INDVIDUALIZAÇÃO DA PENA NA EXECUÇÃO PENAL E O SOPRO DE  MUDANÇA DE PARADGIMA DO STJ: REINCIDÊNCIA COMO CONDIÇÃO PROCESSUAL E NÃO MAIS PESSOAL

08/07/2021

Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário

INDVIDUALIZAÇÃO DA PENA NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO PENAL

O princípio/ garantia constitucional [1]da individualização da pena frente ao arbítrio do Estado à luz da Democracia é bastante discutido em suas primeiras e segunda dimensões, quais sejam: a imposição pelo Legislativo passando pelo crivo do Executivo de pena proporcional ao bem juridicamente tutelado pela norma penal e a necessidade de se observar elementos concretos e objetivos por ocasião da imposição da pena após crivo processual condenatório.

O princípio em comento impõe ao poder punitivo que após avaliar a conduta delituosa, a punição seja pautada também pelo indivíduo que a praticou. Cuidando sempre para não inverter essa ordem sob pena de implantarmos o direito penal do inimigo, sendo essa é a sutil diferença, em uma análise perfunctória, entre o direito penal do fato e do autor.

Feita essa breve introdução, é importante trazer à tona a face executória do princípio da individualização da pena que por um certo tempo ficou relegada à simples observância de merecimento do reeducando à progressão de regime, ao livramento condicional, remição pelo trabalho estudo ou leitura, entre outros ditos benefícios da execução penal.

Sobre o tema, Roberto Lyra salienta que “o método de individualização, na fase da execução, deve ser simples desenvolvimento e pormenorização, dependentes, aliás, de aparelhamento prisional, da individualização legal e judicial”[2].

Em que pese a importância desses institutos para execução da pena pelo sentenciado, não se pode perder de vista o crime concretamente praticado pelo reeducando e sua repercussão no cumprimento da reprimenda estatal sempre pautado no direito penal do fato, por mais que as condições subjetivas do sentenciado seja a mola propulsora da Execução Penal.

A repercussão do fato delituoso praticado sob o cumprimento da reprimenda ficou mais expresso e exposto com a reformulação pela Lei n° 13.964/2019 do art.112 da Lei de Execução Penal que de forma mais incisiva diferenciou o modus operandi da punição estatal pelo crime concretamente praticado, estabelecendo frações distintas para fins de progressão de regime e de livramento condicional, conforme o delito cometido.

Nessa nova modulação da execução penal a reincidência ganhou mais expressão, impondo a revisão de diversos conceitos já sedimentados na jurisprudência, destacando a reincidência específica em crime hediondo e sua condição objetiva impedindo sua repercussão na execução de penas de quando o sentenciado era primário, ainda que por crimes posteriores tenha passado a ser reincidente, sendo esse último, o ponto que trataremos mais especificamente nesse artigo.

Só para fechar o assunto quanto à reincidência específica, o STJ  em sua Quinta e Sexta Turmas unificou o entendimento quanto a reformatio in mellius da Lei n° 13.964/2019, no que tange a exigência de reincidência específica em crime hediondo para incidência da fração de 3/5( três quintos) ou 60%( sessenta por cento) para fins de progressão de regime. [3]

 

1. UM SOPRO DE MUDANÇA DE PARADGIMA DO STJ- REINCIDÊNCIA COMO CONDIÇÃO PROCESSUAL E NÃO MAIS PESSOAL, INVIABILIZANDO A SUA APLICAÇÃO RETROATIVA

A terceira dimensão do princípio da individualização da pena impõe que por ocasião da execução penal o cumprimento da reprimenda guarde ligação com o fato praticado, sendo isso mais visível quando se fala das diferentes frações de progressão de regime, conforme o delito praticado e suas circunstâncias. Do contrário não seria norma penal sujeita a retroatividade benéfica da lei incriminadora na forma do art. 1° do CPB, por exemplo, bem como, não se faria sentido ter gradação de frações para fins de execução conforme a conduta delitiva abstrata e concretamente considerada.  

Reside nesse ponto a inconstitucionalidade/ilegalidade em aplicar de forma retroativa fração mais gravosa a pena decorrente de delito praticado quando reeducando era primário.

Até a entrada em vigor do intitulado Pacote Anticrime havia entendimento consolidado de constitucionalidade e legalidade duvidosa, data máxima vênia, que uma vez adquirida condição de reincidente esta repercutiria em toda execução penal por ocasião da unificação das penas.[4]

Trata-se de uma subversão do princípio da individualização da pena, conforme destaca André Ribeiro Giamberadino: “nesse caso estar-se-ia a aplicar tal circunstância sobre execução de uma pena que sequer recebeu tal agravante, pois há época o apenado era primário. Não há qualquer autorização legal para tal procedimento. Trata-se com efeito de uma espécie de revisão de pena pro societate  que não encontra resguardo em nenhum fundamento legal”[5]

A reincidência tem sua constitucionalidade pautada exatamente no fato de só impor uma situação mais gravosa ao agente delituoso após este alcançar a condição de reincidente ao cometer um crime após transito em julgado de condenação anterior, tendo isso ficado bastante delineado no “leanding case no qual o STF afirmou a constitucionalidade da reincidência(STF, RE 453.000/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 04/04/2013) teve por principal fundamento o princípio da individualização da pena. Em vários votos ficou assentado que o conceito de reincidência não seria inconstitucional exatamente por não repercutir no delito anterior, mas apenas no posterior “ porque voltou a delinquir apesar da condenação havida””. [6]

A Sexta Turma do STJ em consonância com o princípio da individualização da pena adota o entendimento de que para cada condenação do reeducando deve incidir a fração para progressão de regime conforme seja ou não reincidente

Com entrada em vigor do Pacote Anticrime os pedidos de reconhecimento de reformatio in mellius quanto a necessidade de reincidência especifica em crime hediondo para incidência de 60%(sessenta por cento) ou 3/5(três quintos)  para fins de progressão de regime, levou à Quinta Turma revisitar seus entendimentos tanto sobre a reincidência específica, como quanto a extensão de reincidente para as condenações  de quando o sentenciado era primário. Ficando muito claro no seguinte julgado:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. EXECUÇÃO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME. REINCIDÊNCIA NÃO ESPECÍFICA. CRIME HEDIONDO. PACOTE ANTICRIME (LEI N. 13.964/2019). NOVO ENTENDIMENTO DESTA QUINTA TURMA. AGRAVO DESPROVIDO. I - Inicialmente, "A jurisprudência desta Corte Superior consolidou-se no sentido de que a condição de reincidente, uma vez adquirida pelo sentenciado, estende-se sobre a totalidade das penas somadas, não se justificando a consideração isolada de cada condenação e tampouco a aplicação de percentuais diferentes para cada uma das reprimendas. Precedentes. [...]. II - Ocorre que, em Sessão de 09/12/2020, esta Quinta Turma, em alinhamento ao que já vinha sendo julgado pela Sexta Turma desta eg. Corte Superior, no julgamento dos HCs n. 613.268/SP e n. 616.267/SP, passou a decidir em sentido diametralmente oposto ao antes delineado. Nesse sentido, a ementa do HC n. 613.268/SP, verbis: "Com a entrada em vigor da Lei 13.964/19 - Pacote Anticrime-, foi revogado expressamente o art. 2º, § 2º, da Lei n. 8.072/90 (art. 19 da Lei n. 13.964/19), passando a progressão de regime, na Lei de Crimes Hediondos, a ser regida pela Lei n. 7.210/84. A nova redação dada ao art. 112 da Lei de Execução Penal modificou por completo a sistemática, introduzindo critérios e percentuais distintos e específicos para cada grupo, a depender especialmente da natureza do delito (...) Para tal hipótese, inexiste na novatio legis percentual a disciplinar a progressão de regime ora pretendida, pois os percentuais de 60% e 70% foram destinados aos reincidentes específicos." Agravo regimental desprovido.(STJ - AgRg no HC: 628024 SP 2020/0304360-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 09/02/2021, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/2021)(grifo nosso)

Em que pese o cerne do julgado seja a reformatio in mellius supracitada, a Quinta Turma do STJ usou como parâmetro para mudança de entendimento decisão que trazia a reincidência aplicável de forma retroativa quando se tratava de fração para progressão de regime no momento de unificação das penas.

Trata-se de obiter dicta  eloquente, pois com a imposição legal em diferenciar a execução da pena conforme o delito praticado especificando as mais diversas frações tornou insustentável a tese de que reincidência possibilita a imposição de fração mais gravo para delitos de quando o agente era primário. Afastando de vez a reincidência como condição pessoal e sendo esta apenas condição processual objetiva, estando resguardada pela vedação da reformatio in pejus retroativa.

Assim, concluo, se a coerência for mantida estamos diante de uma mudança eminente de entendimento de forma expressa pelo STJ, pondo fim de vez a esse ranço inquisitório de fazer uso da reincidência como circunstância quase vamos dizer assim “onipresente” que atingia o presente o passado e o futuro da execução penal do sentenciado.

 

Notas e Referências

[1] Art. 5°, inciso XLVI, CRFB: a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos

[2] LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, v. II, pp. 177-178

[3] STJ - HC: 605783 SP 2020/0205138-0, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 13/10/2020, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/10/2020 e STJ - AgRg no HC: 628024 SP 2020/0304360-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 09/02/2021, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/2021

[4] STJ - HC: 427803 PR 2017/0317371-7, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento:  04/10/2018, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/10/2018

[5] Giamberardino, André Ribeiro. Comentário à Lei de Execução Penal. 2ª edição. Belo Horizonte: CEI, 2020, pag.203

[6] Giamberardino, André Ribeiro. Comentário à Lei de Execução Penal. 2ª edição. Belo Horizonte: CEI, 2020, pag.203

 

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