Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Os textos escritos por este autor buscam preservar uma unidade de valor. O leitor mais atento e que já tenha algum contato com estes escritos já pode ter feito esta constatação. A figura de uma árvore, trazida por Dworkin, é representativa desta ideia, onde suas partes – tronco, galhos, folhas – devem formar um todo unitário que se harmonize e apelar umas às outras. Por isso os conceitos precisam ser integrados uns com os outros. Apresenta-se, assim, “a estrutura da moral em geral como semelhante à de uma árvore: o direito é um ramo da moral política, que é um ramo da moral pessoal mais geral, que é por sua vez um ramo de uma teoria ainda mais geral do bem viver” [1]. Caminhando no sentido inverso – do geral para o específico – a estrutura deve ser mantida, ou seja, partindo-se de um valor mais amplo que inspira o todo, o direito, seus ramos, dentre os quais o processo e, em seguida, suas instituições, concepções e estruturas mais específicas devem conter harmonia e se afinar às outras partes, que por sua vez possuem afinidade com os valores e estruturas mais gerais.
Temos que o princípio democrático é um destes valores, o que nos é confirmado pela Constituição Federal. Com efeito, as normas, segundo o próprio Dworkin[2] – teoria que foi posteriormente refinada por Alexy[3] - são gêneros que comportam regras e princípios, os quais, em uma sistema constitucional moderno (e o Estado Constitucional em sua versão mais atualizada é o Democrático de Direito), irradiam valores fundamentais desde a constituição até os campos infraconstitucionais.
O devido processo legal, outro valor positivado como jusfundamental, assim, permite concluir que o processo é a constituição (ou seus valores) aplicada. A dogmática, destarte, que não pode ser desconsiderada, também integra este todo sistêmico. Da mesma forma, a interpretação do jurista deve levar isto em conta.
A partir desta leitura, defende-se a promoção de uma abertura do processo à legitimidade democrática, através de participação mais alargada dos interessados[4]. É este o valor que inspira os textos contidos, por exemplo, no livro Defensoria Pública e a tutela coletiva de direitos: teoria e prática[5], onde se destina amplo espaço para a análise da legitimação nas ações coletivas, assim como na obra Custos Vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis[6], não se devendo olvidar que a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos dos vulneráveis são valores que permeiam a atuação institucional (artigo 134 da CF/88) e que, por isto, devem integrar qualquer análise relacionada às funções do defensor público.
A ação popular, em síntese, tem por finalidade decretar a invalidade do ato administrativo que causa lesão ao patrimônio público. A legitimidade para a propositura da ação é conferida constitucionalmente ao cidadão, conforme o artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição Federal de 1988. Nos termos da lei de regência, basta ter capacidade política, comprovada pelo título eleitoral (artigo 1º, Lei 4.717/65), não sendo necessário possuir residência no domicílio eleitoral da propositura da ação, já que a legitimidade ativa não é do eleitor, mas do cidadão. A condição eleitoral é tão-só meio de prova documental da cidadania, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ. REsp 1242800/MS. Segunda Turma. DJE 14/06/2011).
Este instrumento processual, assim, é uma garantia fundamental do cidadão e a legitimação se volta para ampliar a participação democrática na formação e condução do Estado Democrático de Direito, de forma mais direta, ou seja, para que a pessoa acesse diretamente o Poder Judiciário reclamando a proteção da coisa pública, que é coletiva e difusa, sem a necessidade de intermediação de terceiras instituições, como ocorre na ação civil pública.
Partindo-se deste raciocínio, a Defensoria Pública não é parte legitima para o ajuizamento da ação popular. Da mesma forma, o Ministério Público, o qual poderia atuar apenas no caso de sucessão processual, quando o cidadão abandonar a causa (artigo 9º da Lei 4.717/95), regra extensível, a nosso ver, também à instituição responsável por efetivar o direito fundamental ao acesso à justiça (artigos 5º, inciso LXXIV e 134 da CF/88).
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, a íntima relação entre a ação popular e a ação civil pública, todavia, teria erigido uma espécie de legitimidade multilegitimária, já que a identidade entre estas ações é tão grande que “se a lesividade ou a ilegalidade do ato administrativo atingem o interesse difuso, passível é a propositura da Ação Civil Pública fazendo as vezes de uma Ação Popular multilegitimária” (STJ. Primeira Turma. Recurso Especial 401.964/RO. DJ 11.11.2002).
Encontra-se, ainda, previsão expressa da legitimidade institucional para a ação popular em algumas leis de regência das Defensorias Públicas nos respetivos estados federados. É o caso, por exemplo, da Lei Complementar 65/2003 do Estado de Minas Gerais, que organiza a Defensoria Pública naquele ente federativo, dispondo que compete à Defensoria Pública “patrocinar ação popular” (art. 5º, VII) e da Lei Complementar distrital 828/2010, que Regula a prestação de assistência jurídica pelo Distrito Federal (art. 6º, VI).
Dispositivos desta natureza são de constitucionalidade duvidosa, caso se entenda que atribuem legitimidade extraordinária para a Defensoria Pública atuar como parte na propositura de uma ação popular (assim como faz com relação à ação civil pública). Ao que parece, nestes casos, o legislador ordinário estadual apenas pretendeu deixar evidente que a Defensoria Pública tem atribuição para ajuizar a ação popular como representante do cidadão, sendo esta a leitura que melhor se adequa ao texto constitucional e preserva a unidade do ordenamento.
Importa observar que não existe impedimento para que a Defensoria Pública ajuíze ação popular como representante processual do cidadão legitimado - e não como substituto (legitimado extraordinário). A instituição, neste caso, age em nome alheio, não sendo, portanto, parte, como ocorre, por exemplo, na ação civil pública.
A harmonia com princípio democrático e com o acesso à justiça está mantido neste caso, considerando que as instituições – e no caso mais específico, a Defensoria Pública – podem tutelar os mesmos bens que o fariam via ação popular através da ação civil pública, que é até mais ampla. Reforça esta ideia a possibilidade de intervenção custos vulnerabilis em uma ação popular, o que encerra de uma vez por todas o debate sobre a legitimidade da Defensoria Pública para ações populares.
A possibilidade de intervenção custos vulnerabilis encontra fundamento a partir da missão institucional conferida constitucionalmente à Defensoria Pública, enquanto expressão e instrumento do regime democrático, voltada à promoção dos direitos humanos e à defesa dos necessitados. Trata-se, assim, de uma intervenção de natureza constitucional, justificada ainda pela cláusula geral de proteção dos vulneráveis (artigo 4º, XI, LC 80/1994); por seu histórico, ligado ao nascimento do cargo de defensor público no Rio de Janeiro dentro dos quadros da Procuradoria Geral de Justiça (Lei Estadual 2.188/1954), portanto, com vocação de índole interventiva, como, por exemplo, quando atuava como defensor do vínculo matrimonial, em processos nos quais as partes já estavam representadas por advogados[7]; pela teoria dos poderes implícitos, considerando-se que se o constituinte outorga determinada atividade-fim significa dizer que também concede os meios necessários para a realização desta atribuição; com fundamento em normas que reforçaram esta via de atuação em hipóteses específicas, como o artigo 554, §1º do Código de Processo Civil, a Lei de Execuções Penais (artigos 61, VIII e 81-A, caput) e o Estatuto da Criança de do adolescente (artigo 141).
No plano judiciário, o Superior Tribunal de Justiça - além de outros tribunais e diversos juízes singulares - já admitiu a intervenção em favor dos vulneráveis, nos Embargos de Declaração no Recurso Espacial 1.712.163/SP e no Habeas Corpus 568.693/ES.
Havendo, portanto, interesse institucional, a partir da missão atribuída constitucionalmente à Defensoria Pública, especialmente no que tange à promoção de direitos humanos e à salvaguarda – individual e coletiva – dos vulneráveis, nada obsta que ocorra a intervenção do custos vulnerabilis em uma ação popular ajuizada pelo cidadão, inclusive como reforço ou mais-valia, com vistas à superar os obstáculos ao acesso à justiça e democratizar o processo, garantindo-se que os necessitados tenham voz no processo cuja decisão pode afetar suas esferas jurídicas e propiciando ao julgador a formação de uma convicção mais ampla e, por consequência, com menos riscos de cometer injustiças, tendo em conta a ampliação dos elementos que serão trazidos aos autos.
O primeiro caso que se tem notícia ocorreu em ação popular que teve curso no Estado do Maranhão. Discutia-se os danos que poderiam ser causados às populações remanescentes de quilombos localizadas no município de Alcântara, sem observância da Convenção 169 da OIT - Organização Internacional do Trabalho (consulta livre, prévia e informada dos afetados pelo processo de expropriação a ser executado), a ser realizada com a finalidade de dar continuidade ao programa espacial brasileiro, consolidando e ampliando o Centro de Lançamento de Alcântara. A ação foi inicialmente ajuizada por um cidadão. A Defensoria Pública requereu e teve deferido seu ingresso como custos vulnerabilis, observando que esta posição processual se constitui em modalidade interventiva que ocorre em razão de seu próprio interesse institucional, com o objetivo de permitir a salvaguarda dos necessitados, ou seja, das pessoas vulneráveis que podem ser afetadas quando da resolução da demanda (proc. 1016857-96.2020.4.01.3700, 8º Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciário do Maranhão. Decisão admitindo o ingresso da Defensoria Pública da União em 12/05/2020).
Notas e Referências
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011.
DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. ZANETI JR., Hermes. Elementos para uma Teoria do Processo Estrutural aplicada ao Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. vol. 303/2020 | p. 45 - 81 | Maio / 2020 DTR\2020\6787.
DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. 3ª tiragem. Traduzido por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Traduzido por Nelson Boira. 3. ed. 5º tiragem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
GONÇALVES FILHO, Edilson; MAIA, Maurílio Casas; ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito coletivo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
ROCHA, Jorge Bheron. O Título da Defensoria Pública no CPC 2015. In: Teoria Geral da Defensoria Pública. Alfredo Manuel et al. (org.). Belo Horizonte: D’Plácido, 2020
[1] DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. 3ª tiragem. Traduzido por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 10.
[2] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Traduzido por Nelson Boira. 3. ed. 5º tiragem. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 35-46.
[3] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 85-.
[4] Dialogando com a esta ideia, ainda que com foco restrito à participação de terceiros em processos estruturais, ver: DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. ZANETI JR., Hermes. Elementos para uma Teoria do Processo Estrutural aplicada ao Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. vol. 303/2020 | p. 45 - 81 | Maio / 2020 DTR\2020\6787.
[5] GONÇALVES FILHO, Edilson. Defensoria Pública e a tutela coletiva dos direitos: teoria e prática. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
[6] GONÇALVES FILHO, Edilson; MAIA, Maurílio Casas; ROCHA, Jorge Bheron. Custos vulnerabilis: a Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: CEI, 2020.
[7] ROCHA, Jorge Bheron. O Título da Defensoria Pública no CPC 2015. In: Teoria Geral da Defensoria Pública. Alfredo Manuel et al. (org.). Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 645/646.
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