Jovens em uma “terra de gigantes”. Unidos contra a tutela do Estado

12/03/2016

Por Pedro Scuro Neto - 12/03/2016

Nessa terra de gigantes, a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes.

Humberto Gessinger

Depois do golpe que derrubou o presidente constitucionalmente eleito, a juventude brasileira, decepcionada com a política, tomou o destino em suas próprias mãos. Postura “arrogante”, disseram os adultos, em particular diretores e diretoras de escola, que ao perceberem qualquer movimentação dos estudantes imediatamente ligavam para o DOPS. Foi quando jovens que não tinham sangue de barata resolveram se impor, não pela rebeldia ou mera contestação, mas por sua capacidade “de se opor ao sistema”, de ser uma “resposta social”, que perpassando toda tendência contrária à ditadura, materializou-se em “contestação política” e estabeleceu “uma forma possível de se pronunciar diante do processo histórico e de constituí-lo”.

De lá para cá quase nada mudou. Os estudantes seguem agitando por governança eficaz e por uma sociedade robusta e solidária. A diferença é que as direções das escolas não ligam para os psicopatas da DOPS, mas para os jagunços da PM. Os jovens seguem lutando por inclusão social, nem sempre de forma consequente, mas sempre sintonizados com a modernidade e sempre encontrando oposição feroz e sistemática. Sobretudo na escola, a mais autoritária das instituições brasileiras, o principal obstáculo ao desenvolvimento de uma educação de qualidade.

A TURMA DA RAPADURA

Nesse contexto retrógado e opressivo, no final dos anos 90 a justiça restaurativa surgiu como ferramenta de transformações sociais em áreas em que os cidadãos, especialmente jovens, são fortemente tutelados. Caso da Justiça e da Educação, que passariam a ser objeto de ativa participação da cidadania. A estratégia avançou, embora quase duas décadas depois os resultados sejam ambíguos, pois os protagonistas das pretendidas transformações “entregaram a rapadura”, rendendo-se às primeiras reações contrárias, mesmo insignificantes.

Na Justiça, inicialmente, a “turma da rapadura” descaracterizou a justiça restaurativa aplicando-a como “atendimento”, enfatizando as necessidades do infrator e do próprio sistema, que demorou a acolher a novidade, e quando o fez a interpretou como curiosidade e redutor de tensões cotidianas. Do mesmo modo que a mediação, um procedimento para maximizar a área de entendimento das partes em conflito. A “turma” insiste que o que faz (“círculos”) não é mediação, mas os resultados de ambas as práticas praticamente são os mesmos (“fazem as pessoas se sentirem bem, mudam-nas, vão ao fundo da alma”[1], etc.)

Os precursores da justiça restaurativa, por sua vez, sabiam que haveria efeitos terapêuticos, porém não tinham intenção de competir com mediação nem de propor mais um brinquedinho para operadores do Direito. Seu enfoque era macro, voltado à segurança pública, à ineficácia do sistema e sobretudo aos modos como na Justiça as vítimas são preteridas e manipuladas – de fato, como afirma o ícone da magistratura brasileira, é melhor “não ser vítima de um crime, pois se for o problema é seu”.[2]

Os precursores queriam – e para tanto montaram experimentos científicos controlados – demonstrar as vantagens competitivas da JR em relação ao sistema convencional, que, malgrado todos os seus defeitos representa um dos mais valiosos patrimônios da humanidade. Requer, por isso mesmo, comprovação das vantagens e benefícios da justiça restaurativa, sem o que é impossível pensar em legislação alternativa. Tarefa por demais complexa quando a JR está, assim como a mediação, encabrestada à tutela estatal.

PAZ SEM VOZ

Os efeitos do encabrestamento são ainda piores na Educação. Nela, a burocracia logo entendeu que a justiça restaurativa era uma ameaça e desde então procura desqualificá-la. Por exemplo, desconhecendo que os precursores anteciparam a deterioração do clima escolar, posteriormente confirmado: “entre cadeiradas, roubos e um clima de insegurança, a escola pública brasileira está bem longe de ser um espaço democrático e igualitário”. [3] De fato, no Distrito Federal, Belém, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, 69,44% de 12 mil alunos entrevistados queixaram-se de roubo na escola, 37% foram roubados uma ou mais vezes dentro da escola, 21,7% viram canivetes e 12,1% revólveres.

Bem diferente da “resposta cabal” dada pelas intervenções da própria burocracia, que, segundo “estudos recentes”, teriam “contribuído sensivelmente para reduzir os índices de violência e consumo de droga, dentro da escola, e em seu entorno”.[4] Ao mesmo tempo, sobravam tolices sobre a justiça restaurativa, ser “descontextualizada de uma concepção mais abrangente de educação, deslocando o foco para o comportamento antissocial e suas implicações na esfera da justiça”.

Tudo isso não bastasse, os precavidos burocratas cuidaram que futuras intervenções nada tivessem de justiça restaurativa, mas de “convivência” e “cultura de paz”. Algo que a turma da rapadura aceitou e por isso foi premiada com gordos orçamentos. Por exemplo, quase 2 milhões de dólares gastos em um projeto para apenas 9 estabelecimentos na cidade de Santos, sem medir o clima escolar antes, durante e depois, ou redução de vitimização ou danos. Fala-se de "experiências bem-sucedidas", sem dizer porquê nem se os “resultados” foram graças à "justiça restaurativa" ou a qualquer outra iniciativa, até mesmo do  crime organizado.

Cultura de paz, mas “paz sem voz, que não é paz, é medo”. Comprovado no final de 2015, quando a mesma burocracia que patrocina a “turma da rapadura” promoveu em São Paulo um massacre dos estudantes secundaristas. Os mesmos burocratas que repudiam a conscientização política dos estudantes[5], sustentaram a ditadura e agora financiam projetos que reduzem grêmios estudantis à condição de “guardiães” dessa paz de fancaria. Grêmios que deveriam ser, como a justiça restaurativa, instrumentos não de tutela, mas de emancipação.

Com as ocupações, a rotina ficou diferente. Os estudantes assumiram as atividades de manutenção: ficaram responsáveis pela limpeza e pela cozinha. A vizinhança participou doando alimentos e produtos de limpeza. Outras pessoas ajudaram organizando debates, oficinas e shows como os do fim de semana. Ao longo de quase um mês de ocupação, os alunos tiveram aulas sobre urbanismo e especulação imobiliária, questões indígenas, movimento negro, comunicação não violenta e questões de gênero, além de oficinas de estampagem de camisetas, jornalismo e dança, entre outras coisas.

“Minha relação com a escola mudou. A gente agora se sente dono dela e não tem volta. Queremos que a escola tradicional seja mais como a escola ocupada”. (Gabrielle Menezes, estudante)

“Vamos perguntar o porquê em sala de aula: por que a gente tem de sentar e ficar 50 minutos para ver uma coisa que pode ser dita de um jeito diferente? Vamos questionar as imposições da direção”. (Laura Bueno, estudante, 15 anos). [6]


Notas e Referências:

[1] Latin-American European Master in Mediation (2006-2007). Penal mediation in Argentina and The Netherlands.

[2] Sergio F. Moro (2009), disponível emhttp://blogdofred.folha.blog.uol.com.br/arch2009-03-29_2009-04-04.html.

[3] UNESCO/ Observatório de Violências nas Escolas no Brasil (2004). Vitimização:  clima escolar, roubos e agressões físicas.

[4] Secretaria de Estado da Educação/ Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (2005).

[5] Edson Aparecido, secretário-chefe da Casa Civil (SP), entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

[6] As ocupações mudaram os estudantes. Agora, eles querem mudar a escola. Disponível em nexojornal.com.br (dez. 2015).


. Pedro Scuro Neto é Sociólogo, MSocSc (Praga) e PhD (Leeds) sob a orientação de Zygmunt Bauman. Revisor do programa de segurança e defesa da Transparência Internacional (Londres), membro do conselho de diretores da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris). Introduziu no Brasil a justiça restaurativa, implantou e foi o primeiro diretor do centro de pesquisas da Escola Superior da Magistratura (RS). .


Imagem Ilustrativa do Post: [2015-12-01] Secundaristas fecham 9 de Julho_16_Romerito Pontes // Foto de: Romerito Pontes // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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