos dizer que vivemos em uma nação de reis sacerdotes, em que todos têm a obrigação de servir e guardar a Constituição, sendo os magistrados sacerdotes especiais, pois são os guardiões profissionais da Constituição. Portanto, como o juiz tem a função especial de servir e guardar a Constituição, ele é o novo sacerdote.”

Toda sociedade vive dentro de um quadro simbólico, que significa, dá sentido às coisas, aos fenômenos e aos eventos da história, tendo o ocidente sido formado dentro de uma simbologia judaico-cristã, que sucedeu a do mundo grego, o qual já havia transcendido, pela Filosofia, as narrativas mitológicas, por mais que estas sejam uma forma arcaica de Ciência e tenham sido úteis para a formação da cultura helênica, a qual, por sua vez, exerceu grande ascendência sobre a vida romana.

Existe, assim, um hiato, talvez intransponível, entre os símbolos da mitologia greco-romana e os conceitos jurídicos posteriores ao desenvolvimento da Filosofia, o que não ocorre com as ideias do Cristianismo, que ainda estão presentes na vida ocidental, com elevada força simbólica unificadora capaz de canalizar grande volume de energia na comunidade.

Nesse sentido, vale dizer que o fundamento de nossa civilização, a dignidade humana, vincula-se teórica, científica e historicamente, de maneira indissolúvel, ao judaísmo, à pessoa de Jesus Cristo e às ideias a ele ligadas. Daí porque é muito apropriado falar em juiz Cristo, para posicionar a figura do magistrado dentro da cosmovisão da qual se originaram os direitos humanos, narrativa que não pode ignorar a pureza moral, incluindo o aspecto sexual, de Jesus, de João Batista, que o antecedeu, e de Paulo, o maior responsável pela propagação das ideias de Jesus Cristo, e sua relação com a integridade conceitual da dignidade humana e dos direitos humanos.

É importantíssimo, ainda, inserir a pessoa do magistrado, e não somente sua função, em um quadro simbólico, porque o mundo é feito de pessoas e por pessoas, e não de coisas, ou por coisas. A autoridade pública é exercida por pessoas, e quanto melhor a pessoa mais corretamente exerce essa autoridade, como exposto no artigo “Sobre a autoridade secular” (https://emporiododireito.com.br/leitura/sobre-a-autoridade-secular).

No caso do juiz, do magistrado, a pessoa do julgador pode favorecer ou comprometer a autoridade da decisão, e não é por outro motivo que a Lei Complementar n.º 35, de 1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, no inciso VIII do seu art. 35, estabelece como dever do magistrado manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.

A identificação com a postura do cristão é imediata, porque, no Cristianismo, Deus, o Juiz Supremo, que é Santo e Perfeito, delegou o julgamento do mundo a Cristo, expressão humana da perfeição de Deus, e aos cristãos, ou alter cristos, os que se portam como Cristo, buscando a santidade e a perfeição, porque “os santos julgarão o mundo” (1Cor 6, 2), e ser santo é manter conduta irrepreensível permanentemente, dentro de nossa imperfeição, tendo como modelo de vida aquele que deu corpo ao Logos, encarnando-O em Vida, cumprindo a Lei plenamente.

Antes, como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também vós santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: Sede santos, porque eu sou santo. E se chamais Pai aquele que com imparcialidade julga a cada um de acordo com as suas obras, portai-vos com temor durante o tempo do vosso exílio” (1Pd 1, 15-17).

Deus é Legislador, Rei e Juiz da Criação, e da Humanidade, é o Logos, a Sabedoria Suprema, da qual derivam a dignidade humana e os direitos humanos, conceitos estes dependentes daquele conjunto de ideias, o Logos que serve de parâmetro para a definição eterna do que é o Direito e a Justiça. A lei é elaborada pela Razão, o governo é exercido segundo a Razão e o julgamento é proferido pela Razão, e quanto melhor a Razão, tanto melhores a lei, o governo e o julgamento.

Nesse sentido, porque Jesus Cristo deu corpo, encarnou a Razão Perfeita, o Logos, irá “julgar os vivos e os mortos, pela sua Aparição e por seu Reino” (2 Tm 4, 1). “E ordenou-nos que proclamássemos ao Povo e déssemos testemunho de que ele é o juiz dos vivos e dos mortos, como tal constituído por Deus” (At 10, 42).

Sua Aparição e seu Reino são vinculados ao reconhecimento público de sua Autoridade, com a plena submissão a ela e com a superação da hipocrisia que separa a teoria Cristã da prática dos que se chamam cristãos, especialmente na vida pública e no ambiente político e jurídico, na medida em que o Reino é o governo segundo o Logos, Logos que também é a Lei que fundamenta o julgamento, a atuação do juiz.

O juiz Cristo é o que possui autoridade na comunidade, sendo capaz de, com sua força moral, não condenar um culpado, como ocorreu com a mulher adúltera, no episódio emblemático que foi apresentado na novela Jesus, transmitida pela emissora Record, nessa semana, ao salientar que aquele que condena deve estar sem pecado, não pode ser hipócrita: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra!” (Jo 8, 7). Contudo, a condição para que a condenação não seja executada é o arrependimento, o reconhecimento do erro, teórico e prático, com a sincera disposição de não mais falhar, o que é um julgamento feito pelo juiz sobre uma dificílima questão de fato, relativa à alma, sobre o coração humano, sobre a boa-fé ou a má-fé: “Nem eu te condeno. Vai. A partir de agora não voltes nunca mais a errar” (Jo 8, 11).

A atividade do juiz é tanto técnica como simbólica, e se refere aos valores mais elevados da comunidade, à Política, cuja teoria variou muito ao longo dos últimos séculos. Com a restauração dos estados nacionais, após o período chamado Idade Média, a função de juiz era exercida pelo monarca, que era considerado um delegado de Deus entre os homens, o que pode ser considerado um período de predomínio do que hoje chamamos de poder executivo. Em seguida, com a proposta de se alcançar uma razão objetiva para regular o comportamento social, essa razão se associou à ideia de um poder legislativo, sobrevindo um tempo de codificação, em que o Direito era o que estava nas leis e nos códigos, sendo o juiz a boca da lei, uma vez que ênfase estava na função legislativa. Contudo, toda lei exige interpretação e aplicação aos casos, inclusive dos valores fundantes do Estado, conforme o constitucionalismo, de modo que a atividade julgadora passou a ganhar cada vez mais destaque. O pêndulo jurídico passou da subjetividade do monarca para a objetividade da lei, e diante da necessidade de sua concretização a ênfase do Direto volta a destacar a subjetividade, desta vez do julgador, em confronto com a pretensa objetividade da Lei.

A dificuldade está, portanto, em encontrar uma objetividade para além da subjetividade do julgador, para que as decisões sejam proferidas segundo a norma pública e racionalmente estabelecida, e não segundo uma vontade meramente individual ou pessoal do magistrado, para que haja máxima previsibilidade nos julgamentos, ou segurança jurídica, sem prejuízo para a realização da justiça no caso.

Quanto à objetividade, a física moderna, tanto pela relatividade como pela orgânica quântica, demonstra que a posição do sujeito é fundamental para a determinação de sua relação com os fenômenos observados, e com a objetividade. Segundo a relatividade, não existe um ponto de Arquimedes material que sirva de referencial absoluto para as observações, devendo ser destacado que a relatividade trata apenas de fenômenos materiais, aqueles em que está envolvida uma troca local de partículas. Assim, o significado dos eventos depende da posição relativa dos observadores, dos referenciais adotados, dos sujeitos. Igualmente pela física quântica, a observação e o modelo de medição escolhidos são determinantes para o resultado do experimento.

A posição do sujeito, pois, importa física e psiquicamente, porque coloca a subjetividade dentro de um contexto, e essa posição é determinada tanto materialmente, dentro do espaço-tempo, como simbolicamente, em uma narrativa de mundo, um arcabouço teórico, que dá sentido aos eventos dentro do espaço-tempo, inclusive determinando a seta do tempo, a direção da História, e se o resultado da medição será em termos particulares ou ondulatórios, como partícula local com posição ou velocidade determinada ou como onda espalhada em um campo não local.

Outrossim, a objetividade só é possível se o sujeito estiver na posição correta, que inclua tanto uma posição material local quanto uma relação não local, ou transcendente. Para o juiz, a objetividade inclui, portanto, sua manifestação local, pelas teorias e razões expostas no processo, e sua relação não local, o arcabouço teórico que encarna e os símbolos que o movem, consciente e, principalmente, inconscientemente, como o demonstra a psicologia moderna, notadamente a psicologia profunda.

Quando o arcabouço teórico é mais definido, e nele está inserido conscientemente o magistrado, a previsibilidade do julgamento é maior, do que é exemplo claro a Suprema Corte dos Estados Unidos e a divisão filosófica entre conservadores e liberais. Mesmo assim, ambas as linhas filosóficas pecam por incompletude e incoerência, porque ainda trabalham, como exposto no artigo anterior, sob domínio do inconsciente, e porque a simbologia ocidental está fragmentada desde a modernidade, pela separação cartesiana e os seus efeitos prejudiciais à integridade do conhecimento científico no período subsequente, incluída a atual teoria do Direito.

Daí porque é necessária a restauração da cosmovisão Cristã, com sua adequada simbologia, para posicionar os sujeitos corretamente dentro de uma objetividade teórica integral, com unidade psíquica entre consciente e inconsciente, através do uso apropriado dos símbolos na sociedade.

O Estado, ou Igreja, a Ekklesia de Cristo, é um sistema de ideias corretas, adotado por um grupo de pessoas, um pensamento encarnado em pessoas que agem convenientemente, com fundamento na dignidade humana, que encarnam o Logos, sendo expressão viva da Sabedoria. O Cristianismo é também um sistema meritocrático de liderança, baseado em ideias, fundado no Logos, em que têm mais mérito e, portanto, mais autoridade aqueles que melhor encarnam consciente e permanentemente o respectivo sistema de ideias, manifestam o sistema jurídico em comportamento e linguagem.

O juiz Cristo é o que conhece biblicamente, porque O vive, o Logos, conhece o Princípio que dá unidade ao sistema e sustenta a totalidade e a integridade do Direito, mantendo conduta irrepreensível na vida pública e particular, sendo santo porque santo é o Pai, santa é a Lei, santo é o Logos, e por isso seu julgamento é imparcial, porque sua subjetividade é uniplurissubjetiva, ele é, objetivamente, a própria Humanidade, uma Ideia realizada em uma pessoa que compartilha essa Ideia em sua vida privada e profissional, mantendo a unidade social no plano moral, o que implica ser ético, e jurídico, o que significa ser justo.

Essa é a correta teoria, essa a simbologia que será, enfim, alçada à condição de verdade científica, o que é condição para a Paz, para a realização do Reino, quando “o poder de julgar” será entregue ao juiz Cristo (Ap 20, 4), depois que Jesus Cristo for devidamente reconhecido e elevado, em nossa simbologia prática, Religiosa, Política e Jurídica, ao lugar que lhe cabe, à direita de Deus.

Em verdade vos digo que, quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória, também vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28).

 

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