Na proximidade de completar os seus 30 anos de vigência, a balzaquiana Constituição Federal teve um dos seus dispositivos que disciplina os estados de exceção constitucional aplicados pela primeira vez.
Como amplamente noticiado, o Presidente da República decidiu pela decretação da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro para por termo a grave comprometimento da ordem pública, na forma do artigo 34, inciso III, da Constituição Federal.
Desde a redemocratização que as autonomias dos Estados-membros tem sido preservadas, a despeito de outras situações graves que poderiam ter ensejado a decretação da intervenção federal, como no caso da Intervenção Federal 5.179 (IF 5.179), que tramitou perante o Supremo Tribunal Federal, ajuizada pelo Procurador Geral da República em razão de grave enorme crise institucional, embasando-se na violação ao artigo 34, inciso VII, alínea ´a´, da Constituição Federal.
O respeito amplo e pleno à autonomia dos Estados-membros constitui uma prática já institucionalizada e arraigada, à vista do caráter absolutamente excepcional da intervenção federal, tal como expressamente ressaltado pela utilização da cláusula de exceção no artigo 34 do texto constitucional, sendo uma exigência do princípio federativo e do Estado Democrático de Direito respeitar a autonomia dos Estados é, sobretudo em sua dimensão político-institucional, reverenciar a democracia em observância às deliberações dos cidadãos.
Daí ter o Supremo Tribunal Federal, no julgamento pela improcedência da IF 5.179, ter destacado se tratar de medida
extrema e excepcional, tendente a repor estado de coisas desestruturado por atos atentatórios à ordem definida por princípios constitucionais de extrema relevância
E a excepcionalidade se justifica porque a intervenção federal importa na suspensão temporária da autonomia do Estado-membro, na exata amplitude definida pelo decreto interventivo, passando a sofrer direta ingerência da União, sobretudo nas hipóteses da chamada intervenção espontânea ou de ofício, decretada mediante juízo político-discricionário do Presidente da República, como é o caso das hipóteses constantes dos incisos I, II e III do artigo 34.
No caso concreto, o Presidente da República expediu o decreto interventivo em cerimônia específica, parecendo olvidar que o ato não é digno de cerimônias, mas de consternação e preocupação, dada a seriedade e gravidade da medida.
Não se pretende adentrar na legitimidade da competência do Presidente da República para decretar a intervenção federal, eis que, como usualmente reconhecido, trata-se de ato eminentemente político, sujeito ao juízo discricionário do chefe do poder executivo federal, que analisará a situação de fato e poderá, ou não, conforme a avaliação da conveniência, oportunidade, gravidade e imperiosidade da medida, decretá-la. É verdade que se faz necessário rever a tese da insindicabilidade dos atos eminentemente políticos, mas não há de se duvidar que a situação grave por que passa o Rio de Janeiro não desautorizaria, em caráter manifesto e absoluto, a intervenção.
Apesar disso, não é possível transigir ou flexibilizar a disciplina constitucional que regula e condiciona a legitimidade da decretação, sempre excepcional, da intervenção federal. A preocupação, que já estaria presente em situações de estados de exceção constitucional, é intensificada pela conturbado ambiente político brasileiro, com intolerância e laivos de autoritarismo.
Outrossim, a intervenção federal não se justifica por si mesma e nem pode ser medida açodada, tomada de um jato, repentinamente, devendo resultar de estudo e planejamento, tanto que a Constituição Federal exige que os órgãos superiores de consulta do Presidente da República, o Conselho da República e o Conselho da Defesa, sejam ouvidos e opinem, nos termos dos seus artigos. 90, inciso I, e 91, § 1º, inciso II.
Se tais órgãos devem opinar, evidencia-se que a Constituição Federal exige a manifestação deles precedentemente à deliberação do Presidente da República. Suprimir a oitiva dos Conselhos, malgrado o caráter opinativo, já denota vício formal na decretação da intervenção, não podendo ser ignorado sob a justificativa de não estarem formados.
Além disso, o decreto interventivo, na forma do artigo 36, § 1º, da Constituição Federal, deverá especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução, podendo ainda, se pertinente, nomear interventor.
Tendo em vista os parâmetros constitucionais acima indicados, bem como a natureza excepcional, séria e grave da intervenção, não há legitimidade constitucional para fixação de prazo até 31 de dezembro de 2018, que mais parece uma data cabalística do que uma estimativa razoável e pertinente de tempo para superação do grave comprometimento da ordem pública e do restabelecimento da estabilidade institucional.
A constatação do excesso na fixação do prazo é reforçada pela ocorrência das eleições antes do término da intervenção federal, o que deveria ser de todo o modo evitado, pois significa que os cidadãos do Rio de Janeiro elegerão governador e deputados estaduais num Estado que se encontrará sob o jugo da União e sob a gestão, em matéria de segurança e afins, do Presidente da República. Sem falar da própria eleição presidencial.
Atente-se que a circunstância da Constituição Federal exigir um prazo não confere ao Presidente da República a possibilidade de fixar qualquer prazo, aleatoriamente, não se admitindo que faça perdurar demasiada e excessivamente uma medida de tamanha excepcionalidade como a intervenção federal, sobrepondo-se até mesmo sobre as eleições estaduais e federais.
Assim, outro vício evidente que macula a constitucionalidade do decreto é a demasiada extensão do prazo da intervenção federal, que não poderia se projetar sobre o período eleitoral, devendo o governo federal realizar o planejamento de todas as ações – se é que o fez – que possibilitassem por termo ao grave comprometimento da ordem pública antes do período eleitoral.
Além disso, estimar até 31 de dezembro de 2018 para por termo a grave comprometimento da ordem pública significa, ao mesmo tempo: a) assumir que tal situação perdurará por muito tempo, mesmo com a intervenção, o que denotaria a sua desnecessidade ou inadequação; b) reconhecimento da incompetência do próprio governo federal para o enfrentamento da questão; c) adoção do chamado abusive constitutionalism, concebido por David Landau, que identifica a adoção de mecanismos formalmente constitucionais para erodir a ordem democrática constitucional.
Além disso, cumpre destacar que a amplitude foi delineada no decreto em questão, circunscrevendo-se à área da segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, embora esteja o interventor autorizado a adotar todas as medidas necessárias e apto a exercer todas as atribuições que forem, ainda que indiretamente, pertinentes às ações de segurança pública, conforme os artigo 3º do decreto.
O artigo 2º prevê que o cargo de interventor é de caráter militar, o que não é uma imposição constitucional, sendo mais recomendável preservar os militares e as Forças Armadas para outras situações compatíveis com suas atribuições constitucionais típicas, mas não há qualquer vício nesta definição.
Dentro da estrutura de freios e contrapesos que integra a Constituição Federal, caberá ao Congresso Nacional apreciar o decreto interventivo mediante votação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, podendo aprová-lo por quórum de maioria simples ou relativa, ou seja, pelo voto da maioria dos parlamentares presentes à sessão, desde que estejam presentes a maioria dos membros da Casa respectiva.
Diante dos vícios apresentados, seria importante que o Congresso Nacional rejeitasse o decreto interventivo, a fim de que fosse fixado prazo compatível com a natureza da medida e fossem ouvidos, previamente, os Conselhos da República e de Defesa, como exige a Constituição Federal, mas o Poder Legislativo não tem dado exemplos de tamanho apreço à ordem constitucional, além de se sentir pressionado pela situação calamitosa do Rio de Janeiro, o que pode levar à querela judicial em torno de tais questões, ficando, mais uma vez, sob o crivo do Supremo Tribunal Federal, que não pode se distanciar da guarda da ordem constitucional.
Cabe salientar que, da mesma forma que ocorre com o estado de defesa e o estado de sítio, nos termos do artigo 60, § 1º, da Constituição - que prevê os chamados limites circunstanciais ao poder de reforma -, não podem ser aprovadas, durante a intervenção federal, emendas à Constituição, o que significa que não podem ser objeto de deliberação, não podendo ser votadas, ainda que em comissões, o que implica na paralisação da sua tramitação até que cessada a intervenção federal.
Logo, não há qualquer respaldo constitucional para a proposta de continuidade de tramitação da reforma da previdência, ainda que alinhada com os presidentes da Câmara e do Senado, bem como para a cessação episódica e circunstancial da intervenção para votação da respectiva proposta de emenda constitucional, como noticiado. A adoção de tal estratagema para burlar a vedação constitucional é sério gravame à ordem democrática, que repercute em vício de inconstitucionalidade formal da emenda, caso efetivamente aprovada, sendo a sua confissão aberta e sem qualquer pudor um claro indício de risco efetivo à democracia, que alcança os seus 30 anos recebendo um verdadeiro cavalo de troia.
O que há de se esperar é que, na falha do controle atribuído constitucionalmente ao poder legislativo, o poder judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal, exerça o seu mister constitucional, o que não exonera os cidadãos do dever republicano de exigir o respeito da ordem constitucional, na qualidade de membros da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, como defendido por Peter Häberle, atuando no controle social dos poderes públicos.
Esperemos que melhores ventos nos conduzam para além dos 30 anos da festejada, emancipatória, dirigente, libertária, e atacada Constituição Federal de 1988! E que o Rio de Janeiro recupere a sua beleza e continue lindo, para além de janeiro, fevereiro e março!
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