Neste 9 de dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou em segundo turno a adesão do Estado brasileiro à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e formas correlatas de Intolerância. O projeto deve passar agora ao Senado Federal e se for aprovado, como aconteceu na Câmara, por 3/5 dos votos e em dois turnos, será considerada uma convenção “equivalente” a uma emenda à Constituição.
Está em curso, portanto, tendo em vista a ausência de dispositivo de incorporação automática dos tratados de direitos humanos, o processo formal de aprovação de um texto que deve ser considerado e interpretado juridicamente com o mesmo valor que uma emenda. Há, de fato, uma polêmica sobre se a aprovação pelo Congresso nas condições expostas pelo § 3º do artigo 5º da Constituição dispensa ou não a ratificação presidencial. Para um setor da doutrina, da qual faz parte juristas das qualidades de Ingo Sarlet, por exemplo, a obediência ao rito não dispensa essa nova apreciação do chefe do Executivo federal. [1] Deste entendimento pedimos vênia para nos distanciar, muito embora argumentos em contrário de especial relevância, tendo em vista que o dispositivo introduzido pela EC45 não contemplou a hipótese da ratificação, como tampouco existe ratificação ou promulgação no ritual das emendas à Constituição. Do que se trata, a nosso juízo, é de avançar na prevalência dos direitos humanos, um compromisso do Brasil no terreno das relações internacionais com repercussão concreta no âmbito nacional, nos termos do art.4º, II da Carta de 1988. Porém, este no é o ponto que desejamos frisar.
Acontece que além deste processo no Legislativo existem algumas questões sendo debatidas nas nossas Cortes e que estão também na pauta do STF. Trata-se de ações que chamam a atenção porque se referem ao racismo estrutural, algo que nem todos compreendem ainda - e que alguns simplesmente não querem compreender - ainda que já tenha sido suficientemente explicado, especialmente a partir da maneira como o fenômeno se infiltra nos três níveis da estrutura social, isto é, no político, no económico e no ideológico.[2]
Há também quem se interessa em instalar uma polêmica sobre um assunto que tem traços históricos. O propósito é obstaculizar o combate ao racismo a suas infelizes consequências. Vou partir de algumas constatações. A primeira no terreno governamental, onde a negação é gritante e grotesca. Basta com lembrar aquela sexta feira na qual o vice-presidente da República indagado sobre o tema respondeu: “não...eu...não...no Brasil não existe racismo...essa é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil ...isso não existe aqui não... eu digo a você com toda tranquilidade: não tem racismo aqui...eu morei nos Estados Unidos...lá sim existe racismo...o pessoal de cor andava separado...”. Logo, no seu discurso no G20, o próprio presidente argumentava sobre um Brasil miscigenado que “(...) foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo (...) contudo, há quem queira destrui-la e colocar em seu lugar o conflito e o ressentimento, o ódio e a divisão entre raças, sempre mascarados de ‘luta pela igualdade’ ou ‘justiça social’”.
Também, no debate na Câmara sobre a Convenção, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) fez uso da palavra para afirmar “não existe racismo estrutural no Brasil” e que o texto em pauta era um tipo de censura que gera proibições injustas especialmente aos meios de comunicação. Argumenta a deputada: "O que seria esse discurso de ódio e intolerância? Há discricionariedade na definição pelo politicamente correto do que é este conceito. Não existe racismo institucional no Brasil. Estamos importando problemas e soluções que não nos pertencem".
Aprofundando um pouco, chama a atenção a pesquisa da ONG Contas Abertas publicada no último 24 de novembro. Devemos lembrar, para maior clareza, que faz alguns anos, mais exatamente no dia 21 de março de 2012 a ONG publicou um estudo constatando que no 2011 a Secretaria da Igualdade Racial somente executava o 25% do orçamento que lhe estava previsto. Vale recordar, igualmente, que em 20 de novembro de 2003, em outro estudo, Contas Abertas publicou que o governo gastava apenas 50 milhões de reais no combate ao racismo.
Neste ano, como já dito, a ONG publicou os resultados de um estudo reproduzido em vários jornais do país, no qual demonstra que, conforme apurado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do atual governo brasileiro apenas desembolsou 2% da verba para ações afirmativas e promoção da igualdade racial. Isso significa que o governo gastou a “extraordinária quantia” de R$65 mil nessa finalidade e foram quase que exclusivamente para a manutenção dos conselhos nacionais. [3] Ainda foi noticiado o argumento do governo, para quem as “políticas de prevenção e combate, por seu caráter transversal, estão contempladas em várias ações orçamentárias” buscando potencializar alcance e efetividade; além disso, que os pagamentos se dão conforme cronograma de trabalho “o que está atrelado, por sua vez, ao alcance de metas físicas/etapas desse plano”.
O que se comprova, claramente, sem que necessariamente seja uma novidade, mas que temos que dizer, é que o combate ao racismo não constitui uma prioridade do governo brasileiro na atualidade. É questão de terceira, quarta ou quinta ordem. Esse abandono é um obstáculo ao desfrute dos direitos de todas as pessoas, não só dos e das afrodescendentes. E isso significa um descumprimento frontal do artigo 1º, III, além dos artigos 3º, I e IV, bem como do artigo 4º, II e VIII, do caput do artigo 5º, e do inciso III do mesmo artigo, no mínimo, todos da Constituição da República.
Mas, vamos ao terreno processual, no qual também há questões importantes. Por exemplo: uma decisão da 2ª turma do TRT-RS condenou uma unidade da General Motors no interior do Estado a pagar danos morais por injuria racial a um dos seus operários. A desembargadora relatora do caso argumentou que a injuria racial é um subtipo do racismo, tipificada no § 3º do artigo 140 do Código Penal, impondo ao agressor pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. A injuria coloca a vítima em situação de humilhação ferindo sua dignidade, diz a Magistrada, e certamente lhe assiste razão.
Inegavelmente a injuria racial é conduta que merece a mais ampla rejeição e que se realiza no lamentável contexto do racismo de todos os dias. E é precisamente esta relação a que está em pauta no STF. Com efeito, a Corte julga o HC 154. 248, hoje suspenso em razão do pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes. O voto do Min. Relator Edson Fachin expressa que o fulcro da questão consiste em determinar “(...) se o crime de injúria racial é ou não uma forma de discriminação racial que se materializa de forma sistemática e assim configura o racismo e, como consequência, sujeita-se ou não à extinção da punibilidade pela prescrição”.
Sobre este tema já se afirmou e faz parte de um entendimento relativamente difundido - e a nosso juízo precário - que a injuria racial e o racismo são questões diferentes. Consta em publicação do CNJ que “A injuria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível”.[4] Com essa diferença, o racismo seria imprescritível nos termos constitucionais, mas a injuria racial, como conduta depreciativa à dignidade utilizando elementos relacionados à cor da pele, etnia, religião ou condição da pessoa, teria prescrição de 8 anos.
Nessa acepção o que diferencia a injuria racial do racismo é o fato de que no primeiro caso a vítima seja alguém em particular. Já no racismo a ofensa se projeta ao coletivo. Por isso, em exemplo colocado pelo CNJ, é injuria racial o insulto a uma pessoa durante um jogo de futebol. Enquanto no racismo o exemplo fornecido consiste em recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial ou edifícios públicos ou residenciais, elevadores, ou impedir acesso ao emprego em empresa privada.
Menciona-se o caso julgado pela 1ª Turma Criminal do TJ do DF, que condenou pessoa que se autodenominava “skinhead” e que fazia apologia à discriminação de judeus, negros e nordestinos em páginas na internet. Na decisão se ratifica o entendimento de que “o crime de racismo é mais e amplo do que o de injúria qualificada, pois visa a atingir uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. No caso, o conjunto probatório ampara a condenação do acusado por racismo”.
Por evidente, há questões muito atuais e de interesse para toda a comunidade brasileira neste debate no STF. O tema é o “fenômeno discriminatório” com suas nuances e variedades na quais pode acontecer. Deve-se pensar, de início, que os efeitos jurídicos da decisão do STF nos termos expostos pelo Min. Fachin ampliam o poder punitivo do Estado. Na verdade tal ampliação não nos parece, necessariamente, algo resultante de uma interpretação que ofenda a vontade do constituinte. O texto do Código Penal – artigo 140, § 3º - admite interpretação conforme à Constituição, especificamente em função do disposto no inciso XLII do artigo 5º da Carta de 1988 que nos fala simplesmente em “racismo”, que é o fenômeno estrutural do qual se está a falar. Por isso, nos parece que razão assiste ao Ministro quando afirma que não há como reconhecer a extinção da punibilidade. A Constituição, temos dito em outras oportunidades, não é “neutral”, e ela diz o que se deve e o que não se deve tolerar.
O recém empossado Ministro Nunes Marques entende diferente, pontuando que a imprescritibilidade da injuria racial deveria somente ser imposta pelo legislativo. Diz O Ministro que: "no crime de injúria, o bem jurídico protegido é a honra subjetiva, e a conduta ofensiva se dirige a ela. Já no crime de racismo, o bem jurídico tutelado é a dignidade da pessoa humana, que deve ser protegida independente de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Nas suas palavras, no racismo se trata de “(...) ações que, com fundamento ou finalidade discriminatórias prejudicam, ou visam prejudicar, pessoas pertencentes a um grupo étnico, racial ou religioso, ou de todo ele".
A nosso juízo revela-se frágil a distinção entre os bens jurídicos. Na verdade, do que se trata no caso é de identificar o marco normativo constitucional e legal da discriminação racial para coibir o racismo como manifestação estrutural e as condutas entrelaçadas com ele e nele. A injuria racial, tipo penal criado pela Lei 9459 de 1997, implica a interação entre o sujeito que discrimina e a vítima dentro de um cenário quotidiano de preconceitos e exclusão. Quando se analisa a injuria pode-se caracterizar a maneira, o tempo, o lugar, a oportunidade, a finalidade e em geral todo o leque de circunstâncias que a envolvem. Entretanto a conduta se pratica num cenário político, econômico e de intersubjetividades e nesse cenário há quem afirme e sustente que a manifestação racista é uma patologia, uma anormalidade ou um “caso isolado”. E a verdade não: É racismo! E neste caso, estamos a falar de dignidade da pessoa e da impossibilidade por expressa proibição constitucional de dar tratamento degradante ao ser humano.
O debate nos coloca no terreno da política sobre a criminalidade e contra o racismo, é dizer, com o enfrentamento daquilo que é o imaginário e a prática discriminatória no Brasil, bem seja de forma discreta, simbólica ou sutil ou bem seja de forma aberta ou escancarada. Em todos os casos a doses de violência é brutal contra pessoas vitimizadas pela prática discriminatória.
Partindo de que a discriminação, e não só por causa da cor da pele, é estrutural, podemos afirmar que então ela não é estática, senão dinâmica. Isso significa que se transforma ou se adapta às mudanças da economia, se projeta ao campo da relação social modificada pelos avanços tecnológicos, se mistura com o Estado e com os agentes políticos. Por isso se torna histórica. E por isso o racismo transcende o tempo. Por momentos percebe-se que se modificam os cenários em que se desenvolvem as condutas humanas, mas a manifestação racista, de exclusão e marginalização permanece, transformando a diferencia, de forma persistente, em cruel desigualdade.
Nessa lógica perversa a materialização da prática discriminatória se modifica, variando os padrões de conduta. Na sociedade multifacetária e plural brasileira, o fenômeno discriminatório é também multifacetário e plural, alimentado e retroalimentado institucionalmente em nossos dias. Esse racismo, com tempo e lugar no contexto geral, por supuesto, deve ser combatido à luz da Constituição e o STF deve estar atento a isso.
Notas e Referências
[1] Sarlet, Marinoni e Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. P. 305.
[2] A leitura da obra de Silvio Almeida, que leva o título, precisamente O que é Racismo Estrutural? é de obrigatória leitura. A obra foi publicada pela Editora Letramento de BH. 2018.
[3] https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/ministerio-gasta-so-2-da-verba-para-acoes-de-combate-ao-racismo/
[4] https://cnj.jusbrasil.com.br/noticias/195819339/conheca-a-diferenca-entre-racismo-e-injuria-racial
Imagem Ilustrativa do Post: STF // Foto de: Andréia Bohner // Sem alterações
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