Indivíduo, liberdade e dignidade: a perspectiva do outro

28/08/2015

Por Atahualpa Fernandez - 28/08/2015

“Amo a la humanidad pero, para mi gran sorpresa, cuanto más quiero a la humanidad en general, menos amo a las personas en particular como individuos”

F. Dostoyevski

Costumo dizer às pessoas com quem "comparto a vida" (aos que Aristóteles circunscrevia sua definição de "amizade") que me dedico a estudar e escrever sobre temas que não importam muito aos juristas, porque me encontro mais cômodo tratando de assuntos que espero simplesmente desentranhar e compreender (ao menos em parte) e porque não sou o suficientemente ambicioso para procurar entender temas de grande (e específica) envergadura jurídica - nesta categoria, por exemplo, enquadro a "natureza humana".

Também lhes digo que estou convencido de que o pensamento naturalista e, mais que nada, o método científico, representam o melhor caminho a seguir para responder perguntas como: Quem somos? Qual é o sentido de nossa existência? Por que desfrutamos da moralidade e da arte? Por que nos comportamos de forma moral, seguimos normas de conduta e utilizamos a linguagem para expressar-nos? É a mente unicamente a atividade dos neurônios de nosso cérebro? Quem conhece os motivos que regem nossas ações? Em que consiste a natureza humana? Creio que é por meio da peculiar qualidade recorrente destas perguntas quando o cérebro se esforça por compreender-se a si mesmo e aos demais, quando percebe do que somos capazes, quando sabe o que nos preocupa, e quando descobre que tendências humanas há que estimular, e contra quais proteger-se.

Para mim, a ciência emergente da natureza humana é o "ácido universal"  que, pouco a pouco, desgastará todos os argumentos espúrios baseados em crenças e especulações não verificáveis. O que opinamos já não importa; importa o que dizem as evidências. E apesar do difícil que é realizar um esforço por intentar entender algo que a priori  não compreendemos (algo que escapa a nossa maneira de pensar ou que culturalmente choque com elementos aos que levamos toda uma vida acostumados) e do fácil que é deixar-se levar por abstrações caprichosas e crenças errôneas que se resistem a desaparecer (antes, inclusive, de haver-lhes concedido sequer o benefício da dúvida), não há mais marcha atrás.

Por quê? Muito simples. Dado que “parte de lo que hemos aprendido de la (neuro) ciencia durante los últimos 40 años no coincide con lo que piensan normalmente los filósofos y los juristas” (P. Churchland), qualquer teoria jurídica, para que suas propostas programáticas e pragmáticas sejam reputadas "aceitáveis" nos dias de hoje, deveria antes conseguir o nihil obstat, o certificado de legitimidade, das ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir. O realmente novo já está aí fora e há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossas razões, discursos, argumentos e/ou teorias.

Ademais, a (radical e necessária) relação entre a ciência e o direito não somente servirá para enriquecer nosso acervo de ideias, senão que também proporcionará instrumentos para averiguar quais têm maiores probabilidades de ser corretas. Dito isto, o que tratarei de fazer à continuação será relacionar algumas implicações da natureza humana com as ideias de individualidade, de liberdade e de dignidade, desde a "perspectiva do outro".

"Indivíduo"

Nenhum indivíduo existe "ab initium et ante saecula". Para começar, há de ver a adquirição da identidade individual como um logro, isto é, como o estágio de um complicado processo que combina os programas ontogenéticos cognitivos do organismo com os distintos estímulos procedentes da vida social, da cultura em que cresce e prospera: a natureza do ser humano e, consequentemente, todos os seus pensamentos, sentimentos e ações, sejam ou não conscientes, provêm da complexa interação entre genes e ambiente. O mesmo que um entorno sem cálcio trunca no organismo humano o programa ontogenético que o haveria de levar ao desenvolvimento normal da dentição, uma vida social inexistente produz um ser sem articulação linguística e sem autoconsciência, sem vida anterior articulada; uma arquitetura cognitiva deserta de experiência e conteúdo, não um indivíduo no sentido que damos correntemente a esta palavra.

A compreensão interna é nosso direito desde o nascimento e nosso maior presente. Cada um de nós começa sua vida preparado pela natureza para criar o mundo dos demais a sua própria imagem. Para uma criança não há outra alternativa: não vê nos demais nem mais nem menos que os sentimentos que ele mesmo conheceu e, à medida em que se enriquece, o mundo que lhe rodeia se enriquece com ele. É a existência secular e o mútuo relacionamento na vida social que produzem o indivíduo; é "com" o outro e "por meio" do outro que o indivíduo se constitui: o conhecimento próprio ou o autoconhecimento vai unido em parte com o reconhecimento do outro.

A capacidade para autointerpretar-nos é inseparável da aquisição da capacidade para interpretar aos demais, para ler suas mentes, para entendê-los e para entender-nos a nós mesmos como seres intencionais: é inata a nossa necessidade de atrair o olhar e o reconhecimento do outro que, nessa condição, já não ocupa uma posição comparável à nossa, senão contígua e complementária. Como seres reflexivos e marcados por uma incompletude constitutiva da espécie é somente no trato de uns com os demais quando temos que pensar, sentir, recordar, amar, odiar, calcular e sopesar as coisas; quer dizer, em que a empatia, a cooperação, o egoísmo, o altruísmo e a competição fluem com maior naturalidade.

Os seres humanos não podem sobreviver em nenhum lugar da terra à margem da sociedade: não podem sobreviver, quero dizer, em nenhum lugar da terra, de forma autônoma e separada, se carecem de uma profunda sensibilidade e capacidade de compreensão do outro. Assim como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, a sua mirada, que nos define e nos conforma. Nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. O ser humano (um primata sem pelo e neotênico que evolucionou até converter-se em uma espécie que pode mirar seu próprio passado e reflexionar sobre sua origem), sem alteridade humana, não pode desenvolver suas promessas genéticas.

Na falta desse reconhecimento, um recém-nascido abandonado na floresta não se humaniza (ou, como Tarzan, busca o outro a qualquer custo na cara de um símio). E poderíamos morrer ou enlouquecer se vivêssemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos decidissem não mirar-nos jamais ou comportar-se como se não existíssemos: seríamos como uma espécie de Adão bestial, solitário e sem consciência, que não viveria em sua existência o significado  da relação sexual,  o prazer do diálogo e do consenso, o amor pelos filhos e a dor da perda de uma pessoa amada (Umberto Eco). Nas palavras de Tzvetan Todorov: “La sociabilidad no es un accidente ni una contingencia: es la definición misma de la condición humana… Esta "vocación" significa que tenemos una necesidad imperiosa de los otros, no para satisfacer nuestra vanidad sino porque les debemos nuestra existencia misma”.

Mas há algo mais. Nas relações interpessoais continuamente interpretamos o comportamento do outro supondo que tem estados mentais, como opiniões, crenças, preferências, intenções, interesses, sentimentos. Quando alguém faz algo pensamos que tal conduta se deve a determinados pensamentos, sentimentos ou desejos que tem em sua cabeça. Os seres humanos temos uma teoria das mentes alheias, que nos permite naturalmente atribuir estados mentais aos demais e a nós mesmos. Somos «animais mentalistas» enraizados na passarela intersubjetiva da existência.

De fato, atribuir significado às coisas e às pessoas, ler o que há baixo a superfície e dar sentido ao que experimentamos, é precisamente o que continuamente (consciente ou inconscientemente) estamos fazendo, uma atitude estritamente relacionada com nossa capacidade para inventar interpretações de fatos e fenômenos, estados de ânimo e emoções, para encontrar uma história plausível que explique nosso mundo e/ou o comportamento próprio e alheio. É da natureza do existir humano que quando observamos o comportamento de nossos congêneres raras vezes, pode até que nunca, observamos um mero mosaico de atos incidentais; o que vemos detrás deles é uma estrutura causal mais profunda, a presença oculta de planos, intenções, emoções, crenças, recordos etc...etc., e, partindo desta base, podemos tratar de compreender o que fazem, pensam e sentem os demais. Não há um minuto em que não intentemos ler a mente ou imaginar as intenções dos outros.[1]

Apesar de estarmos efetivamente contidos dentro de um crânio, a diferença de qualquer outra espécie, somos extraordinariamente propensos a ver aos outros como "algo mais que corpos" (P. Bloom), a considerar que os demais fazem coisas intencionalmente e por alguma razão. Somos, provavelmente, a única espécie do planeta capaz de reflexionar sobre a questão das outras mentes, a única desenhada pela seleção natural para ter a capacidade de prever ou de ter uma imagem, uma espécie de modelo conceitual da mente humana (uma "Teoria da Mente" – ToM[2]), sem a qual uma espécie essencialmente social como a nossa não teria conseguido sequer prosperar biologicamente.

Está claro: criar-se como "in-divíduo" significa que com cada pensamento, com cada sentimento, com cada gesto, experimentamos “la huella de los otros en nosotros. Nos construimos junto a los otros, pero también con ellos. Estamos hechos de todos esos otros como ellos estás hechos de nosotros” (P. Bruckner)[3]. Isto é o que pressupõe conceitualmente que a natureza humana, a arquitetura cognitiva de nossas mentes, seja constitutivamente social – quer dizer, que nossa condição e  nossos respectivos estados intencionais (de primeira e de segunda ordem) estão  vinculados e se agregam constitutivamente respeito às relações sociais.

"Liberdade"

A própria ideia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana - não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, posto que o modo de ser do homem/mulher no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A liberdade é a que iguala a opinião que tenho de mim com a opinião que de mim tem o outro (“Y  ese es, tal vez, su aspecto más terrorífico” – P. Bruckner).

A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do ser humano e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais no mundo. Como nossos corpos, nosso cérebro e nossas mentes não estão desenhados para viver em ausência de outros, a liberdade e a autonomia não ocorrem de forma isolada, senão que estão intimamente conectadas aos - ou se veem afetadas pelos - demais.

Daí a advertência de E. Levinas de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade e dignidade humana lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da mirada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. A partir do momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo, nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente coexistencial. Voltarei a este tema mais adiante.

E não se trata apenas do fato de que todos nós necessitamos do outro. Investigações recentes demonstram que precisamos interagir com os demais: precisamos de "mentes para ler", precisamos dar e receber, precisamos pertencer (R. Baumeister). Sêneca tinha razão : “Ninguém que vê apenas a si mesmo e transforma tudo em uma questão de sua própria utilidade é capaz de viver feliz”. Somos uma espécie ultrasocial, cheia de emoções firmemente sintonizadas para amar, oferecer amizade, ajudar, compartilhar e entrelaçar nossas vidas à de outros, ainda que o apego e os relacionamentos possam provocar-nos dor ou sofrimento. Como disse um personagem de Jean Paul Sartre: “O inferno são os outros”... Mas o paraíso também. (J. Haidt)

A mera existência do outro vem a converter-se em um convite a viver humanamente nossa existência a partir do seu reconhecimento como um legítimo outro na realização do ser social, que tanto vive na aceitação e respeito por si mesmo quanto na aceitação e respeito pelo próximo. Um convite de tal magnitude requer seu espaço não somente em nossa vida pessoal, senão também em nossa cotidiana vida comunitária, em nosso Lebensraum, porque supõe um compromisso com o outro em uma sociedade decente: uma sociedade que permite viver juntos sem humilhações, discriminações e com integridade (A. Margalit) e um compromisso de ter no respeito pelo outro, por sua dignidade, o núcleo central de nossa convivência plural e mundana, de abrir um espaço de interações sociais no qual a existência do outro é (e deve ser) sempre livre e igual.

Ser livre, diz Pascal Bruckner, significa em primeiro lugar “gozar de los vínculos de reciprocidad que nos unen a nuestros semejantes y hacen que seamos personas con vínculos, personas llenas. Arrastramos con nosotros todas las trabas que, al frenar nuestra independencia, la renuevan y la enriquecen. Ser sujeto significa también estar sometido a otro, no considerarse nunca desembarazado de él, entrar en esa red de dones, de intercambios, de derechos y obligaciones que constituye el comercio humano”. Por dizê-lo de alguma maneira: sem a presença, a "consideração" e o reconhecimento pelo ser humano não pode existir liberdade, e a dignidade se converte em mera palavra para descrever um fenômeno sem qualquer significado absoluto, sem nenhum sentido de valor - ainda que dado por assentado que vivemos em um entorno social em que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova (afirmações acerca de Deus, a religião e crenças sobre a Bíblia, por exemplo).

"Dignidade"

O que me leva a abraçar um tipo de postura que concebe a dignidade como um "epifenômeno" da própria natureza humana, a partir da situação básica de relação do ser humano com os outros seres humanos, em lugar de fazê-lo em função do homem/mulher singular encerrado em sua esfera individual e que serviu de fundamento às caracterizações deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva (relacional, coexistencial) da dignidade, fundada na natureza humana, é de suma transcendência para calibrar o sentido e o alcance dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro.

Para dizer a verdade, nunca é demasiado insistir no muito que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária, da liberdade, etc...etc. É que embora a visão da natureza humana que foi evolucionando durante as quatro últimas décadas cambiou sistematicamente a explicação “de lo que somos y por qué hacemos lo que hacemos” (M. Banaji), palavras como a "dignidade humana", que não existe fora da imaginação comum dos seres humanos, não deixa de provocar secreção de adrenalina em determinados filósofos e juristas propensos a uma retórica autocomplacente, pretendidamente muito 'científica', dominada sobretudo por um positivismo de 'regras e/ou princípios'”, um sociologismo, um jusnaturalismo com alguma peculiar ontologia substancialista e/ou um "neoconstitucionalismo" de direitos humanos ou fundamentais e suas ponderações.

O problema é que a tão popular dignidade filosófico-jurídica, sem nenhuma referência às atuais teorias e evidências científicas acerca da condição humana, não significa coisa alguma. O fundamento do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, geneticamente programado para a liberdade e a vida em sociedade, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar, decidir e ler a mente dos demais, de eleger, gozar e sofrer. Longe de ser um princípio contrário ou separado de nossa natureza, é esta, nossa natureza, a que dá sentido e significado à ideia da dignidade humana.

Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana, sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal. Dito de outro modo, a ideia de dignidade humana adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). Somente por esta via será possível compreender o princípio da dignidade sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como um elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal.

As descobertas provenientes de outras áreas do conhecimento oferecem razões poderosas que dão conta da falsidade da concepção comum da dignidade humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual modelo jurídico. Além do mais, uma ideia de dignidade fundada em uma teoria robusta da natureza humana leva-nos a adotar como premissa um modelo de direito alicerçado e sustentado, entre outras coisas, na história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.

Outorgamos direitos morais a todo o homem com vistas a viabilizar a constituição, coesão e manutenção dos vínculos sociais relacionais, quero dizer, a vida social mesma; notável consequência, sobra dizer, da capacidade humana de abstração e antecipação do que pode ocorrer se permitimos determinados comportamentos, ainda quando não nos afetem diretamente. Com isto, o aparente mistério de que existam direitos que não foram atribuídos se soluciona da maneira mais simples: todos os direitos, inclusive os chamados "humanos" e "fundamentais", têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas e/ou metafísicas, senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral de respeito mútuo, devidamente combinada com um sistema elaborado de justificação, controle e castigo.

Não existem direitos que não sejam conferidos para resolver problemas adaptativos relacionados com nossa própria vida (ou sobrevivência) social. No caso do princípio da dignidade, a atribuição da qualidade de ser digno de algo — que implica ter em conta as necessidades, desejos e crenças dos demais — tem por objeto garantir as condições mínimas de uma vida satisfatória e plena (o radical direito aos meios materiais de existência), que é, em verdade, o bem maior que podemos esperar. Nisso reside, de fato, a dimensão intersubjetiva, relacional ou coexistencial da dignidade humana: atuar baixo o suposto implícito de significados outorgados e compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.

Jamais encontraremos o quid da dignidade introduzindo-nos frivolamente em reinos metafísicos nem tratando de encontrar seus fundamentos em tal ou qual escola de filosofia. A dignidade não é uma nuvem amorfa: é uma "propriedade emergente" da natureza humana. E se estamos de acordo em que a dignidade humana é a capacidade de mostrar-nos dignos de respeito, devemos reconhecer que ela afeta a seres humanos, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer, “uno más uno más uno más uno más uno...”(J. Wark). Reconheçamos: "ninguém é 'humano' e 'digno' em abstrato.(Joseph de Maistre)

Para ultimar: a presença e a aceitação do outro na convivência constituem o fundamento biológico do fenômeno social, moral e/ou jurídico: da liberdade, da igualdade, da autonomia, da justiça, etc...etc.  Qualquer teoria sobre a dignidade que não se baseie em dados experimentais verdadeiros e fidedignos sobre a natureza humana, ou que os ignore, é uma teoria digna de condena, porque destrói o fundamento biológico que a gera e a evidência de que, para entendê-la como Deus manda, é necessário compreender o sentido mesmo de nossa "in-dividualidade", de nossa existência como uns primates peculiares.


Notas e Referências:

[1] Vejamos como seriam as experiências sociais cotidianas sem esta capacidade para traduzir ao instante em ideias, emoções e pensamentos os comportamentos dos demais. Alison Gopnik e Andrew Meltzoff incluiram um exemplo aterrador em seu livro The Scientist in the Crib. Imaginemos, nos dizem os autores, que adotamos a perspectiva de um comensal sentado em um restaurante, que está escutando uma conversação banal entre os membros de uma família jovem de outra mesa, um dos quais, uma criança, rompe a chorar depois de haver sido importunado pelo irmão maior: “Parece que vemos esposo, esposa, filhos e irmãos pequenos. Mas o que vemos realmente são sacos de pele metidos em troços de tela e acomodados em cadeiras. Há uns inquietos pontinhos negros na parte superior dos sacos de pele, e debaixo um orifício que faz ruído de vez em quando. Os sacos se movem de maneira imprevisível, e às vezes um deles toca aos demais. Os orifícios cambiam de forma, e alguma que outra vez sai um líquido salgado dos dois pontinhos”.

[2] De uma maneira geral, a «Teoria da Mente» (ToM), expressão atribuída a David Premack e Guy Woodruff, se refere à habilidade para compreender e predizer a conduta de outras pessoas, seus conhecimentos, suas intenções e suas creenças. Trata-se da capacidade de poder pensar em outras mentes, de reconhecer que os outros têm mente com pensamentos e sentimentos como os nossos e, a partir de engenhosas hipóteses sobre como opera a mente de outras pessoas, antecipar suas condutas. E uma vez que estamos esquisitamente harmonizados com o mundo psicológico oculto, a teoria da mente “es el sello característico de nuestra especie, como lo es andar erguido sobre dos piernas, aprender una lengua o crear nuestros hijos hasta la adolescencia” (J. Bering). Segundo a teoria dos sistemas intencionais que anunciou Daniel Dennett (para quem não se trata de uma  “teoria”, senão de um talento, de algo parcialmente instintivo), os seres humanos são organismos excepcionais porque a evolução construiu nosso cérebro de tal modo que é inevitável que adotemos uma “postura intencional” quando discorremos sobre os demais: “La postura intencional es la estrategia de interpretar la conducta de una entidad (persona, animal, objeto, lo que sea) tratándola como si fuera un agente racional que determina su “elección” de “acción” mediante una consideración de sus “creencias” y “deseos”. [...] La estrategia básica de la postura intencional es tratar la entidad en cuestión como un agente con el fin de predecir y de este modo explicar, en cierto sentido, sus acciones y movimientos”.

[3] Nada obstante, há que ter em conta que por muito que vivamos com e para outros, «cada uno de nosotros es solo “uno”, que camina por una senda individual a través del mundo desde el nacimiento hasta la muerte. Cada persona siente únicamente su dolor, y no el de otro. Cada persona muere sin que ello entrañe de modo lógico la muerte de nadie más. Debemos tener en cuenta estos hechos tan básicos cuando oímos hablar de la ausencia de individualismo en ciertas sociedades. Incluso las formas más intensas de interacción humana, por ejemplo, la experiencia sexual, son formas de sensibilidad individual, no de fusión. Si se hace de la fusión una meta, el resultado irá acompañado de un amargo desengaño». (M.  Nussbaum)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: Walking down the beach // Foto de: Esparta Palma // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/esparta/3256060510 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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