Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos
Janeiro:
Desisti de brigar com a roda da vida, que me deixa tonta, velha, entorpecida. Os olhos – embaçados – feito vidraças em dias de chuva. Mas 'inda é verão, e é preciso acreditar na esperança. Nem que seja a esperança que salta de lá para cá no meu quintal. Quisera que a minha miniatura de quintal fosse o organismo inteiro da Mãe Terra, e eu pudesse respirá-la livremente – eu e ela, livres. Leio Krenak, preciso adiar o fim do meu mundo... Eva invadiu meu sonho e me fez vergar as costas até a altura do chão, bem no dia do meu samsara – na incompletude de mais uma rodada no círculo vicioso do meu carma.
Fevereiro:
Nos meus cadernos de anotar motivos às vezes espreito a eternidade brincando de longos saltos no abismo das minhas incompreensões. Fui ver minha mãe... mal sabia eu, mal sabia ela, que seria nosso último abraço... meses depois, nunca mais ouvi sua voz.
Março:
A vida pede passagem pelos estreitos do mundo. Inicia-se oficialmente o recolhimento, pandemia a céu aberto, os receios trancafiados entre quatro paredes, no desejo de que o 'invisível' jamais encontre a porta de entrada. As horas sucumbem diante do álcool gel. As coisas, os dias, os tempos, até os vãos dos pensamentos são borrifados, na tentativa quase insana de obter do universo uma carta de alforria do nefasto 'invisível'. Não devo enferrujar a palavra. Não agora, quando tanta vida pede passagem, pede socorro, pede milagre, pede outra chance, pede a aventura de outro amanhã.
Abril:
Aos poucos o coração aquieta diante de um tempo tão comprido entre os dias. A vida suplicando pelo aprendizado imperativo do viver no aqui e no agora. Entre paredes e portas trancadas – que não devem ser abertas. Não por ora.
Maio:
O mundo continua lá fora e eu sigo aqui dentro, do quarto à sala, dos pensamentos às palavras – cada vez mais escassas. A vida em câmera lenta.
Junho:
Depois de lavar as roupas, as coisas, passei a lavar as mãos, os braços, meus desesperos, cada reentrância desse cansaço insano... Esfreguei até o osso, larguei longe a carcaça, sobrou-me aquela cortina fina, tênue, quase diáfana, que separa de mim aquela que eu sou depois da alma. Custei a acreditar que ainda me sobraria algo, depois que virei do avesso as entranhas, como se procurasse um tesouro sem mapa, sem rota (de fuga), sem bússola...
Julho:
Deixei-me ficar arredia, desconfiada da minha própria poesia... Já não sei distinguir sujeiras, cada fresta da janela amedronta meus pelos. O ‘invisível’ sem modos, o ‘invisível’ fazendo-se visto no espanto coletivo de cada dia, as mortes sendo empilhadas a esmo, as lágrimas umedecendo, emudecendo nossas gargantas secas... de quantos lutos ainda será feito o nosso desespero?
Agosto:
Sigo agarrando a esperança – com unhas e dentes. Qual um delírio do verbo resistir no mundo. Como a lira que delira nas cordas. É preciso encontrar o sentido de ser 'instrumento'.
Setembro:
Fiz de conta que vivi várias vidas dentro de um ano que não veio. Assim driblei o tempo. Mais um mês vencido. Sobrevivo.
Outubro:
O mês mais difícil. O sofrimento mais intenso de um ano que só sangrou. A primeira casa em que habitei foi-se do mundo. Sim, aquela casa-móvel de águas internas juntou-se à Fonte. De repente aquele ventre se foi, e aqui eu sou. Até algum dia, minha mãe!
Novembro:
Repito Clarice todos os dias, como um mantra de resistência: “Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive".
Dezembro:
Invento um decreto, para resistir ao ano insano:
Art. 1. Fica decretado que o verbo morrer não será mais conjugado em nenhum tempo e lugar – só será permitido morrer a injustiça, a tristeza, a solidão e a miséria!
Art. 2. Só se poderá levar à morte urgente a maldade, a violência, o ódio, o descaso e a indiferença!
Art. 3. Fica decretado que permanecerá viva somente a fome de imensidão, de alegria, amor, ética e respeito, e que as dores outras todas sejam findas!
Art. 4. Que as estradas sejam suficientes e permitam idas e vindas, que haja vida prolongada para toda a vida, desde a miúda joaninha até o gigante elefante, desde o bebê recém-chegado ao mundo até o velho sábio das montanhas!
Art. 5. Fica decretado que nenhum decreto impedirá a palavra em seu direito de ser dita!
Art. 6. Amem! Amém!
Imagem Ilustrativa do Post: 2020 // Foto de: Kelly Sikkema // Sem alterações
Disponível em: https://unsplash.com/photos/CjdsgW4cVSU
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/