ISS sobre locações de bens móveis em contratos mistos: aplicabilidade da Súmula Vinculante n. 31 – Por Gustavo Amorim

10/05/2017

As súmulas vinculantes do STF, por sua natureza persuasiva, têm reflexos profundos em todo o sistema jurídico, especialmente quando versam sobre obrigações tributárias. Sucede que nem todos os reflexos são absorvidos imediatamente pelos sujeitos das relações tributárias, muitas vezes por não identificarem a extensão do que foi decidido. Daí a necessidade de avaliar os critérios estabelecidos pelo Tribunal na edição das súmulas vinculantes e assim tentar contribuir com a melhoria das relações entre o fisco e os contribuintes.

É dentro desse objetivo que faremos uma análise da Súmula Vinculante n. 31 (É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis.), que é de simples interpretação e aplicação nos contratos puros de locação de bens móveis, isto é, nos contratos que não envolvem nenhuma obrigação de fazer, mas que demanda uma análise mais aprofundada quando se estiver diante de contratos mistos de locação de bens móveis, que dependem tanto de uma obrigação de dar quanto de uma obrigação de fazer.

O assunto despertou interesse porque nesses tipos de contratos mistos muitos contribuintes não incluíam na base de cálculo as receitas relativas à locação de bens móveis, mas os municípios têm considerado que as receitas de locação de bens móveis, quando fornecidas juntamente com serviços, porque decorrentes do mesmo contrato, devem se sujeitar integralmente à tributação pelo ISS, porque inaplicável a Súmula.

Sem o objetivo de exaurir a matéria, pretendemos gerar um debate, provocar uma reflexão mais aprofundada do leitor interessado nas questões tributárias.

Sabe-se que o ISS é imposto de competência municipal que possui como materialidade de incidência tributária a prestação de serviços, nos termos do artigo 156, inciso III da Constituição Federal, assim como, que a expressão serviço pressupõe o exercício de uma obrigação de fazer. Com isso, todo e qualquer fazer com conteúdo econômico estará sujeito, em tese, à tributação pelo ISS, à exceção dos casos em que a atividade não esteja prevista na lista de serviços (não tributados), ou, eventualmente, naquelas acobertadas por imunidades ou isenções.

Porém não se tratando de obrigação de fazer, mas de obrigação de dar, como é o caso da locação de um bem móvel, não ocorre o fato gerador do imposto, porque limitado pelo arquétipo constitucional do ISS, como decidiu o STF na edição da Súmula Vinculante n. 31. Nesta situação específica não há mais questionamentos, face ao seu poder persuasivo estabelecido pelo artigo 103-A da CF e pelo inciso II do artigo 927 do CPC, que vincula as decisões judiciais e a própria administração tributária. Até porque não há sinais de mudança de orientação apta a gerar a superação do precedente (overruling).

Então já é certo que a locação pura de bens móveis não constitui fato gerador do ISS, mas o que se tem de novo e que nos faz avaliar sobre a aplicabilidade imediata ou não da súmula, refere-se à natureza do contrato que chamamos mais acima propositadamente de misto, o qual, para fins de reflexão, é formado em partes iguais por receita de serviços e também por receitas de locação de bem móveis. Os casos mais utilizados como exemplo são a locação de uma máquina e a disponibilização do seu operador; a locação de um carro e a disponibilização de um motorista; a locação de computadores e o fornecimento conjunto de técnicos de manutenção; locação de máquina de fotocópias e serviço de manutenção; mas há muitos outros.

É neste momento que entramos no ponto central da questão: é possível separar e tributar de maneira diversa dentro de um mesmo contrato uma locação de bem móvel e a contratação de um serviço acessório?

Tudo indica que sim, contanto que cada qual seja adequadamente remunerado, sem que o contribuinte manipule artificialmente a base de cálculo do imposto. Ao menos foi esta a conclusão do STF nos debates que envolveram a redação da Súmula Vinculante n. 31.

A questão foi analisada pelo STF quando se avaliava a redação final da súmula[1]:

“O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - (…) A meu ver, com o devido respeito, não há prejuízo algum ao sentido das inúmeras decisões, se for cortada a expressão final ‘dissociada da prestação de serviço’, É inconstitucional a incidência sobre locação de móveis, só.

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA - Eu não vejo prejuízo na supressão dessa expressão. A minha preocupação foi em relação àquelas situações em que a prestação de serviço vem escamoteada sob a forma de locação. Por exemplo: locação de maquinário, e vem o seu operador. Nessa hipótese, muito comum.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Então, esse caso aí é a prestação de serviço típica, não é a locação de móvel como tal.

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA - Pois é, mas a prestação é escamoteada aí.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Sim, mas a pergunta é a seguinte: existem, neste caso, locação de móvel e prestação de serviço, ou existem ambas?

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Tem as duas coisas, mas o que aparece é só a locação de móveis.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - Então a locação de móvel não tem incidência, mas a prestação de serviço tem.

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA - Mas, como eu disse, não vejo essas questões periféricas que podem surgir aí, podem ser resolvidas em reclamação e em outros procedimentos. Não vejo nenhum problema.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO - O meu receio é exatamente que se raciocine nestes termos: quando associadas, elas ficam sujeitas a imposto? Não ficam.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - O que o Ministro Peluso aponta é sério. Nós temos que dar uma redação que não gere dúvida, porque, poder resolver por reclamação, é, de início, já acentuarmos que poderá haver dúvida.

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA – Que haverá reclamação, não tenho a menor dúvida. Reclamação virou a panaceia.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Então, eu acho que, se Vossa Excelência, que propôs, atentando inclusive aos precedentes, entender que realmente a proposta do Ministro Peluso cobre aquilo que discutimos e que foi consolidado como a matéria solucionada pelo Tribunal, melhor que se dê adesão à proposta e se elimine a parte final.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE E RELATOR) - Portanto: É inconstitucional a incidência do Imposto Sobre Serviço de qualquer natureza sobre operações de locação de bens móveis.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Presidente, com isso ficamos fiéis ao que assentado pela Corte, já que, quando da formalização do leading case, não houve o exame da matéria quanto à conjugação "locação de bem móvel e serviço". Deve-se esperar, portanto, reiterados pronunciamentos do Tribunal sobre possível controvérsia, envolvida a junção, para posteriormente editar-se um verbete”.

Os debates foram levantados com o objetivo específico de discutir a inclusão, ou não, da expressão “dissociada da prestação de serviço”, que estava contida na proposta de redação da súmula.

Resta claro dos debates, primeiro, que essa expressão não foi inclusa na súmula porque não representava a decisão proferida em reiterados pronunciamentos sobre a matéria, como bem pontuou o Ministro Marco Aurélio ao final da discussão transcrita. Segundo, e mais importante, também ficou claro que todos os Ministros se manifestaram no sentido de que, em tese, é possível conferir tratamento diferenciado a um mesmo contrato quando ele for misto, tributando uma parte e não tributando a outra, contanto que não se trate de situação em que a prestação de serviços está - usando a mesma expressão do Ministro Joaquim Barbosa - “escamoteada” dentro de um contrato de locação de bens móveis.

Em decisão subsequente à súmula, do ano de 2010, do mesmo STF, que restou relatada pelo Ministro Joaquim Barbosa, deixou um pouco mais clara essa possibilidade, quando considerou que “A caracterização de parte da atividade como prestação de serviços não pode ser meramente pressuposta, dado que a constituição do crédito tributário é atividade administrativa plenamente vinculada, que não pode destoar do que permite a legislação (proibição do excesso da carga tributária) e o próprio quadro fático (motivação, contraditório e ampla defesa)”, e que existe aPossibilidade de as autoridades fiscais exercerem as faculdades conferidas pela lei para aferirem quais receitas são oriundas da isolada locação de bens móveis.” (AI 758697 AgR, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, 2ªT, julgado em 06/04/2010). Neste caso o STF negou provimento a recurso de município por entender que a prerrogativa de desconsiderar operações escamoteadas estava ressalvada na decisão proferida pelo segundo grau de jurisdição.

Tempos depois, já no ano de 2012, a decisão proferida pelo STF foi ainda mais clara ao reconhecer expressamente que determinado contribuinte poderia discutir a adequação da base de cálculo para que a tributação pelo ISS se limitasse exclusivamente ao valor do serviço. Naquele julgamento estava sendo analisada a situação em que envolvia a locação de guindaste com o respectivo operador, quando se concluiu que “Se houver ao mesmo tempo locação de bem móvel e prestação de serviços, o ISS incide sobre o segundo fato, sem atingir o primeiro. 3. O que a agravante poderia ter discutido, mas não o fez, é a necessidade de adequação da base de cálculo do tributo para refletir o vulto econômico da prestação de serviço, sem a inclusão dos valores relacionados à locação.” (ARE 656709 AgR, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, 2ª T, julgado em 14/02/2012).

Em 2014, em sede de Reclamação, o STF foi incisivo ao consignar que a existência de remuneração específica permite inclusive que se aplique a própria Súmula Vinculante n. 31. O caso envolvia a locação de maquinário com operadores e a decisão opinou pela aplicação da súmula defendendo que ela “pode ser aplicada em relações contratuais complexas se a locação de bens móveis estiver claramente segmentada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira. Hipótese em que contratada a locação de maquinário e equipamentos conjuntamente com a disponibilização de mão de obra especializada para operá-los, sem haver, contudo, previsão de remuneração específica da mão de obra disponibilizada à contratante. Baralhadas as atividades de locação de bens e de prestação de serviços, não há como acolher a presente reclamação constitucional” (Rcl 14290 AgR, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2014).

No voto condutor do julgamento a Relatora Ministra Rosa Weber assentou que nas “relações contratuais complexas, somente se pode falar em descumprimento da Súmula Vinculante 31 quando a locação de bem móvel esteja nitidamente segmentada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira”, e que naquele caso “Inexiste, outrossim, previsão de remuneração específica da mão de obra disponibilizada à contratante”, o que desautoriza, segundo o referido julgamento do Plenário do STF, o ajuizamento da reclamação.

Em resumo, os debates da súmula e as decisões posteriores permitem a conclusão de que o Plenário do STF entende que nos contratos mistos é possível aplicar a Súmula Vinculante n. 31 quando o valor da locação do bem móvel estiver “nitidamente segmentada”. Mas como avaliar se a locação de bens móveis está “nitidamente segmentada”, sem qualquer “escamoteamento”?

Bem verdade que na maioria dos casos essa prova não será muito fácil.

Mas podemos imaginar, primeiro, uma situação em que os quantitativos de locação e de serviços estão previstos em edital de licitação, no contrato administrativo e nas notas fiscais emitidas, o que impede a livre manipulação de valores relativos à locação de bens móveis. Ou ainda, no caso em que os valores cobrados a título de locação de bens móveis são comprovadamente representativos, isto é, que podem ser demonstrados pelo custo de aquisição do equipamento locado e da sua usual depreciação. Nas duas situações a formação do preço da locação e do preço dos serviços não estão sendo manipulados para alterar o aspecto quantitativo da hipótese de incidência.

Note-se que o STF não discute se a união das duas atividades previstas no contrato “misto” constituiria um serviço autônomo tributável pelo ISS, como ocorreria no caso de terraplanagem (locação de máquina + obrigação de fazer/operar = atividade de terraplanagem do item 7.02 da lista), porque simplesmente considera não tributável a locação do bem móvel.

Analisando a formação da súmula e as decisões subsequentes do STF se conclui que mesmo nos contratos mistos o Tribunal afasta a possibilidade de cobrança de ISS sobre a grandeza da receita relativa à locação de bens móveis. Mas nem sempre o fisco, nem os contribuintes, vêm se atentando a essa orientação.


Notas e Referências:

[1] Debates extraídos do ARE 656709.


 

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