Judicialização da Saúde e Sociedade: o novo projeto do CNJ

09/08/2021

A judicialização da saúde é um fenômeno muito debatido nos últimos anos no Brasil.

Por isso, é chegada a hora de um novo cenário sobre o papel do Judiciário nas questões sobre o direito à saúde.

Neste sentido, no final de 2020 o Conselho Nacional de Justiça – CNJ construiu o projeto “JUDICIALIZAÇÃO E SOCIEDADE: Ações para acesso à saúde pública de qualidade”[1].

A finalidade principal é permitir que grande parte das pretensões sanitárias seja resolvida sem a participação do Poder Judiciário.

Para isso, o projeto foi distribuído em quatro fases. A primeira fase consistiu na oitiva de magistrados e gestores em saúde, que participaram de consulta sobre aspectos da saúde pública brasileira[2]. A segunda fase permitiu a reunião das respostas e o embasamento da terceira fase, em que os Comitês Estaduais de Saúde do CNJ construíram planos de ação voltados à melhoria da gestão executiva e judicial dos serviços de saúde e dos processos judiciais.

Por fim, na quarta e última fase, a partir do segundo semestre de 2021, todos os profissionais que atuam na judicialização da saúde – na linha de frente, como os integrantes do Sistema de Justiça, e também na gestão, como as Secretaria Municipais, Estaduais e o Ministério da Saúde, promoverão iniciativas para qualificar a prestação sanitária à população e reduzir o número de processos judiciais.

Alguns exemplos de planos de ação: a) utilização mais acentuada pelos magistrados dos NatJus - Núcleos de Apoio Técnico, previamente à prolatação de decisões judiciais; b) atuação coordenada dos entes federativos em inúmeros temas, como compra e fornecimento de tecnologias em saúde, gestão de leitos, entre outros; c) ampliação da transparência nas filas de atendimento e procedimentos sanitários; d) aumento da utilização de técnicas consensuais de resolução de conflitos, como os tribunais multiportas, uso da mediação e da conciliação; e) encontrar mecanismos para reduzir o custo das políticas de saúde.

Como se observa, são todos temas difíceis e que exigem a construção coletiva e a atuação conjunta da sociedade ao longo dos próximos anos.

Neste sentido, pretende-se inaugurar uma nova fase da judicialização da saúde no Brasil.

Ou seja, é um projeto de execução continuada, cujo sucesso vai depender de todos os atores sociais.

O resultado será a maior concretização da Constituição brasileira, que preconiza a saúde como direito de todos e dever do Estado.

A seguir são apresentados aspectos destacados do projeto do CNJ.

I – Diálogo interinstitucional para um SUS mais equânime

Instituído a partir da Constituição de 1988 e bastante conhecido da imensa maioria da população que freqüenta as Unidades Básicas de Saúde (UBS), o Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de seus méritos, teve pouca visibilidade e baixo reconhecimento ao longo de sua existência, em comparação como o seu congênere e inspirador inglês, o NHS (National Health Service).

A partir de março de 2020, quando a pandemia da Covid-19 começou a atingir mais seriamente o Brasil, as atenções da sociedade brasileira e do sistema político voltaram-se para essa instituição, tanto para o atendimento aos enfermos, quanto para a vacinação da população, ou mesmo para o controle de qualidade das vacinas realizado pela Anvisa. E este período tem sido extremamente penoso e pesaroso para prestadores de serviços e usuários do SUS, como de resto tem sido tempos difíceis em todo o mundo.

Muito antes da contaminação nacional com o coronavirus, em decorrência da elevada judicialização das políticas de saúde, o Fórum Nacional de Saúde, do Conselho da Justiça Federal (CNJ), já gestava um projeto (cujo nome dá título ao presente texto) buscando auxiliar na diminuição das demandas na área do direito sanitário, bem como aprimorar e fortalecer ações para o acesso a uma saúde pública de qualidade.

Este projeto iniciou-se com a colheita de informações junto à administração pública e ao Poder Judiciário, cujos dados estão consolidados no relatório elaborado pelo CNJ (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade.pdf) e na plataforma digital (https://judsaude.cloud.cnj.jus.br/DashBoard/) que permita maior interação com o usuário. Esses dados sobre a judicialização da saúde e sobre a administração subsidiarão os Comitês Estaduais de Saúde para elaboração de planejamentos estratégicos de atuação.

A ideia básica do projeto é a construção de ferramentas, por meio de diálogos interinstitucionais, que garantam maior e melhor acesso ao Sistema Único de Saúde, mediante ações propostas pelos comitês estaduais de cada unidade da federação, que poderão ser replicadas em outros estados.

Importante mencionar que não se está buscando intervir na política pública de saúde, muito menos criar novas políticas, mas auxiliar para que as políticas vigentes sejam efetivamente entregues aos usuários, em tempo e modo adequados, o que faltamente implicará na diminuição do fenômeno da judicialização da saúde.

Importante gizar que essa iniciativa do Fórum Nacional de Saúde/CNJ vem sendo construída em sintonia com várias instituições que integram o SUS, destacadamente o Ministério da Saúde, o CONASS e o CONASEMS, o que reforça a importância dos diálogos entre os diversos atores para superação das muitas dificuldades em tornar efetivo aquilo que foi preconizado na Constituição Cidadã de 1988.  

E os trabalhos dos Comitês Estaduais igualmente serão desenvolvidos a partir da interação com instituições e atores da judicialização da saúde, como secretarias de saúde, gestores, médicos, profissionais da saúde, magistrados, membros do ministério público, advogados, defensores, associações, dentre tantos outros que podem e querem colaborar na construção de “ações para acesso à saúde pública de qualidade”.

II – Transparência e filas de atendimentos

São muitos os desafios impostos ao Sistema Único de Saúde desde sua criação. A começar pela ambiciosa norma constitucional de tornar a saúde inclusiva, como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas” (art. 196, CF), mediante acesso universal e igualitário que, em 1988, imediatamente  passou a incluir cerca de 150 milhões de brasileiros. Hoje somos de 210 milhões de brasileiros.

Para além da universalização de usuários, há a gravíssima e intrincada questão do (sub)financiamento do SUS, cujos (insuficientes) recursos decorrem de contribuição da União, dos estados, Distrito Federal e municípios.

Todavia, as muitas dificuldades não se constituem em justificativas para impedir a melhoria do sistema. Ao revés, são elas a mola propulsora para implantação de projetos e a construção de um sistema que atenda aos primados constitucionais de justiça, equidade e solidariedade. E, no centro de boa parte das soluções está a tecnologia.

Urge, por exemplo, a criação de um prontuário eletrônico integrado, onde todos os usuários do SUS possam ter suas informações pessoais disponíveis (na internet ou em aplicativos), constando seus dados pessoais, histórico de consultas, exames, procedimentos, vacinas, entre outros. Há uma iniciativa bastante nova chamada Conecte SUS (https://conectesus-paciente.saude.gov.br/menu/home) que pode ser o início dessa integração. Mas não apenas os usuários devem ter suas próprias informações, mas elas devem estar acessíveis ao sistema de saúde, de modo que cada unidade de saúde possa obter informações sobre o paciente que é objeto de atenção daquele momento e seu histórico. Aliás, para controlar veículos, emplacamentos, transferências de titularidades e multas há um sistema bastante eficaz. Será que o princípio da dignidade da pessoa humana não está a exigir que o atendimento dos usuários do SUS mereça ao menos a mesma atenção que os carros?

E, tão importante quanto esse prontuário, é o atendimento à imposição constitucional de maior transparência no SUS, em especial nas filas para exames, procedimentos ou consultas com especialistas. Além de ilegal, a opacidade dessas informações tem ensejado muita judicialização por consultas, mas, principalmente, por procedimentos e até mesmo internação em UTIs.

Este é um desafio de grande monta, porque exige uma interação de informações entre os entes que integram o SUS, bem como os prestadores de serviços, sejam eles pessoas físicas ou instituições. Imagine-se uma cirurgia cárdica, solicitada por um médico do SUS num município de pequeno porte. O procedimento certamente será realizado em outra unidade da federação e, muito provavelmente, num hospital privado que fora contratado para prestar serviços ao SUS. Para esse exemplo, aparentemente sigilo, é indispensável analisar uma série de questões, a começar pela própria necessidade do procedimento, o grau de urgência, quais os estabelecimentos que oferecem e podem realizar esse serviço, qual ente (estado ou município) que custeará a cirurgia, entre tantos outros. Muitas vezes, questões médicas como essa culminam com favores políticos ou em judicialização da saúde. E nenhuma das alternativas, embora ontologicamente muito distintas, contribuem para o sistema como um todo.

Uma vez mais a tecnologia pode auxiliar, seja para organizar o procedimento das filas, seja para divulgação das mesmas. E isso tem sido feito em algumas unidades da federação, destacadamente no Estado de Santa Catarina e no Município de Joinville (https://listadeespera.saude.sc.gov.br/ e https://www.joinville.sc.gov.br/assunto/saude/filas/, respectivamente), que lançam informações sobre filas para consultas, exames e procedimentos na rede mundial de computadores, sempre preservando a identidade do usuário.

Repita-se, não se ignoram os desafios que estas iniciativas implicam, e são muitos. Mas não podem ser impeditivos para que sistemas de transparência sejam construídos, iniciando-se com projetos pilotos, talvez regionais ou municipais, com a integração das informações, protocolos de seleção dos usuários, revisão das prescrições/orientações médicas, posicionamento de cada paciente na fila não exclusivamente pela ordem de entrada, mas também segundo a necessidade e urgência, coordenação de informações entre municípios, estado, consórcios de saúde, hospitais, clínicas, etc.

O que não se pode admitir é a manutenção da atual estado de coisas, onde impera a falta de informação e, principalmente, a falta de atendimento dos usuários daquilo que já consta da política pública de saúde.

As filas e a transparências não se justificam por si mesma, tampouco se reivindica sua existência para apenas dar ciência à população sobre as demoras, ou qual posição um necessitado ocupa na lista de espera. Tanto a organização das pessoas em filas, como a publicização de dados, justificam-se como ferramenta de gestão, tornando translúcidas as falhas e omissões da administração pública, bem como possibilitando que esta mesma venha a enfrentar os maiores gargalos de atendimento, mediante programas específicos. Aliás, muitos gestores de saúde desconhecem a dimensão de suas filas de atendimentos, não possuem projetos para fazer frente a demandas específicas. Quantos esperam por cirurgia de cataratas, por exemplo? Qual o prazo para atendimento? Quantas pessoas ficarão cegas por falta de atendimento de algo que, do ponto de vista tecnológico, é bastante simples? Quanta judicialização haverá em decorrência na demora ou falta de atendimento?

Em suma, esse é um desafio que merece ser vencido, porque torna mais efetiva e justa as ações de saúde. Não será fácil, mas os primeiros passos têm que ser dados e com muita brevidade.

 

III – Solução consensual de conflitos.

No atual estágio de evolução da judicialização da saúde já não se podem ignorar os aspectos positivos e negativos que ela representa para o sistema de saúde e seus usuários.

Se é certo, e isso está bem demonstrado no relatório do CNJ, que o Poder Judiciário tem outorgado muitas reivindicações dos usuários no tocante a medicamentos, procedimentos e exames médicos, de modo a satisfazer interesses dos pacientes, igualmente é certo que isso tem impactado sobremaneira os orçamentos públicos, como a transferência de recursos para satisfação das ordens judiciais. Não se está adentrando no mérito da questão, apenas registrando que judicialização da saúde é uma via que muita vez atende ao usuário, mas desorganiza o sistema.

E, como consequência desse conflito, é indispensável que soluções organizativas sejam encontradas para satisfazer eventual direito dos usuários do SUS (e mesmo da saúde suplementar), sem que implique em prejuízo à política pública, coletividade ou outro usuário. Muito se poderia problematizar aqui, tratando de remédios de custo elevado, violação de prioridades em atendimentos, falhas nos serviços de saúde, violações de contratos na saúde suplementar ou demandas excessivas dos autores das ações. Todavia, no que interessa para qualificação do acesso à saúde, fundamental que se prevejam caminhos adequados para uma solução dos conflitos de interesses.

Nessa perspectiva, uma das linhas de ação contempladas no projeto do CNJ é a solução consensual de conflitos, mediante prevenção e desjudicialização da saúde (via da mediação e da conciliação).

Por força da Resolução nº 125/2010, do CNJ, secundada pelo art. 165, do Código de Processo Civil, a justiça estadual e a justiça federal instituíram centros de solução consensual de conflitos (CEJUSC e CEJUSCON, respectivamente) que poderão atuar até mesmo na fase pré-processual.

Com a Recomendação nº 100/2021, que fomenta o uso de soluções consensuais em demandas sobre o direito à saúde, ganha maior relevo essa perspectiva, mediante o estreitamento dos canais de diálogo entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo, com soluções amigáveis e alternativas terapêuticas para aqueles que demandam.

A experiência indica que a inacessibilidade ao SUS e as dificuldades de consulta aos protocolos, diretrizes, normativas e listas de medicamentos e serviços (RENAME e RENASES) levam aos profissionais de saúde prescreverem ou orientarem os usuários a serviços e produtos que não estão disponibilizados no sistema, que poderiam ser facilmente substituídos por outros.

Nesse contexto, tanto uma atuação extraprocessual preventiva, quanto uma ação processual resolutiva, podem ser adotadas, mediante melhores e mais eficazes canais de diálogos entre autor e réu (mais especificamente, usuário do SUS e administração pública).

Métodos autocompositivos para a solução dos litígios em saúde certamente evitam uma desnecessária judicialização e conseguem em favor dos pacientes resultados mais rápidos e eficazes. Do ponto de vista da administração, também evitará maiores custos e perda de energia com ações judiciais e procedimentos administrativos para instruir as respectivas ações.

Indispensável, para o sucesso do projeto, não apenas a estruturação física e qualificação do Poder Judiciário para acolher e bem encaminhar as demandas, mas igualmente uma postura colaborativa de ambas as partes. Tanto o paciente deve estar aberto para aceitar alternativas para seu atendimento ou medicamento, por exemplo, quanto a administração deve estar disposta a ofertar soluções a tempo e modo adequados, até mesmo, em casos complexos, propiciando juntas médicas para bem orientar o usuário do SUS.

 

IV – Telessaúde.

A distribuição geográfica de profissionais de saúde especializados pelo país foi um dos pontos destacados no Relatório do CNJ, onde se constata a concentração de especialistas nos grandes centros e vazios assistenciais em localidades mais remotas. Obviamente que são várias as causas, uma delas a falta de estímulos para destacados profissionais da saúde se instalarem em locais com menores recursos humanos e econômicos. Uma desejável carreira de médico público também poderia ser alternativa para superação do problema, ou mesmo a edificação de grandes complexos médicos-hospitalares em diferentes regiões do país, de modo a atender a população e fomentar desenvolvimento. Todavia, essas são políticas de Estado as quais merecem apenas essas breves linhas.

Na outra ponta, das soluções possíveis de serem abraçadas de imediato, e como medida de prevenção à judicialização, destaca-se a telemedicina ou telessaúde. Se a pouco havia resistências quanto à utilização de atendimento virtual de pacientes, a ponto do Conselho Federal de Medicina recuar de regulamentação editada por meio da Resolução nº 2227/2018 (https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2227), com a pandemia da covid-19 e o advento da Lei nº 13.989/20, a utilização da tecnologia se tornou uma necessidade.

A revogada resolução surgiu depois de aprofundado debate organizado pelo CFM, nos quais profissionais do direito e da saúde estabeleceram consenso que, antes de afastar os pacientes dos médicos, como diziam alguns críticos, aproximava da medicina pessoas que tinham pouco ou nenhum acesso a ela. Mas havia certo preconceito com o atendimento não-presencial dos pacientes.

Pois bem, o que antes era vedado, passou a ser uma necessidade, tanto para consultas, mas também prescrições, com eficiente sistema de controle do receituário e autenticação da origem pelas farmácias.

Essa nova realidade e a tecnologia abriram espaço para atendimento virtual e a perspectiva para superação das dificuldades de atendimento em localidades remotas e sem atendimento especializado.

E essa é uma das linhas de atuação que podem ser desenvolvidas pelos Comitês, em sinergia com a administração pública.

É evidente que a atenção não pode se resumir a uma “conversa” virtual, sendo imprescindíveis atendimentos anteriores por uma Unidade Básica de Saúde, bem como eventuais exames clínicos. Por vezes, a atenção há que se feita não apenas ao paciente, mas também ao profissional de saúde que está atendendo presencialmente o usuário do SUS.

E isso já é realidade no Telessaúde do Rio Grande do Sul, que atende remotamente os profissionais de saúde que necessitam de informações especializadas, por meio de teleconsultoria (https://www.ufrgs.br/telessauders/teleconsultoria/), que funciona ao lado do telediagnóstico (https://www.ufrgs.br/telessauders/telediagnostico/). Referidos sítios eletrônicos esclarecem seus respectivos funcionamentos e importância, bem como noticiam, em seu Portal da Transparência (https://www.ufrgs.br/telessauders/sobre-o-telessauders/resultados/) as quantidades de atendimentos realizados em cada ano, por unidades de saúde de vários municípios brasileiros.

A experiência do Telessaúde Rio Grande do Sul dá indícios dos caminhos que podem ser seguidos, da tecnologia que pode ser usada, dos convênios que podem ser celebrados entre a administração pública e instituições públicas e/ou privadas. E esse programa já está incorporado pelo Ministério da Saúde, desde 2015, embora tenha utilização limitada.

De qualquer sorte, trata-se de importante ferramenta que pode auxiliar tanto nos protocolos de atendimento, no atendimento dos próprios pacientes ou mesmo no apoio aos profissionais de saúde, em substituição ao encaminhamento dos pacientes para consulta presencial com especialista.      

V – Natjus – Núcleo de Apoio Técnico ao Poder Judiciário

Os Núcleos de Apoio Técnico ao Poder Judiciário – Natjus se transformaram em importante mecanismo de qualificação dos processos judiciais na área da saúde.

O Natjus é um núcleo de apoio aos magistrados que julgam processos envolvendo medicamentos e outros produtos em saúde. A finalidade é prestar informações técnicas, uma espécie de segunda opinião, a fim de verificar a validade e a juridicidade do pedido veiculado judicialmente. Seu escopo não é substituir as orientações firmadas pela Conitec, mas especialmente preencher lacunas informativas.

Neste sentido, o projeto do CNJ fomenta a ampliação do uso do NatJus pelos magistrados brasileiros, vez que muitas unidades federativas ainda não consolidaram a instituição do núcleo de apoio técnico.

Por isso, é preciso que o Judiciário e os gestores em saúde mobilizem esforços para criação e ampliação do serviço. É possível contratação direta de profissionais qualificados para apresentação de notas técnicas ou então a celebração de convênios ou acordos com instituições, como universidades ou hospitais.

Além disso, existe o serviço nacional prestado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, que possui profissionais da área da saúde que ficam 24h disponíveis para prestar a assessoria aos magistrados do Brasil.

Todo o trabalho do Natjus está localizado na plataforma https://www.cnj.jus.br/e-natjus/, cujo acesso é feito diretamente pelos magistrados mediante uso de sigla e senha.

Importante anotar que há a necessária transparência do sistema, pois todas as notas técnicas produzidas ficam disponibilizadas para consulta pública (sem a necessidade de sigla e senha de acesso), permitindo que a população e os usuários do Poder Judiciário acompanhem o trabalho e também utilizem as conclusões para fins interpretativos.

Como se observa, o Natjus é ferramenta indispensável à judicialização da saúde e o seu aprimoramento vai sempre permitir maior qualidade das decisões judiciais

VI – Medicamento nas farmácias. Como combater o desabastecimento e os autos custo de aquisição.

Problema central em muitas localidades, antecedente das muitas mazelas antes referidas, consiste na simples falta de medicamentos das listas RENAME nas farmácias oficiais.

São diversos fatores que levam à falta de medicamentos nos postos de saúde, podendo ser elencada a ausência de recursos para aquisição como um das principais, mas não a exclusiva. Também concorrem as falhas administrativas, as licitações frustradas, a falta de entrega dos produtos pelo distribuidor, problemas logísticos, fraudes às licitações, entre tantos outros.

Esta questão acha-se satisfatoriamente resolvida no Estado do Paraná, que constituiu o Consórcio Paraná Saúde (https://www.consorcioparanasaude.com.br/), reunindo quase que a totalidade dos municípios paranaense, na aquisição centralizada dos medicamentos, com distribuição a cargo da Central de Medicamentos do Paraná (Cemepar).

Todos os municípios paranaenses se consorciaram, a partir da liderança da Secretaria Estadual de Saúde, para aquisição de medicamentos de modo centralizado. Cada ente mantém sua autonomia para discriminar o tipo do produto que necessita e sua quantidade, mas a aquisição passou a ser centralizada pelo próprio consórcio e a distribuição fica a cargo da CEMEPAR, que entrega os medicamentos nas diferentes regionais de saúde. Cada consorciado aporta o recurso necessário para a aquisição dos produtos que ele mesmo selecionou, bem como o Estado do Paraná aporta a sua parte (https://www.consorcioparanasaude.com.br/?page_id=846) dentro da pactuação bipartite.

Com a compra consorciada, os municípios paranaenses obtêm vantagens econômicas a partir da econômica decorrente da escala de aquisição, sendo as unidades da federação que compram os medicamentos com um dos menores preços do Brasil.

Também não há notícias de fraudes às licitações, de sujeição da administração municipal a pequenos distribuidores ou a poucos concorrentes nos processos licitatórios, ou licitações frustradas (e compras emergenciais).

Até mesmo aspectos penais, tão comuns de serem noticiados em relação à compra de medicamentos pelas administrações municipais, passam ao largo do Estado do Paraná, havendo autêntica blindagem dos administradores, vez que não participam diretamente do processo de aquisição.

As bases para a introdução de modelo semelhante em todos os estados já estão lançadas, vez que esta experiência exitosa já vigora no Paraná desde junho de 1999.

VII – Judicialização e políticas públicas

Outra linha de atenção do projeto reside numa melhor divulgação, junto aos magistrados, das políticas públicas existentes e o modo de funcionamento da administração pública.

Há a falsa impressão que nada funciona, que a assistência médica e farmacêutica são absolutamente débeis ou equivocadas, que os recursos não são adequadamente aplicados e que reina uma incompetência plena na administração pública. Ainda que haja lugares em que a carência e deficiência sejam elevadas, essa não realidade não pode ser havida como regra.

Por trás do funcionamento do Sistema Único de Saúde há uma política estruturada, discutida em todos os níveis da administração pública e com a participação da comunidade. Há uma política pública programada para atender a saúde de mais de 210 milhões de brasileiros com “ações e serviços para sua promoção, proteção e prevenção”, na linha do disposto no art. 196 da Constituição Federal.

E o desconhecimento sobre essa estrutura, bem como sobre os agentes públicos responsáveis por mantê-la em funcionamento, leva a uma elevada taxa de sucesso nas demandas da saúde, como constatado pelo relatório feito pelo CNJ. Os índices de sucesso superam a casa dos 80% dos pedidos, segundo dados obtidos pelo DataJud/CNJ em 2020. E isso é motivo para aumento progressivo da demanda judicial sobre direito à saúde, porque há praticamente certeza de sucesso na pretensão, seja ela qual for, gerando um ciclo vicioso.

Penso que descabe aqui discorrer sobre os muitos exemplos de litigâncias equivocadas ou extremadas, como tratamentos experimentais no exterior ou exigir produtos de determinada marca. Mas apenas assinalar que a judicialização da saúde se retroalimenta não apenas das omissões ou falhas administrativas, mas também do índice elevado de deferimento de liminares.

E, para além das resoluções consensuais de conflitos, uma linha de ação projetada pelo Fórum Nacional da Saúde reside em realizar eventos e cursos de especialização para magistrados e servidores sobre direito à saúde, onde é possível conhecer os muitos regramentos legais e infralegais, assim como o funcionamento prático da administração pública ou mesmos de hospitais e clínicas médicas.

O conhecimento das políticas públicas em vigor e as alternativas que oferecem em relação às pretensões judicialmente deduzidas são a peça-chave para a solução de muitos conflitos.

O aprendizado sobre aspectos médicos, como a existência ou não de evidências científicas, quais os modos de obtenção de informação sobre saúde baseada em evidência (ou Medicina Baseada em Evidências, ou simplesmente MBE), quais são as entidades reconhecidas para fornecimento de informações seguras sobre MBE, como é feita a aprovação de tecnologia pela ANVISA ou mesmo a incorporação de tecnologia do SUS pela CONITEC são expertises hoje indispensáveis para quem vai julgar esses temas.

VIII – Planejamento estratégico.

As iniciativas elencadas nas partes anteriores não são, por evidente, um rol taxativo de ações que podem ser realizadas pelos Comitês de Saúde para tornar mais efetivo o acesso à saúde de qualidade para a população, bem como para reduzir a judicialização. São, com efeito, sugestões que devem ser agregadas a muitas outras propostas a serem apresentadas pelos Comitês de Saúde dos Estados.

Não há qualquer expectativa que as diferentes sugestões esgotem as possibilidades ou solucionem os muitos problemas que envolvem o Sistema Único de Saúde. Até porque, como é de sabença geral, o maior mal que o acomete é o subfinanciamento, o que somente pode ser solucionado a partir de uma maior fatia do orçamento e do aumento da arrecadação tributária do Estado, tema esse que extrapola o âmbito do projeto.

De qualquer sorte, muito há para ser feito independentemente de recursos extraordinários, mas com visão sistêmica, vontade de realização e planejamento estratégico.

O planejamento estratégico consiste em ferramenta fundamental para verificar o momento da empresa ou instituição e projetar futuras ações de médio e longo prazo, direcionando esforços para que os projetos sejam uniformes e tenham coerência. Podem ser táticos ou operacionais. Estes últimos relacionados às ações de níveis executivos das instituições, normalmente de mais longo prazo. Os operacionais envolvem todos os níveis, com ações de curto prazo, vinculadas à concretização dos objetivos superiores.

O Ministério da Saúde, por exemplo, por meio da Portaria GM/MS nº 307/2021, aprovou o planejamento estratégico institucional para os anos de 2020-2023, onde estão elencadas a Missão, visão, valores e o Mapa estratégico do ministério. Dentre os 21 objetivos estratégicos elencados, destaco: “Ampliar o acesso a serviços de saúde de qualidade e em tempo adequado;”. Referido documento elenca os objetivos, mas não dispensa o detalhamento necessário à sua execução, o que será feito por meio do Plano Estratégico Institucional (PEI), como enuncia o art. 4º da portaria.

O plano estratégico está divulgado no sítio eletrônico do Ministério (https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_nacional_saude_2020_2023.pdf), onde há 20 ações previstas e indicadores que se buscará alcançar até 2023, onde se observa, por exemplo:

Para o presente exame, mais importante que o conteúdo de cada meta propriamente dita, importa destacar que um planejamento estratégico deve conter índices de referência e previsão daquilo que se pretende obter ao final do período.

Aqui se insere o projeto do CNJ, cujo nome, repita-se, dá título ao presente texto, onde se pretende que as iniciativas apresentadas pelos Comitês estaduais de Saúde contenham também a organização por meio de metas, indicadores, índices de referências e um responsável pela implantação/acompanhamento da meta.

Importante assinalar que a proposta do Fórum da Saúde está em sintonia com o planejamento do próprio Ministério da Saúde, vez que ambas buscam aprimorar o acesso à saúde no tempo e na qualidade, havendo sinergia entre as proposições. Embora se busque o diálogo interinstitucional para o cumprimento das metas, o que as distingue sobremaneira é que a iniciativa do Fórum Nacional da Saúde tem por fim último a solução dos litígios e a redução da judicialização da saúde, ao passo que o Ministério busca atingir seus objetivos específicos.

Assim, o planejamento estratégico de cada Comitê terá característica operacional, a ser atingida em curto ou médio prazo, mediante ação com meta definida e um responsável por sua gestão.

Cada proposta, portanto, deverá ser preenchida no seguindo modelo indicado, contendo a indicação de: a) situação problema; b) ação a ser desenvolvida; c) objetivo que se busca atingir com a ação; c) referência e indicador de avaliação de resultado; d) coordenador/responsável pela atividade.

E, tão importante quanto à estruturação com suas diversas ações, indicadores e medições, é compreender o planejamento estratégico como um moto-contínuo envolvendo: planejar, fazer, checar e corrigir, como demonstra sua clássica imagem:

Considerações finais

O debate sobre a judicialização da saúde exige a atuação coordenada de toda a Sociedade.

De nada vale a apresentação de ideias e a construção de planos se não existir o comprometimento das pessoas e das instituições.

Com base neste espírito, espera-se o engajamento necessário para a concretização do projeto JUDICIALIZAÇÃO E SOCIEDADE: Ações para acesso à saúde pública de qualidade[3], iniciado em 2020 e com duração continuada.

Vale dizer, a realização do direito à saúde previsto na Constituição da República Federativa do Brasil não pode ser apenas uma promessa, mas uma  meta a ser perseguida por todos.

Portanto, a melhoria dos serviços em saúde e também dos processos judiciais permitirá maior satisfação social e o aumento da qualidade do trabalho prestado pelo Estado, principalmente por gestores (Poder Executivo) e por magistrados (Poder Judiciário).

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade/Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade-16072021.pdf (cnj.jus.br). Acesso em: 02 Ago. 2021.

[2] “O levantamento feito junto aos Poderes Executivo e Judiciário, por sua vez, foi realizado via aplicação de questionários eletrônicos com quatro púbicos distintos: Tribunais (estaduais e federais), Magistrados (Estaduais e Federais), Órgãos Gestores das Unidades Federativas e Distrito Federal e Órgãos Gestores dos Municípios. Cada um desses grupos respondeu um questionário específico que esteve disponível para preenchimento entre 23 de setembro e 13 de novembro de 2020.” BRASIL. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade/Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade-16072021.pdf (cnj.jus.br). Acesso em: 02 Ago. 2021, p. 23.

[3] BRASIL. Judicialização e saúde: ações para acesso à saúde pública de qualidade/Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: Relatorio_Judicializacao-e-Sociedade-16072021.pdf (cnj.jus.br). Acesso em: 02 Ago. 2021.

 

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