Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira
A PRATICABILIDADE DO FEDERALISMO COOPERATIVO
Dentre as muitas variáveis, reflexos e aspectos estruturantes – do ponto de vista jurisdicional, administrativo, processual, normativo-constitucional, político, econômico, social e de direitos fundamentais - do julgamento do Tema 1234 pelo Supremo Tribunal Federal, como foi salientado na Parte 1[i], é objeto desta Parte 2, particularmente, o Federalismo Cooperativo.
O Federalismo, sinteticamente, pode ser caracterizado como o estabelecimento e a divisão de competências – legislativas e materiais - em razão da própria divisão de espaços territoriais (unidades) dentro de um mesmo limite territorial (ente central). Assim, definem-se atuações para as unidades componentes da Federação e para o próprio ente central, essas em matérias que necessitam ter uma coesão institucional, face temas comuns que impõem um tratamento uniforme por todo o território federal, para se manter uma integridade nacional, daí se caracterizando uma Nação.
Conforme Pierre-Joseph Proudhon, para quem todos as constituições políticas e os sistemas de governo, incluído o Federalismo, se resumem no equilíbrio da autoridade pela liberdade e da liberdade pela autoridade, a Federação é um contrato político, um pacto, uma convenção ou aliança, pelo qual “um ou mais grupos de comunas ou Estados, obrigam-se recíproca e igualmente uns em relação aos outros para um ou mais objetos particulares, cuja carga incumbe especial e exclusivamente aos delegados da federação”[ii].
A doutrina especializada[iii] ainda classifica o Federalismo conforme alguns critérios já consolidados, como o histórico (Federalismo por agregação e por desagregação), a divisão de competências (Federalismo dual ou competitivo, cooperativo e novo Federalismo pós-cooperativo), o equilíbrio entre as unidades (Federalismo simétrico e assimétrico) e o grau de concentração de poder (Federalismo centrípeto, centrífugo e de equilíbrio).
Em particular, para este texto, o Federalismo Cooperativo é a forma de divisão e exercício das competências constitucionais dos entes federativos que possibilita um atuação conjunta e apoio mútuos, dado o compartilhamento de competências (legislativas e materiais), notadamente entre as unidades e o ente central.
Assim, no que pertine às competências materiais e legislativas sobre saúde pública, colhe-se do texto constitucional que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, II) e legislarem concorrentemente sobre “defesa da saúde” (art. 24, XII).
A Constituição Federal ainda dedica, no título sobre a Ordem Social, uma seção especial a respeito da “Saúde”, discriminando deveres ao Estado (lato sensu) para implementação de políticas sociais e econômicas, criando, para o exercício de ações e serviços públicos de saúde, uma rede interfederativa regionalizada e hierarquizada entre as esferas federal, estadual e municipal, constituidora do Sistema Único de Saúde.
Daí se vê o compartilhamento de competências inerente ao Federalismo Cooperativo, seja em relação à competência material comum, seja no que se refere à competência legislativa, que é concorrente, vale dizer, há estabelecimento de que a lei sobre direito à saúde seja de natureza geral pela União e suplementar para os Estados, demonstrando também o imbricamento legislativo entre as unidades e o ente central.
O Federalismo, como divisão de competências institucionais, não se restringe aos Poderes Executivo e Legislativo. Igualmente é delimitado para o Poder Judiciário, na definição das competências das justiças componentes de cada ente federativo, ou seja, competência da Justiça Federal para julgar causas em que é parte a União (CF, art. 109, I), e competência da Justiça Estadual para quase todas as demais causas em que a União não for parte[iv].
Nesse contexto, as competências dos órgãos judiciários federais e estaduais atuam em campo delimitado constitucionalmente e, variadas vezes, discriminado pela interpretação dos Tribunais Superiores, como se dá nos Conflitos de Competências entre tribunais, entre tribunal e juízes ou entre juízes vinculados a tribunais diversos (CF, arts. 102, I, ‘o’ e 105, I, ‘d’).
A praticabilidade[v] do Federalismo Cooperativo foi exercida no processamento e julgamento do Tema 1234 perante o próprio Tribunal da Federação, assim conhecido, dentre outras[vi], pela competência de dirimir conflitos entre os entes federativos, nos termos do art. 102, I, ‘f’, da Constituição Federal, a saber, processar e julgar “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta”.
Sobre relevante tema não se pode prescindir e expor excerto do voto do Ministro Celso de Mello:
A Constituição da República confere, ao Supremo Tribunal Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art. 102, I, ‘f’), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional, o poder de dirimir as controvérsias, que, ao irromperem no seio do Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira. A aplicabilidade da norma inscrita no art. 102, I, ‘f’, da Constituição estende-se aos litígios cuja potencialidade ofensiva revela-se apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação. Doutrina. Precedentes. (ACO 1.048. Questão de Ordem, Relator: Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 30.08.2007).
Na Alemanha, o respectivo Tribunal Federal Constitucional, segundo Karl Doehring, tem dentre suas competências essenciais as disputas “entre a federação e seus estados membros no que tange às competências constitucionais”[vii].
Importa mencionar que o Tema 793/STF (RE 855.178) que, inclusive, foi objeto do Recurso Extraordinário em que o Tema 1234 foi julgado, já tinha equacionado adequadamente a controvérsia jurisdicional sobre as competências das justiças federal e estadual para o julgamento de demandas de fornecimento de medicamentos. O julgamento dos embargos de declaração do Tema 793 trouxeram razões clarividentes sobre o Federalismo Cooperativo em âmbito jurisdicional que, nada obstante, foram obscurecidas por interpretações dissonantes da determinação da Corte Constitucional, uma delas advindas do Superior Tribunal de Justiça no Incidente de Assunção de Competência IAC n. 14.
Daí a oportunidade de se ter afetado o Tema 1234 como tema de Repercussão Geral e, principalmente, se ter aberto um diálogo institucional e interfederativo de relevo, que culminou no estabelecimento de teses que, oxalá, possam contribuir com soluções da problemática da judicialização da saúde pública, seja no nível jurisdicional, como também no político-administrativo.
A cooperação exercida durante a tramitação processual é demonstrada pela criação de Comissão Especial formada por diversos sujeitos representativos da Federação brasileira, como apontado no voto do Relator:
A Comissão Especial, como método autocompositivo, no âmbito desta Corte, nos autos deste RE 1.366.243, propiciou a abertura de manifestação dos seguintes Entes ou Órgãos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios: (i) 12 (doze) membros representando a União, indicados pela Presidência da República/Ministério da Saúde e pela Advocacia-Geral da União, além de membros indicados pelo Fundo Nacional de Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde, pela Conitec e pela Anvisa; (ii) 6 (seis) membros representando os Estados e Distrito Federal; e (iii) 6 (seis) membros, representando a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e a Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM).
Observadores institucionais do Federalismo nacional também foram chamados ao feito, como o Senado Federal, a Câmara dos Deputados e o Tribunal de Contas da União. A abertura dialogal ainda se deu para diversas entidades[viii].
A cooperação foi construída ao longo de 23 sessões autocompositivas, além de outras reuniões no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite.
A conclusão dos trabalhos, posta para o julgamento do Tema 1234, foi “sobre 3 (três) acordos, sendo 1 (um) firmado na esfera judicial (na Comissão Especial do presente RE), e 2 (dois) na seara extrajudicial, negociados de forma direta entre os Entes Federativos no âmbito da CIT do SUS” (grifos no original do voto).
O julgamento do Tema 1234 demonstrou que o Federalismo Cooperativo não se limita aos clássicos titulares dos poderes de cada ente federativo, qual seja, o Poder Executivo, alargando-se, igualmente, para o Poder Judiciário, por intermédio da Corte Constitucional, concretizando, enfim, ideais de compartilhamento, apoio mútuos e consensos possíveis em um Federalismo complexo como é o do Brasil e, particularmente, ante as competências legislativas e materiais sobre direito à saúde pública.
Como ressaltado no voto do Ministro Gilmar Mendes:
Assegurou-se o nivelamento das informações e empoderaram-se os envolvidos presentes a buscarem construções coletivas do problema em governança colaborativa, por meio da cocriação de soluções gestadas coletiva e democraticamente.
A atuação do Supremo Tribunal Federal nesse contexto, inequivocamente, demanda uma abertura hermenêutica da jurisdição constitucional à compreensão e conformação da realidade jurídica, econômica e social experimentada.
A súmula vinculante n. 60, editada em razão do julgamento do Tema 1234, de igual modo é expressa sobre a cooperação realizada, dispondo que
O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática de repercussão geral (RE 1.366.243).
Referida governança judicial colaborativa é a que se espera seja cumprida, doravante, pelos sujeitos processuais e administrativos acerca da judicialização da saúde, mantendo-se a praticabilidade do Federalismo Cooperativo assentado neste histórico julgamento.
Notas e referências:
[i] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/judicializacao-da-saude-e-o-tema-1234-de-repercussao-geral-parte-1
[ii] PROUDHON, Pierre-Joseph. Do Princípio Federativo, trad. Francisco Trindade, São Paulo: Editora Imaginário, 2001, p. 90.
[iii] LOPES FILHO, Juraci Mourão. Competências Federativas na Constituição e nos precedentes do STF, 2ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2019, p. 41-42.
[iv] Abstrai-se, para a presente análise, as denominadas justiças especializadas – trabalhista, eleitoral e militar.
[v] “Praticabilidade é o nome que se dá a todos os meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis. Como princípio geral de economicidade e exequibilidade, inspira o direito de forma global. Toda lei nasce para ser aplicada e imposta, por isso não falta quem erija a praticabilidade a imperativo constitucional implícito” (DERZI, Mizabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, 4ª ed., Belo Horizonte: Editora Fórum, 2021, p. 148).
[vi] O STF, como Tribunal da Federação, pode também assim ser caracterizado em razão das seguintes disposições constitucional: art. 36, III e 102, I, ‘a’ e ‘e’.
[vii] DOEHRING, Karl. A função do Tribunal Federal Constitucional Alemão na qualidade de principal guardião da Constituição, dos termos da lei e da democracia, In, O Federalismo na Alemanha, São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1995, p. 207.
[viii] “(...) 1 (um) representante de cada um dos seguintes órgãos/entidades: Procuradoria-Geral da República; Conselho da Justiça Federal (CJF); Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil; Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG); Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); Associação dos Juízes Federais (Ajufe); Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Conselho Federal de Medicina; Conselho Federal de Farmácia; Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus); grupo operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal; Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM); Defensoria Pública da União; e Grupo de Atuação da Estratégica da Defensoria Pública nos Tribunais Superiores (Gaets)”. (eDOC 125, ID: 65ef558a)”. Extraído do relatório do voto do Relator.
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