O processualista Gustavo Henrique Badaró observa que há pelo menos três posições sobre a natureza jurídica do interrogatório: 1) é meio de prova, simplesmente porque o Código de Processo Penal (CPP) o coloca entre os meios de prova; 2) é um meio de defesa, especificamente de autodefesa, até pelo direito do acusado permanecer em silêncio caso assim deseje; 3) possui uma natureza mista: é tanto um meio de defesa quanto um meio de prova.[1]
Para Badaró, o interrogatório não pode ser considerado como meio de prova, já que não se destina a fornecer elementos de convicção ao juiz. Sendo assim, o interrogatório somente pode ser visto como meio de defesa, já que o acusado poderá como estratégia defensiva se recusar a responder as perguntas formuladas pelo juiz.[2]
Já Alexandre Morais da Rosa - em seu instigante “guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos” - sustenta que o interrogatório é tanto meio de prova como meio de defesa, “já que indica/confirma a verão dos jogadores, oportunidade em que o acusado, por si só, narra sua versão do ocorrido. Os limites da cognição são os constantes da imputação, sem que se estabeleça verdadeiro ‘juízo final’ em nome de imaginária verdade real ou para fins de verificação do art. 59 do CP”. [3]
Entende-se, que com o advento da Lei 11.719/2008 o interrogatório do acusado passou a ser reconhecido, sem dúvida alguma, como ato de defesa, especificamente, como ato de autodefesa. No interrogatório o acusado poderá fazer sua própria “defesa”, sem prejuízo da defesa técnica apresentada por advogado.
O jurista italiano Luigi Ferrajoli observa que:
é no interrogatório que se manifestam e se aferem as diferenças mais profundas entre método inquisitório e método acusatório. No processo inquisitório pré-moderno, o interrogatório do imputado representava “o início da guerra forense”, isto é, “o primeiro ataque” do Ministério Público contra o réu de modo a obter dele, por qualquer meio, a confissão. Daí não só o uso da tortura “ad veritatem eruendam”, mas também, a recomendação ao juiz para não contestar nem o título do crime atribuído ao inquirido, nem sua qualidade e suas circunstâncias específicas e tampouco os indícios precedentemente colhidos. Daí, em geral, a elaboração de uma sofisticada “ars interrogandi et examinandi reos” e de uma densa série de regras sádicas de deslealdade processual informadas unicamente pelo princípio “non curamos de modo, dummodo habeamus effectum (...). [4]
Já no modelo garantista de processo acusatório, prossegue o jurista italiano, “informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar argumentos para se justificar. Nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual acusatório (...)”.[5]
Desgraçadamente, especialmente em casos de repercussão midiática em que envolvem acusados conhecidos e afamados, alguns juízes arrogantes e pretensiosos, aproveitam os seus quinze minutos de fama – no caso transformado em horas – e buscam, para além de uma projeção pessoal, constranger e humilhar os acusados.
Como bem salienta Alexandre Morais da Rosa, nesse “jogo” cabe ao “Juiz e aos jogadores a garantia do fair play no decorrer do interrogatório, ainda que seja muito difícil ao defensor intervir quando se defronta com um inquisidor”.[6]
Necessário ressaltar que a persecução penal em um processo penal, verdadeiramente, democrático deve, antes de tudo, se voltar para proteção e tutela da liberdade do individuo diante do poder punitivo Estatal. Não se pode deslembrar, como bem obsevam Casara e Melchior, que “a situação do acusado, na trajetória necessária à afirmação, ou não, do poder penal, é dramática e dolorosa”. [7]
Olvidam esses inquisidores, travestidos de magistrados, que o acusado no processo penal tem direitos e garantias assegurados pela Constituição da República e que, antes de tudo, deve ser poupado em nome do respeito à dignidade da pessoa humana como postulado do próprio Estado Democrático de Direito.
Assim sendo, é certo que o individuo, sob a ótica kantiana, não deve ser instrumentalizado, não devendo, por exemplo, ser preso provisoriamente, com o objetivo, tão somente, de servir de exemplo (prevenção geral) ao corpo social.[8] Em consonância com o respeito à dignidade da pessoa humana o ser humano deve ser um fim em si mesmo e jamais meio.
Por fim, qualquer atitude por parte do juiz, imprópria, desairosa e que submeta o acusado durante o interrogatório e no curso do processo penal a um tratamento vexatório e degradante, deve ser repudiado em nome do sagrado respeito à dignidade da pessoa humana e ao próprio Estado Democrático de Direito.
[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribuanais, 2016, p. 446.
[2] Idem, ibidem.
[3] ROSA, Alexandro Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 423/424.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. trad. Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 485
[5] Idem, p. 486.
[6] ROSA, Alexandre Morais da. Ob. cit. p. 424.
[7] CASARA, Rubens R. R. e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 463.
[8] CASARA e MELCHIOR, ob. cit. p. 464.
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