Indedutibilidade dos gastos com moradia do IRPF e o aniversário de 10 anos do PL 316/2007 – mínimo existencial e capacidade contributiva – Por Carolina Sena Vieira

05/04/2017

Nos próximos dias será hora de “acertar as contas com o leão” e algumas discussões voltam a estar em voga. Uma das principais, sem dúvida, é a referente às despesas dedutíveis da base de cálculo do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física. Se, por um lado, a dedutibilidade está prevista taxativamente no texto legal, só admitindo alargamento por via de lei em sentido estrito, por outro o contribuinte se vê cada dia mais injustiçado pelo fato das faixas de rendimentos (para fins de aplicação das alíquotas progressivas) não serem atualizadas de acordo com a inflação. Resultado: cada vez mais pessoas se tornam contribuintes do imposto.

Um dos exemplos de discussão foi a decisão proferida pelo Juízo da 21ª Vara Federal Cível de São Paulo na qual o magistrado autorizou os associados da autora da ação a dedução da integralidade dos gastos com instrução do contribuinte e de seus dependentes. A insurgência se voltava contra a redação do artigo 8º da Lei nº 9.250/95, que limita os gastos com instrução do contribuinte e seus dependentes em R$ 3.561,50.

As deduções legais inegavelmente estão pautadas pelos gastos que o contribuinte possui com direitos que muitas vezes deveriam ser assegurados pelo Estado. Dessa forma, dado que o Estado não se desincumbe de tal obrigação, o gasto do contribuinte implica em diminuição de sua capacidade contributiva.

Sendo assim, a provocação que se coloca é: por que não permitir a dedução dos gastos com moradia da base de cálculo do IRPF?

Segundo dados da Câmara Brasileira da Indústria da Construção[1], no ano de 2014 foi apurado um déficit habitacional de 6.068.061 unidades. Deste número, quase metade (2.926.543) foi justificado por “ônus excessivo aluguel”. Analisando-se com mais detalhe estes dados, verifica-se que 83,9% do déficit está concentrado na faixa de renda familiar de até três salários mínimos.

Em termos legislativos, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 6º, a “moradia” como um dos direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Portanto, sendo considerado o direito de habitação ou de moradia como um direito social, um direito fundamental de segunda geração, cabe não apenas prevê-lo em diplomas normativos mas sim estabelecer formas através das quais possa ser exercido. Em outras palavras, sendo o direito à moradia um direito fundamental (assim entendido como um dos direitos humanos que se encontra positivado na constituição brasileira), cabe ao Estado estabelecer políticas públicas que permitam ao cidadão o seu exercício.

Os gastos com habitação, portanto, devem ser considerados como necessários para a manutenção do “mínimo existencial”. De uma forma geral, este pode ser entendido como “direito protegido negativamente contra a intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, garantido positivamente, pelas prestações estatais.” (TORRES, 1990, p. 70).

Com efeito, a teoria do “mínimo existencial” tem origem alemã e data do século 19. Sua interpretação permite concluir que deve ser protegido de todas as formas possíveis aquele valor mínimo necessário à subsistência do cidadão. Está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, já que este “mínimo” deve ser encarado como o essencial para que o ser humano goze de uma vida digna.

Nesse panorama, a atuação positiva do Estado na proteção ao mínimo existencial pode também se dar através da tributação (ou da não tributação). Foi o que previu a Constituição de 1946 que, em seu art. 15, parágrafo 1º, garantia que “São isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita atividade econômica.”

Para Klaus Tipke e Douglas Yamashita, no âmbito tributário o mínimo existencial é protegido pelo princípio da capacidade contributiva. Para os autores, “[…] Enquanto a renda não ultrapassar o mínimo existencial não há capacidade contributiva. O mesmo resulta da dignidade humana e do princípio do Estado Social.” (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 34)

No mesmo sentido, Betina Grupenmacher também credita ao princípio da capacidade contributiva a função de proteger o mínimo existencial:

O princípio da capacidade contributiva, por seu turno, tem como principal consequência propiciar a realização da justiça fiscal, onerando aqueles que manifestem maior capacidade contributiva e desonerando a renda utilizada para fazer frente às despesas necessárias à vida digna.  A chamada “renda consumida” há de ser excluída para fins de aferição de capacidade contributiva. Trata-se da intributabilidade do mínimo existencial [...]. ”(GRUPENMACHER, 2004, p. 18)

É inegável que, no Brasil, o imposto que possui a maior possibilidade e mais técnicas para se fazer valer o princípio da capacidade contributiva subjetiva é o imposto sobre a renda. As deduções da base de cálculo do imposto estão delimitadas na Lei nº 9.250/95, artigo 8º e compreendem: a) Despesas com saúde (médicos, dentistas, fisioterapeutas, etc); b) Gastos com instrução (limite R$ 3.561,50/ano); c) Valor por dependente (R$ 2.275,08/ano); d) Contribuições para previdência oficial; e) Contribuições para previdência complementar; f) Pensão alimentícia; g) Livro-caixa (autônomos).

Conforme se observa, os gastos com moradia não estão previstos dentre as despesas dedutíveis, podendo-se afirmar que, com isso, viola-se não só a previsão constitucional do direito de habitação como uma garantia como também ao mínimo existencial, uma vez que a tributação do valor necessário ao exercício do direito de moradia malfere o princípio da capacidade contributiva.

O ponto relevante é que tramita no Senado o PL 316/2007, que visa a alterar o artigo 8º da Lei nº 9.250/95, adicionando às despesas dedutíveis da base de cálculo do imposto sobre a renda da pessoa física os gastos com moradia. A redação sugerida é a seguinte, adicionando-se a alínea “h” ao dispositivo: “h) aos pagamentos efetuados, no ano-calendário, a título de aluguel de imóvel residencial, limitados ao valor total de R$ 10.000,00”.

Na justificativa do projeto apresentada pela Senadora Lúcia Vânia, verifica-se que um dos vetores foi a previsão do direito de moradia como um direito garantido pelo artigo 6º da Constituição e o déficit habitacional. Também foi mencionada pela Senadora a “iníqua distribuição de renda” no país, que impulsiona o déficit habitacional: sem condições financeiras para adquirir a casa própria ou sem poder dispor de valores para pagamento de aluguel sem prejuízo do sustento pessoal, muitas famílias vivem em condições precárias ou coabitando o mesmo imóvel com outras famílias.

Além deste ponto, a proposta apresentada pela senadora destaca que as famílias mais pobres consomem proporcionalmente mais de seu orçamento familiar com habitação do que as famílias de maior renda.

O Sindifisco, no levantamento efetuado anualmente para demonstrar a defasagem da faixa de isenção do imposto sobre a renda da pessoa física, também apontou a necessidade da dedução da base de cálculo do imposto das despesas com moradia, por ser um direito social.

A proposta tem seus méritos por, através de uma atuação positiva do Estado, fazer valer o princípio do mínimo existencial, deixando de fora da base de cálculo do imposto sobre a renda um montante que, na realidade, não representa acréscimo patrimonial: apenas permite que o sujeito passivo exerça com dignidade o seu direito de moradia.

Entretanto, a proposta apresentada contempla um limite anual de R$ 10.000,00 (dez mil reais) de dedução. A redação do PL data de 2007 e a sua simples correção pelo IGP-M alcançaria cifras próximas a R$ 19.000,00 em fevereiro de 2017.

Regina Helena Costa (2003, p. 66-68), em seu célebre “Princípio da Capacidade Contributiva” defende a intributabilidade dos itens previstos no já citado artigo 202 da Constituição de 1946 (habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica) pela simples ausência de capacidade contributiva expressada no dispêndio financeiro com estes gastos de primeira necessidade. Mas destaca que o mínimo vital é conceito dinâmico, que “varia no tempo e no espaço”, em virtude da variação do que se considera como uma “necessidade básica”.

A tramitação deste projeto de lei há quase dez anos, sem avanços significativos, demonstra o descomprometimento do Estado na adoção de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades sociais e à melhora das condições de vida de parcela significativa da população.


Notas e Referências:

[1]    http://www.cbicdados.com.br/menu/deficit-habitacional/deficit-habitacional-no-brasil

COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003.

GRUPENMACHER, Betina. Tributação e Direitos Fundamentais. In Tributos e Direitos Fundamentais. FISCHER, Octavio Campos (Org). São Paulo: Dialética, 2004.

TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça Fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002.

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Processual Geral. N. 42. Rio de Janeiro: 1990, 69-78.


 

Imagem Ilustrativa do Post: America the Beautiful no. 3 // Foto de: Andrew Hernandez // Sem alterações

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