JOVEM, PERIFÉRICO E IMIGRANTE AFRICANO: O COMBO PERFEITO PARA UM LINCHAMENTO PÚBLICO E SEM REAÇÃO ESTATAL

08/02/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Moïse Kabamgabe não chegou ao Brasil num navio negreiro, mas teve seu corpo amarrado a um poste, como se fazia nos antigos pelourinhos. Foi açoitado e espancado, levado a morte, não pelos capitães do mato, mandatários dos grandes donos das terras, mas pelos capangas do seu patrão, que lhe negou seu salário. Estamos falando de um acontecimento promíscuo, no século 21, e vemos a consolidação de que o jovem Moïse incomoda por ter direito a uma remuneração, por não ser mais um negro escravizado.

A semelhança com o passado violento e desolador que nos condena enquanto nação é muito perturbadora. O processo da criação da raça como categoria social de aparelhamento da vida cotidiana, tem como fundamento a busca incessante pelo lucro. Lucrava-se encarcerando pessoas negras que pereciam aos milhares nas viagens bárbaras das costas da África até o Brasil. Lucrava-se com os anos de trabalho escravizado. Lucrava-se ainda com a exploração sexual das mulheres negras, que geravam filhos que, antes de serem verdadeiramente seus, eram mercadorias já precificadas.

Mbembe (2019) afirma, em seu livro “Necropolítica”, que o negro já nasce morto civilmente. A ele são negados direitos fundamentais imediatamente na sequência de sua existência material, de seu nascimento. O biopoder[1], do qual se valem as instituições estatais que mortificam corpos pretos, serve como o panóptico[2], na espreita de negar vida e direitos a pessoas humanas, mas pessoas humanas pretas. A eles, toda vigilância, nem um passo “fora da linha”, ou serão rechaçados, pagando com a vida, por segurarem um guarda-chuva, à noite; por serem “confundidos” com um bandido; por estarem no lugar errado, no carro errado; por existirem apenas.

Moïse é a representação mais emblemática do que faz uma sociedade racista heteropatriarcal. Moïse nunca teve direito de existir. Fugiu do seu país de origem para não ser morto. Veio viver no Brasil, mas o Brasil, esta “pátria amada”, o matou à luz do dia, amarrado a um poste, à beira mar frequentada pelos brancos, turistas, estes detententores de direitos que ele, talvez, ele nunca acessou.

Em países desprovidos de uma tradição democrática e de instituições incapazes de amortecer os choques causados pelas mutações do acesso ao trabalho, o desemprego e subemprego acabam tornando-se característica naturalizada, precarizando a vida da população e impondo uma vulnerabilidade produzida e alimentada pelo modo de produção capitalista. Moïse era mais um negro com vínculo empregatício precário, era mais um favelado sem direitos, era mais uma vítima de um racismo estrutural que, junto com o patriarcado, sustenta o sistema capitalista, que divide e separa a população brasileira em castas.

Nestas condições, quando o Estado se entrega, ou mais especificamente, quando ele absorve e reproduz as (des)qualificações do capitalismo neoliberal e passa a investir em desacordo com os direitos da classe trabalhadora, acabando por gerar situações de extrema pobreza e de violência na sociedade, concentrando, por outro lado, riqueza nas mãos de uma minoria da população, ele contribui para que a maior parte de sua população viva sob o aniquilamento de suas condições de existência (CAVALCANTE, 2021). Esta entrega aos mandos do capital é amplamente reforçada quando as vítimas são pessoas negras, quando são mulheres, quando é a população LGBTQIA+. Há uma ênfase no extermínio de vidas que, ao que parece, não importam.

No caso de Moïse, esta questão apresenta um agravo substancial porque ele é negro. A esta população, são negados seus direitos fundamentais, sendo, por vezes, brutalmente retirada de circulação, seja pelas mãos do Estado, ou pela sociedade civil que vê, no aniquilamento destas vidas, uma solução pífia para o problema da violência. E esta eliminação pode se dar no contexto do encarceramento desta população ou mesmo, no contexto da supressão da existência destas pessoas, como explicita Mbembe (2019, p. 18), ao sugerir que “a política de raça, em última análise, está relacionada com a política da morte”. O autor ainda levanta um questionamento de que estes corpos já nascem politicamente mortos, tendo em vista todas as sujeições às quais estão expostos pela simples condição de serem corpos negros. Enfatizamos que estes mesmos corpos que irrompem com as normativas socialmente instituídas são resistentes na cadeia de produção do capital e, por esta razão, por reivindicarem seus direitos, são açoitados em via pública. O que mais choca, além da brutalidade desse ato racista, é a ausência de ação do Estado. O Kiosque Tropicália, até pouco tempo seguiu ativo, funcionando normalmente.

Esta situação reflete o caráter histórico e estrutural em torno do qual se constituiu a base da sociedade brasileira, ou seja, através de um processo de exploração colonialista da mão de obra negra e escravizada, cujo eixo de sustentação da economia estava assentado neste processo (CAVALCANTE, 2021). Ou seja, vivemos, hoje, em um país, no qual a prática do poder (seja esta prática penal ou não) consiste num instrumento de defesa da dominação de classe (PACHUKANIS, 2017).

O que incomoda, em Moïse, não é somente sua presença física. A negação de seu salário, do que é seu por direito, remonta às impressões coloniais acerca destes corpos. O poste, associado ao pelourinho, consolida estas impressões. E o açoite a este corpo, que não resistiu fisicamente e morreu, materializa a perspectiva de poder na relação de trabalho, consolidando o lugar de Moïse na instância de mercadoria por sua insubordinação.

Entretanto, estas linhas levantam questionamentos e fazem provocações atentas para o modelo de sociedade que defendemos. Hoje, vivemos tempos de defender o óbvio: a vida. Mas estaremos levantando as bandeiras das populações que se situam em lugares vulnerabilizados pelo modo de produção capitalista. E, diante disso, defendemos não só a vida, mas a vida com dignidade.

 

Notas e Referências 

 

CAVALCANTE, C. P. S. Uma gota de pranto molha o riso quando o preso recebe a liberdade: a medida socioeducativa entre a responsabilização e punição. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tese de doutorado. Psicologia. 2021

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

[1] Conceito que analisa as intervenções do Estado, a partir da compreensão de as ações deste consistem em ações políticas destinadas a população, de modo que uma parte desta recebe ações que as mantenham vivas e outra parte recebe intervenções que as deixam morrer.

[2] O termo panóptico faz alusão a ideia de visão total. Foucault cunha este termo em seus estudos sobre as prisões aludindo ao modelo de vigilância total instalada nas unidades prisionais do século 18. Ver em: Foucault. M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

 

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