Interpretação literal ou teleológica no reconhecimento de isenção do ICMS? – Por Velocino Pacheco Filho

03/05/2017

Constitui regra de boa hermenêutica que as normas jurídicas não sejam interpretadas isoladamente, mas inseridas no ordenamento jurídico. O ápice do ordenamento é representado pelas normas constitucionais que encerram valores.

Ora, empresa fabricante de barras de apoio para deficientes físicos, feitas de aço inox, formulou consulta ao Fisco catarinense sobre a incidência de isenção na saída de seu produto. O órgão encarregado de responder a consultas entendeu que o benefício não se aplica ao caso porque, embora a isenção seja para “barra de apoio para portador de deficiência física”, o código da NCM/SH mencionada na legislação refere-se a “alumínios e suas obras”.

O parecer que embasa a consulta cita o art. 111 do CTN que manda interpretar literalmente a legislação que disponha sobre outorga de isenção. Sendo a regra a tributação, a isenção, como direito excepcional, deve ser interpretada restritivamente. Como a isenção refere apenas as barras de alumínio, não poderia ser estendida às barras de aço inox. Conclui invocando lição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a indisponibilidade dos interesse públicos – “interesses qualificados como próprios da coletividade” – que não se encontram à livre disposição, mesmo do órgão administrativo que os representa a quem incumbe apenas curá-los “na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis”.

Essa é a melhor interpretação?

Summum jus summa injuria, já diziam os romanos!

A quem a regra de isenção procurou beneficiar: aos portadores de deficiência física ou aos fabricantes de artefatos de alumínio?

O art. 150, II, da Constituição da Republica veda expressamente a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Segundo Ives Gandra da Silva Martins, “Equivalente” é um vocábulo de densidade ôntica mais abrangente do que “igual”. Pois, a igualdade exige absoluta consonância em todas as partes, a equivalência estende à similitude de situações a necessidade de tratamento igual. Então, como justificar que os fabricantes de barra de alumínio tenham o seu produto isento e os fabricantes de barras de aço inox o tenham tributado? A razão do discrimem é apenas o material de que é feita a barra. Esse é um critério essencial, suficiente para justificar a diferença de tratamento tributário?

Para Antônio Celso Bandeira de Mello, deve haver correlação lógica concreta, ou seja, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional. E isto se traduz na consonância ou dissonância dela com as finalidades reconhecidas como valiosas na Constituição (MELLO, 1993, p. 22). Para tanto, deve-se investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada (Idem, p. 38). Seria inadmissível a ausência de correlação entre o elemento de discrímem e os efeitos jurídicos atribuídos à lei.

A legislação, ao descrever o produto isento, condiciona o tratamento tributário à sua finalidade: barra de apoio para portador de deficiência física. Então, a isenção não é objetiva (contemplando apenas a mercadoria), mas subjetiva (leva em conta a condição do consumidor).

Podemos vislumbrar a intenção da norma no princípio da dignidade da pessoa humana, tida como fundamento da República pelo art. 1º, III, da Constituição. Conforme Fábio Konder Comparato:

Os direitos humanos em sua totalidade – não só os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais; não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida hoje como novo sujeito de direitos no plano mundial – representa a cristalização do supremo princípio da dignidade humana (COMPARATO, 2006, p. 622).

No que respeita à indisponibilidade dos interesses públicos, mesmo para a Administração Pública, o foco é distinguir qual a natureza do interesse público. Leciona Marçal Justem Filho que efetivamente não admite subordinar as necessidades indisponíveis à disciplina jurídica própria dos interesses individuais disponíveis. Contudo, não se trata de um interesse público de conteúdo obscuro, mas o ponto fundamental é a questão ética, a configuração de um direito fundamental. O núcleo do direito administrativo não reside no interesse público, mas nos direitos fundamentais (JUSTEM FILHO, 2006, p. 44).

Celso Antônio Bandeira de Mello identifica a existência de uma relação íntima e indissolúvel entre o chamado interesse público e os interesses ditos individuais. Isto por que, embora possa haver um interesse público contraposto a um determinado interesse individual, não pode existir um interesse público que se choque com os interesses de cada um dos membros da sociedade (MELLO, 2005, p. 48). Acrescenta esse autor que “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado)”. Enfim, conclui que “não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público (Idem, p. 55)”.

A melhor interpretação é aquela que esteja em sintonia com os princípios e valores albergados na Constituição que é o cerne do ordenamento jurídico. A interpretação puramente gramatical, no caso em tela, conduz ao tratamento não isonômico de contribuintes em situação equivalente e por outro lado desconsidera a dignidade da pessoa humana, na medida que afasta a finalidade da norma – beneficiar o portador de deficiência física. Leciona Marco Aurélio Greco que a decisão jurídica não pode ser fruto de pura dedução lógica, mas, pelo contrário, é o produto final de um processo em que a descoberta de algo preexistente e a criação de algo novo se reúnem, tornando o produto final não plenamente automático e previsível (GRECO, 2011, p. 190).

A norma deve ser interpretada em seu contexto, tanto jurídico como fático, pois “a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser) (GRAU, 2002, p. 22)”. Somente o contexto e o desejo de descobrir um significado bom ou razoável em relação a uma dada situação determinam o significado das palavras individuais (ROSS, 2003, p. 146).

Na situação descrita, qual seria o significado bom ou razoável para a norma de isenção? Qual a intentio legis da norma? O interesse público – que não se confunde com o interesse do Estado – é o cumprimento do ordenamento jurídico e a concretização dos valores que ele encerra.


Notas e Referências:

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 3ª ed. São Paulo Dialética, 2011.

JUSTEM FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp. 154-172.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

___________. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005,

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru (SP): Edipro, 2003.


 

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